Subsunção, Cognição e Decisionismo na Inspeção do Trabalho Brasileira
DOI: 10.19135/revista.consinter.00010.29
Recebido/Received 13.04.2019 – Aprovado/Approved 16.11.2019
Luiz Felipe Monsores de Assumpção[1] – https://orcid.org/0000-0003-4056-3548
E-mail: 803monsores@gmail.com
Resumo: O presente artigo constitui um recorte de um estudo mais amplo, recentemente concluído, e que tem como objeto a Inspeção do Trabalho brasileira. Neste particular, intenta-se abordar um dos aspectos do poder de polícia administrativo da fiscalização trabalhista, qual seja a atribuição de vigilância e controle. Este artigo, contudo, propõe um segundo recorte: uma análise crítica acerca do processo “subsuntivo” que, em tese, respalda a conclusão da autoridade fiscal pela ocorrência do ilícito trabalhista. Trata-se, em verdade, de problematizar a operação lógica que determina não só a captura do fenômeno infracional, mas também o dimensionamento da pretensão punitiva do Estado. Analisando o glossário de ilícitos trabalhistas operado pela Inspeção do Trabalho brasileira – o “Ementário” – este estudo sugere, afinal, que o processo cognitivo que orienta a ação fiscal-trabalhista possui ao menos três momentos decisórios bem definidos. Dois deles, situados na instância da “burocracia ao nível da rua”, se mostram pela escolha arbitrária do filtro investigativo e a dosimetria punitiva no caso concreto. Trata-se de modulações de conduta que se expressam no âmbito individual-metodológico, e que ajudam a demarcar a pretensão nanorregulatória da ação fiscal. O terceiro momento, por outro lado, ocorre no âmbito institucional, e pode ser descrito como um processo político e histórico de construção do ilícito trabalhista, numa tentativa de equilibrar, simultaneamente, a emergência dos compromissos institucionalizados do Estado regulador, e a contingente reprovação social de determinadas expressões do poder empregatício, percebidas como desviantes e, quiçá, perversas.
Palavras-chave: Inspeção do Trabalho brasileira. Ação fiscal. Infração trabalhista. Ementário.
Abstract: This article is an excerpt from a larger study, recently completed, and has as its object the Brazilian Labour Inspection. In this opportunity, it is tried to approach one of the aspects of the administrative police power of the labor inspection, namely the attribution of vigilance and control. This article, however, proposes a second cut: a critical analysis of the process based in “subsumption” that, in theory, supports the conclusion of the Labour Inspector for the occurrence of the breach of the labor law. It is, in fact, to question the logical operation that determines not only the capture of the infraction phenomenon, but also the dimension of the punitive pretension of the State. Analyzing the glossary of labor illicit acts operated by the Brazilian Labour Inspection – the “Ementário” – this study suggests, after all, that the cognitive process that guides the labor-inspection diligence has at least three decision-making moments well defined. Two of them, located in the instance of “street level bureaucracy”, are shown by the arbitrary choice of the investigative filter and the punitive dosimetry in the specific case. These are modulations of conduct that are expressed in the individual-methodological scope, demarcating the nanorregulatory pretension of the labor-inspection. The third moment, on the other hand, occurs at the institutional level, and can be described as a political and historical process of constructing the labor violation, which aims to balance, simultaneously, the emergence of the institutionalized commitments of the regulatory state, and the contingent social disapproval of certain expressions of labor power, perceived as deviant and, perhaps, perverse.
Keywords: Brazilian Labour Inspection. Labor-inspection diligence. Labor violation. The “Ementário”.
Sumário: 1. Introdução. 2. O Dever de Punir e a Percepção do Ilícito Trabalhista.3. Um Código Penal-Trabalhista Denominado “Ementário”. 4. Considerações Finais. 5. Bibliografia.
1 Introdução
Das entidades estatais brasileiras que compõem o tripé institucional identificado com a proteção do trabalho assalariado[2], a Inspeção do Trabalho é a mais antiga[3]. De fato, tal longevidade, aliada a um desenho institucional que, ao menos até a virada deste século, lhe permitia transitar por outras áreas de ação do extinto Ministério do Trabalho, conferia à fiscalização trabalhista boa popularidade entre os trabalhadores brasileiros, inclusive quando coletivamente organizados.
A relativa familiaridade com que a sociedade salarial brasileira lidava com a fiscalização trabalhista não se traduzia, contudo, em conhecimento difuso de sua organização, de seus processos de trabalho, tampouco de seus critérios decisórios. Sobretudo nos últimos 20 anos, quando a Inspeção do Trabalho brasileira se guinou para a vocação arrecadatória[4], vem-se observando uma redução da sua permeabilidade social. A lógica operativa que a diferencia das demais instituições, a despeito do lugar comum: o algoritmo binário do lícito/ilícito, tem se tornado cada vez complexa e, na mesma medida, mais opaca, o que lhe confere certas características de um modelo cibernético do tipo black box[5].
Internamente, há quem afirme se tratar de uma evolução do Sistema de Inspeção do Trabalho, de um processo de purificação ética e estética, de distinção narrativa e de fortalecimento institucional. No que tange à crítica sobre o acentuado caráter policialesco da Inspeção do Trabalho, recorrente não só no âmbito empresarial e político, mas também entre as representações sindicais laborais, as respostas costumam variar.
Às vezes essa crítica é tratada no âmbito das condutas individuais, e reduzida à dicotomia clássica: punição versus orientação, cuja essência é tomada, frequentemente, como falaciosa, uma vez que as alternativas não seriam autoexcludentes.
Tem-se o hábito, também, de atribuir as críticas a uma equívoca percepção de mudança institucional. Esta, se houver, se refere ao perfil do próprio corpo fiscal, cujo grupo dominante (45,2 %) é formado pelos ingressos de 2003 em diante. Nesse sentido, os Auditores-Fiscais do Trabalho “de CIF 35”[6] não teriam qualquer outra memória de atuação, que não a do gerencialismo agudizado a partir de 2004. Estariam eles, portanto, inseridos desde sempre, familiarizados e perfeitamente adaptados não só ao atual desenho institucional da Inspeção do Trabalho, mas também aos novos sistemas de controle e produtividade.
No âmbito da intelectualidade orgânica da Inspeção do Trabalho brasileira, são poucos os que admitem, racionalmente, uma guinada punitivista da Inspeção do Trabalho, deflagrada pela alteração do art. 628, da CLT, advinda com a Medida Provisória n. 2.164-41, de 24.08.2001[7]. O interessante é que esta norma pretendia reforçar e expandir o atributo negocial da Inspeção do Trabalho, por meio do instituto das “Mesas de Entendimento”[8], introduzido, originalmente, pela Instrução Normativa Intersecretarial 13, de 6.07.1999, durante a campanha institucional denominada “o novo perfil da fiscalização do trabalho”.
O objetivo deste ensaio, entretanto, não é examinar as transformações do desenho institucional da Inspeção do Trabalho, como um grande tema, mas voltar a lupa para um pequeno e importante recorte: o processo de construção do ilícito trabalhista, nomeadamente dos imperativos hipotéticos que designam as condutas infratoras passíveis de punição.
Trata-se, portanto, de problematizar a “natureza jurídica” do Ementário da Inspeção do Trabalho brasileira, instrumento de ação em vigor desde meados dos anos 1990, e que teria transcendido a sua proposta original, de mero catálogo de modelos textuais, visando ao aperfeiçoamento da atribuição subsuntiva da fiscalização trabalhista.
Para o Professor João de Lima Teixeira Filho[9], o Ementário teria evoluído para uma forma normativa em sentido estrito: um sumulário de jurisprudência administrativa. O que aqui se propõe, contudo, é ainda mais radical. O Ementário, como forma jurídica normativa, não teria se autodiferenciado como expressão de uma jurisprudência administrativa, ao menos na acepção tradicional do termo[10]. Sua construção, supondo um nível elevado de abstração, também é atravessada por um senso de oportunidade histórica, o que lhe confere o caráter de instrumento de política inspecional do trabalho e, ao mesmo tempo, de códice de tipos penais-trabalhistas.
2. O Dever de Punir e a Percepção do Ilícito Trabalhista
A bem elaborada Nota Técnica n. 62/2010/DMSC/SIT[11], que trata dos critérios aplicados ao instituto da dupla visita, é introduzida por “considerações gerais” sobre o que seria uma falsa antinomia entre vieses supostamente atribuídos à Inspeção do Trabalho, nomeadamente o punitivo e o orientador.
Supondo que tal discussão se situa no âmbito político ou ideológico, assumindo, por premissa, que essa questão não habita a esfera “técnica”, o Auditor-Fiscal do Trabalho (AFT) elaborador da citada NT resolve esse problema de forma simples: o dever de punir não exclui a faculdade de orientar.
Dito de outro modo, tem-se que a prática orientadora não exclui a punitiva, sendo certo que enquanto a lavratura do Auto de Infração está contida da esfera dos atos vinculados, o aconselhamento e orientação consistiriam em ações que se situam no halo das possibilidades e, portanto, sujeitas ao juízo discricionário do AFT.
Decerto que as considerações iniciais da NT n. 62/2010, pela ousada interdição discursiva proposta[12], parece destoar do contexto e das limitações analíticas que se impõem normalmente a esses documentos de referência com pretensão normativa. Diga-se isto, porque a boa saída para a “falsa antinomia”, autointitulada como “técnica”, é bem-sucedida em desenvolver uma solução para a questão da dupla visita, problematizada a partir do advento da LC n. 123/2005[13], valendo-se tão só do princípio da legalidade administrativa e do cânone romano-germânico ignorantia juris non excusat.
A menção feita à NT 62/2010, contudo, não se destina a criticá-la, de modo algum, mas chamar a atenção para a faixa de interesse da análise, qual seja o momento em que a infração trabalhista é caracterizada.
Dessa forma, as etapas do processo cognitivo antecedente que, segundo o autor, se situa no domínio da livre convicção do AFT, não seriam representativas do autêntico poder de polícia da Inspeção do Trabalho.
Em termos esquemáticos, a experiência anterior à “conclusão” pela infração poderia ser assim descrita:
Ao fim desse processo, caracterizada a ilicitude do fato submetido à observação do AFT, outro desdobramento não seria possível, senão a lavratura do A.I., pois nesse momento se impõe o dever legal de punir.
Em síntese, é a conclusão da NT n. 62/2010.
De fato, algumas modulações do poder de polícia administrativo da Inspeção do Trabalho já foram tratadas de forma mais ampla em estudos recentes (ASSUMPÇÃO, 2015, 2018), sejam elas decorrentes das formas de defesa da classe, de resistência à uniformização interpretativa ou procedimental, dos juízos de adequação sancionatória, ou da introdução de práticas restitutivas e saneadoras.
Nesse sentido, já se pode afirmar, com base nos estudos mencionados, que a perspectiva administrativista é demasiadamente pobre para diagnosticar a riqueza e complexidade desses fenômenos.
Contudo, mesmo considerando apenas a esquematização anteriormente proposta, o processo cognitivo que antecede a conclusão pela infração possui saliências tantas que, salvo a imposição obrigatória de certos algoritmos de otimização, não se é possível prever o seu desdobramento final.
Ilustra-se melhor o que aqui se afirma com o auxílio de uma linha de fuga deleuzeana (VASCONCELLOS, 2006) – a quase-literatura de ficção ficta – cujos cenários “hipotéticos”, baseados em fatos, se montam a seguir.
Veja o caso, por exemplo, de um Vereador, conhecido pela comunidade local por defender a causa da mobilidade urbana das pessoas com deficiência (PCDs). Ele procura a Gerência Regional do Trabalho (GRTb) da circunscrição para reclamar que os ônibus de uma determinada empresa da cidade não costumam parar para que elas (as PCDs) embarquem.
A apreensão do fenômeno narrado pelo parlamentar não parece corresponder a qualquer experiência anterior da fiscalização do trabalho, levando-se a concluir, preliminarmente, que o problema não se situa no campo das relações laborais, sendo o ímpeto inicial o de aconselhá-lo a procurar a Secretaria de Transportes do município, ou de Serviço Social.
Mas algo não está certo. É de se presumir que, pertencendo à comunidade política local, o Vereador soubesse perfeitamente onde ir, e quem procurar para solucionar o problema. Daí a pergunta: por que o Ministério do Trabalho?[14]
Tudo o que o Vereador tem são as reclamações do seu eleitorado. A percepção desse grupo social é que “os motoristas parecem que estão sempre distraídos, e não nos enxergam” ou “[…] estão sempre com pressa, e não têm paciência para nos ajudar a embarcar”.
A evidência de que o problema trazido ao extinto MTb esteja relacionado ao trabalho do motorista encoraja a investigação. Indo à empresa, procurando o sindicato, ouvindo os motoristas, descobriu-se que eles acumulam a função de cobradores, e não percebem a presença de cadeirantes nos pontos de embarque durante o trajeto. Além disso, visando a cumprir fielmente as exigências do contrato de concessão, a empresa teria fixado em regulamento a duração máxima para cada viagem, sendo que a atribuição que recai sobre os motoristas, no sentido de auxiliar as PCDs a embarcarem, dificulta o cumprimento dessas normas.
Certa vez um Juiz de Direito oficiou ao Gerente de uma GRTb (Gerência Regional do Trabalho), determinando que fiscalize o cumprimento de uma sentença judicial de sua lavra, segundo a qual certo órgão municipal não poderia atuar com funcionários contratados por prazo determinado.
Após ler a sentença, o chefe do Setor de Inspeção do Trabalho (SEINT) daquela GRTb constata que ela foi prolatada no âmbito de uma Ação Civil Pública (ACP), em que o Ministério Público Estadual (MPE) pretendia obrigar o município a realizar concurso público.
O ímpeto inicial era o de resistir à determinação judicial, uma vez que o objeto da demanda não se amolda aos gabaritos do direito do trabalho. Contudo, apesar dos problemas de contexto técnico, e de conexão entre a origem da demanda e o órgão demandado, o chefe do SEINT decide contatar o juízo estadual, a fim de saber mais sobre o contexto da “ordem”.
A conclusão, surpreendente, é que nem o MPE, nem a Justiça Estadual sabiam muito bem a quem recorrer, e acerca da Inspeção do Trabalho só tinham uma noção imprecisa de sua competência. Tudo que o juízo precisava é de que uma autoridade, com poderes de polícia e fé de ofício para examinar e decidir sobre relações de trabalho, verificasse a existência de contratos de emprego firmados com o município, em detrimento dos vínculos institucionais com servidores públicos. Sendo o caso, de quantos, de quem, a partir de quando, e para quê.
Ao fim e ao cabo, o chefe desse Setor de Inspeção do Trabalho (SEINT) resolveu não problematizar a demanda, e atender ao juízo, deslocando a “questão jurídica” para o plano ético, supondo um dever de agir quando se é autoridade, quando se tem expertise e competência para fazê-lo, em prol do interesse público.
Quando uma empresa interrompeu as férias coletivas dos empregados do setor de produção, e todos voltaram a trabalhar antes do tempo, o sindicato profissional resolveu ter com o chefe do Setor de Inspeção do Trabalho (SEINT) de uma GRTb, informando que alguns trabalhadores o procuraram para prestar reclamação.
Analisando a questão, a autoridade fiscal não titubeou. Trata-se, de fato, de uma demanda legítima.
As férias coletivas, uma vez avisadas, inclusive mediante ofício ao órgão ministerial, se tornam um episódio modificativo ex lege do contrato de trabalho, protegido pelo princípio da inalterabilidade unilateral in pejus do empregado, prevista no art. 468, da CLT.
Ordem de serviço (OS) emitida, foi-se a campo. Na empresa, o AFT confirmou os fatos, concluindo pela ocorrência do ilícito. Contudo, antes de lavrar o Auto de Infração (A.I.), ouviu do dono da empresa, uma das inúmeras pequenas prestadoras de serviço que orbitam na periferia de uma gigante da siderurgia nacional, que a concessão das férias coletivas foi a solução buscada para reduzir o custo da ociosidade da mão de obra contratada, pois fazia tempo que não recebia uma encomenda.
Ocorreu, contudo, que durante o gozo coletivo de férias, chegou à empresa uma um grande pedido de paletes metálicos, daí a iniciativa de chamar de volta os trabalhadores, pois o não atendimento daquela encomenda, de seu principal, senão único cliente, corresponderia a assinar a própria sentença de morte da empresa.
Eis o dilema enfrentado pelo nosso “hipotético” AFT.
Se ele é um experto do direito do trabalho, do direito civil, da doutrina constitucional, com bom trânsito pela sociologia jurídica e do direito, ele, um AFT “Hércules”[15], poderia aplicar, por analogia, o conceito de caso fortuito, subsumido da necessidade imperiosa, temperado pelo princípio do inherent powers para, afinal, “concluir” pela inexistência do ilícito.
Todavia, conhecer a legislação trabalhista, como condição de acesso ao cargo de AFT, não garante a ninguém o status de tratadista do direito, de modo que, não sendo um autômato cibernético, nosso AFT seria assolado, invariavelmente, pela incômoda sensação de que lavrar o AI, naquele contexto, não seria “fazer a coisa certa”[16].
Ele, um antiformalista[17], poderia “achar” simplesmente que não é justo, pois seria legítimo que tanto os trabalhadores, quanto os pequenos empreendedores queiram “sobreviver” no mundo capitalista. Desse modo, não pensa duas vezes em arriscar sua fé de ofício para afirmar a inocorrência do fato em questão.
Sendo experiente, ele poderia entender que a autuação não seria útil, pois não alteraria a realidade que se impôs à revelia daqueles trabalhadores e daquele empresário. Acreditando existir uma finalidade inerente à fiscalização trabalhista, que é promover a proteção do trabalho e dos trabalhadores, ele poderia deduzir que, neste caso, a “violência” do Estado estaria desamparando todos os sujeitos envolvidos, indo de encontro à diretiva gravada a fogo na sua “práxis de viver”[18].
Sendo inexperiente, ele pode ter medo. Certo que suas ações estão totalmente contidas em sua própria condição de servidor público, conclui que seu poder não vai além do seu dever, e qualquer desdobramento que se distinga dessa lógica “pode dar PAD”, pondo em risco o seu cobiçadíssimo cargo de AFT, recém-conquistado com muito sacrifício, estudo e dedicação.
Ele, ao contrário, pode imaginar-se tendo o domínio total do contexto, e por um momento lembrar, cinéfilo que é, do que disse Léa Seydoux a Daniel Craig[19], ou Leo Genn a Peter Ustinov[20], concluindo que o poder de punir também é o de não punir.
Mas ele poderia se render ao cinismo e pensar: “ora, é uma multinha à toa, não faz nem cócegas, e se pagar rápido ainda tem desconto, não vai ‘quebrar’ a empresa”. Aplica-se a multa, segue-se o trabalho, volta-se para casa e todos ficam felizes.
Nenhuma das situações anteriores é, de fato, hipotética. Haverá sempre alguém que, como este AFT, tenha vivido ou testemunhado cada uma delas, além de incontáveis outras, o suficiente para afirmar um domínio imperscrutável de decisões que se impõem à Inspeção do Trabalho, individuada na pessoa do Auditor-Fiscal do Trabalho, entre a emergência do fato social e a lavratura do Auto de Infração.
Nesse sentido, justifica-se a lógica reducionista da NT n. 62/2010, tomando a infração como um dado preexistente, para daí examinar a adequação das ações do AFT.
Mas seria a infração como um dado a priori, de fato, um pressuposto válido?
3. Um Código Penal-Trabalhista Denominado “Ementário”
O imperativo da uniformidade procedimental há muito orienta a Inspeção do Trabalho brasileira. Mesmo a recente guinada reflexiva, advinda com a Portaria n. 546/2010, quando se dispõe a fomentar o compartilhamento das experiências exitosas de outros cantos do país[21], não proporciona, apenas, a criação de oportunidades e espaços de difusão da inteligência prática do AFT. Ela também promove a manualização organizacional da Inspeção do Trabalho, que no MTb era é uma tradição longínqua, uma vez que a prática trabalhista sempre demandou intensa divulgação. Vale registrar que em algumas áreas específicas, sobretudo quando envolvem temas de regulamentação sumária, esses manuais receberam status de “quase-normas”, atraindo, com frequência, a crítica doutrinária dos hermeneutas.
No âmbito da Inspeção do Trabalho, a iniciativa da padronização de textos e documentos retroage a Jarbas Peixoto, com seu Código do Trabalho, publicado em 1945. É bom lembrar que “a forma certa” de redigir um Auto de Infração já foi critério de seleção de Inspetores do Trabalho, previsto no edital de 1944.
Modernamente, a ideia de um catálogo de ementas para descrever as infrações trabalhistas, segundo depoimento de uma ex-Secretária de Inspeção do Trabalho, surgiu com a iniciativa de informatização das rotinas de fiscalização, ocorrida em 1981. Mas o modelo de ignição do ementário moderno, utilizado hoje em dia, surgiu com a Portaria n. 1.193, de 24.11.1995.
De início, ela apresenta o Ementário como: 1) um instrumento que possibilita uma atuação uniforme e eficiente dos Agentes da Inspeção do Trabalho; 2) de uso interno e exclusivo dos “técnicos da Inspeção do Trabalho” e, por isso, vedada a sua reprodução.
O Ementário original foi revisto em 2002, com a Portaria MTE/SIT n. 32, de 22 de novembro. Em sua nova versão, foram incluídas ementas relativas à área de segurança e saúde no trabalho, inexistentes no Ementário anterior.
O Ementário de 2002 foi reeditado em 2008 (Portaria 73, de 06 de novembro), e nele foram incluídas várias ementas que, por normas isoladas (ex. Portarias SIT 142 e 143/2005, 165, 167 e 177/2006 e Portaria SIT 39/2008) já o haviam modificado no interregno entre as duas edições.
O Ementário vem sendo atualizado constantemente, e seu repositório oficial é o “Sistema Auditor”, cujo acesso é exclusivo do AFT ativo no Sistema Federal de Inspeção do Trabalho.
A seguir, uma comparação geral entre as três versões do Ementário para a lavratura de Autos de Infração:
Características | Edição de 1995 | Edição de 2002 | Edição de 2008 |
Utilização pelo AFT | Obrigatória | Obrigatória | Obrigatória |
Publicidade | Expressamente vedada | Expressamente vedada | Omissa quanto à publicidade* |
Competência supletiva do AFT para criar “ementa própria” | Expressamente autorizado | Expressamente desautorizado | Sem previsão** |
Quadro 1 – Comparativo das características básicas das edições do Ementário.
* O art. 1º da Portaria SIT n. 73/2008 informa que o Ementário está disponível também em documento digital, disponibilizado na intranet do MTb, cujo acesso é restrito aos servidores do órgão.
** Diferentemente da Portaria SIT n. 32/2002, que apresenta o Ementário como uma “edição revisada”, a Portaria SIT n. 73/2008 o apresenta como uma “2ª edição” do Ementário de 2002, sugerindo, pela omissão quanto à autorização para criar ementa própria, que tal possibilidade segue vedada.
Segundo o glossário disponível no sítio da Escola Nacional da Inspeção do Trabalho (ENIT) o Ementário é uma “coletânea de textos padronizados de ementas, produzida pela Secretaria de Inspeção do Trabalho, com utilização obrigatória pelos Auditores-Fiscais do Trabalho”.
Mesmo nas publicações de autoria de AFTs sobre a Inspeção do Trabalho, a referência ao Ementário, como um tópico temático analiticamente desenvolvido, é algo extremamente raro. Nesse sentido, chama bastante atenção a crítica formulada por Lima Teixeira (SÜSSEKIND et al, 2005), abaixo transcrita:
Desconvizinham-se do bom Direito as Portarias MTb 1.193 e 1.194, de 24.11.95, ambas de igual teor (!!), por incorrerem em flagrante transgressão aos princípios da publicidade e da legalidade, aos quais toda autoridade pública deve obediência (art. 37, caput, da CF). Por meio desses atos o Ministério do Trabalho aprovou a edição de “ementário para lavratura de autos de infração na área da Fiscalização do Trabalho”, e estabeleceu que é “vedada a sua reprodução”, cabendo ao Secretário da Fiscalização do Trabalho “adotar providências objetivando a permanente atualização do ementário, bem como dirimir dúvidas quanto à publicação do mesmo”.
Ora, as normas que orientam a ação fiscal estão embebidas em publicidade. Logo, descabe sobre elas erigir entendimento “sigiloso”, que percutirá nos mesmos destinatários daquela norma de amplo conhecimento, surpresando-os com interpretações passíveis de equívocos, tanto que sujeitas a “permanente atualização” e “dúvidas” no sei da própria fiscalização. Mas, enquanto vigente essa jurisprudência intra muros, que refoge às críticas doutrinárias, aniquila-se a função pedagógica que a inspeção tem de cumprir e onera-se o autuado pelo exercício do contraditório, mesmo em instância administrativa, vergastando-se pela segunda vez o art. 37 da Carta Política, agora por tornar inane o princípio da legalidade. (SÜSSEKIND et al, 2005, p. 1305). [Os grifos são meus].
O autor reputa ao Ementário o status de fonte formal do direito, à guisa de uma jurisprudência administrativa. Pode-se ir além, afirmando que tal jurisprudência tem efeito formalmente vinculante, uma vez que a partir da edição de 2002 seria vedado ao AFT formular “ementa própria”, incluindo o código genérico 999999-0 para identificar ocorrências não previstas no Ementário.
Contudo, embora se deva, de fato, considerar o Ementário um tipo peculiar de fonte formal do direito, não há semelhanças com os enunciados de súmulas do judiciário, que têm sua versão administrativa na forma dos “Precedentes Administrativos”, também ementados por meio de Resoluções.
Salvo os raros episódios em que a CLT anuncia expressamente certos tipos infracionais[22], isto é, uma definição legal da conduta infratora, seguida de cominação da pena de multa a ela associada, e a despeito de haver até o Título VIII, ao final de cada capítulo, uma seção destinada às “penalidades”, a CLT não possui uma “parte especial”, à semelhança do Código Penal Brasileiro, composta de preceitos primários (descrição da conduta infratora) e preceitos secundários (descrição do castigo ou sanção).
Trata-se o Ementário, portanto, de um documento de sistematização descritiva de condutas infratoras da ordem trabalhista, cujas ementas fazem as vezes de preceito primário da norma sancionadora.
Se a aplicação do dispositivo sancionatório depende da subsunção fática em relação ao preceito primário, sendo esta, precisamente, a função do AFT, então se pode dizer que o preceito secundário – a sanção, propriamente dita – materializada pela ação do AFT, decorre do Ementário, e não da CLT.
Nesse sentido, parece pertinente a crítica de Lima Teixeira, pois se o Ementário é, de fato, um “código penal-trabalhista”, seu status de norma abstrata lhe impõe a publicidade como imperativo constitucional.
Pode-se objetar, decerto, ponderando que o Ementário não passa de uma tentativa de padronização textual para a descrição de certas práticas ilícitas deduzidas do texto consolidado, e que a CLT não é uma “norma incriminadora”, no sentido penal, mas garantidora de direitos.
Todavia, é fato que a CLT também é um código de sanções, ora relacionadas a condutas específicas, como nos casos abaixo:
Art. 47. O empregador que mantiver empregado não registrado nos termos do art. 41 desta Consolidação ficará sujeito a multa no valor de R$ 3.000,00 (três mil reais) por empregado não registrado, acrescido de igual valor em cada reincidência.
§ 1º – Especificamente quanto à infração a que se refere o caput deste artigo, o valor final da multa aplicada será de R$ 800,00 (oitocentos reais) por empregado não registrado, quando se tratar de microempresa ou empresa de pequeno porte.
Art. 47-A. Na hipótese de não serem informados os dados a que se refere o parágrafo único do art. 41 desta Consolidação, o empregador ficará sujeito à multa de R$ 600,00 (seiscentos reais) por empregado prejudicado.”
Art. 51 – Incorrerá em multa de valor igual a 90 (noventa) vezes o valor-de-referência regional aquele que, comerciante ou não, vender ou expuser a venda qualquer tipo de carteira igual ou semelhante ao tipo oficialmente adotado.
Art. 52 – O extravio ou inutilização da Carteira de Trabalho e Previdência Social por culpa da empresa sujeitará esta à multa de valor igual a 15 (quinze) vezes o valor-de-referência regional. [Os grifos são meus].
Ora associadas a um conjunto indeterminado de condutas, como se vê nos exemplos abaixo:
Art. 75 – Os infratores dos dispositivos do presente Capítulo incorrerão na multa de 3 (três) a 300 (trezentos) valores-de-referência regionais, segundo a natureza da infração, sua extensão e a intenção de quem a praticou, aplicada em dobro no caso de reincidência e oposição à fiscalização ou desacato à autoridade.
Art. 153 – As infrações ao disposto neste Capítulo serão punidas com multas de valor igual a 160 BTN por empregado em situação irregular.
Art. 201 – As infrações ao disposto neste Capítulo relativas à medicina do trabalho serão punidas com multa de 30 (trinta) a 300 (trezentas) vezes o valor-de-referência previsto no art. 2º, parágrafo único, da Lei 6.205, de 29.04.1975, e as concernentes à segurança do trabalho com multa de 50 (cinquenta) a 500 (quinhentas) vezes o mesmo valor. [Os grifos são meus].
É precisamente nesse contexto que se insere o Ementário, que a despeito de se referir ao diploma consolidado, possui identidade distinta da própria CLT.
Considerando o texto de abertura da edição revisada de 2002 e da reedição de 2008, tem-se que o objetivo do esforço de atualização do Ementário é dar conta das “alterações havidas na legislação trabalhista” (BRASIL, 2002, p. 9; 2008, p. 9).
Tome-se como exemplo a Seção II (Jornada de Trabalho), do Capítulo II (Da Duração do Trabalho), do Título II (Das Normas Gerais de Tutela do Trabalho). Em 1995, a referida Seção II era composta de 8 artigos, 7 parágrafos e 2 incisos. Em 2002, passou a contar com 9 artigos, 13 parágrafos (além da alteração da redação do § 2º do art. 59) e 2 incisos. Em 2008, a Seção Jornada de Trabalho contava com 9 artigos, 14 parágrafos e 2 incisos.
Comparando-se o número de ementas relacionadas à Jornada de Trabalho, entre as três edições do Ementário, temos o seguinte:
Edição do Ementário | Número de Ementas |
1995 | 14 ementas, para 17 dispositivos legais |
2002 | 20 ementas, para 24 dispositivos legais |
2008 | 20 ementas, para 25 dispositivos legais |
Quadro 1 – Comparativo entre os Ementários em relação ao atributo “jornada”.
Façamos diferente.
Veja-se o art. 61, da CLT, que não sofreu qualquer alteração entre 1995 e 2008, seja na redação, ou no número de dispositivos.
Edição do Ementário | Número de Ementas |
1995 | 04 ementas |
2002 | 05 ementas |
2008 | 05 ementas |
Quadro 3 – Comparativo entre os Ementários em relação ao atributo “jornada” (Art. 61, CLT).
Agora, um outro exercício.
Os Ementários dispõem de quadros de ementas, classificadas por “atributo”, ou seja, temas que mantêm entre si uma relação de conexão. Com base no Ementário de 2008, os atributos de legislação são: registros, jornada, descanso, salário, FGTS, SD (Seguro-Desemprego), RAIS (Relação Anual de Informações Sociais), Vale-Transporte e outros.
Considerando o atributo “Jornada”, tem-se que todo e qualquer dispositivo a ele relacionado deve estar compreendido, necessariamente, entre os arts. 13 e 441, da CLT, que se inserem nos Títulos II (Normas Gerais de Tutela do Trabalho) e III (Normas Especiais de Tutela do Trabalho) do texto consolidado.
As alterações definitivas por acréscimo na CLT, havidas entre novembro de 1995 e novembro de 2002, especificamente no intervalo entre os arts. 13 e 441 foram:
- Lei Ordinária 10.421 de 15.04.2002 – (Acréscimo de Artigo). Art. 392-A. Tema: licença-maternidade.
- Lei Ordinária 10.270 de 29.08.2001 – (Acréscimo de Parágrafo). Art. 29, §§ 4º e 5º. Tema: anotações na CTPS.
- Medida Provisória 2.164-41, de 24 e Agosto de 2001 – (Acréscimo de Artigo). Art. 58-A; Art. 130-A[23]. Tema: contrato a tempo parcial (horas de trabalho semanais, forma contratual e férias)
- Lei Ordinária 10.243 de 19.06.2001 – (Acréscimo de Parágrafo). Art. 58, §§ 1º e 2º.Tema: jornada de trabalho.
- Lei Ordinária 10.097 de 19.12.2000 – (Acréscimo de Inciso). 430, incs. I e II; Art. 433, incs. I a IV. Tema: contrato de aprendizagem.
- Lei Ordinária 10.097 de 19.12.2000 – (Acréscimo de Parágrafo). 428, §§ 1º a 4º; Art. 429, § 1º-A; Art. 430, §§ 1º a 3º; Art. 433, § 2º. Tema: contrato de aprendizagem.
Por conseguinte, a única alteração por acréscimo na CLT, no mesmo intervalo, ocorrida entre novembro de 2002 e novembro de 2008, adveio da Lei Complementar n. 123 de 14.12.2006, que adicionou o § 3º ao Art. 58 (horas in itinere).
O total de acréscimos de dispositivos na CLT, considerando o intervalo selecionado, no período de 1995 a 2002, foi de 20 (14 parágrafos, 4 incisos e 2 artigos). Já no período de 2002 a 2008 foi de apenas 1 parágrafo.
Todavia, considerando o intervalo selecionado, o interregno entre 1995 e 2008 e o escopo temático das alterações havidas por inclusão, verifica-se que apenas 4 dispositivos adicionados ao texto celetista dizem respeito ao atributo jornada (caput do art. 58-A, §§ 1º, 2º e 3º do art. 58).
Comparando-se os quadros de ementas relacionadas ao atributo jornada, temos o seguinte:
Edição do Ementário | Número de Ementas |
1995 | 20 ementas |
2002 | 136 ementas* |
2008 | 135 ementas |
Quadro 4 – Quadro comparativo entre Ementários em relação ao atributo “jornada” (Títulos II e III).
* Foram incluídas as ementas relacionadas ao atributo jornada, pertinentes às chamadas profissões regulamentadas.
Examinando os três quadros anteriores, vê-se que os Ementários editados em 2002 e 2008, especificamente com relação ao atributo jornada, contêm um número de ementas bem parecido (136 e 135, respectivamente). O dado interessante fica por conta do fato de a que CLT foi aditada de um dispositivo (§ 3º do art. 58), enquanto que o total de ementas foi reduzido de 136 para 135.
Selecionando apenas a Seção II, vê-se que o dispositivo mencionado acima foi incluído justamente no âmbito dessa Seção, sem que, todavia, houvesse algum acréscimo no número de ementas, que permaneceu estável em 25.
A coisa muda de figura quando se comparam os Ementários de 1995 e 2002. Os dados discrepam de forma bem mais acentuada, mesmo se considerarmos apenas a Seção II, da CLT. Mas o dado curioso fica por conta do aumento do número de ementas relacionadas ao Art. 61, da CLT, que jamais sofreu qualquer alteração, mas que em 2002 produziu um novo tipo infracional, em relação a 1995, mesmo com o “desaparecimento” da ementa n. 000028-0, prevista no Ementário desse ano[24].
Nesse sentido, se o Ementário de 2002, assim como o de 2008, foi editado para dar conta das “alterações havidas na legislação trabalhista”, como o número de condutas ilícitas deduzidas de um artigo que não sofreu alteração pode ter aumentado?
O contrário também é válido, se verificarmos que o número total de dispositivos relacionados ao atributo jornada aumentou (em uma unidade), entre 2002 e 2008, mas o total de ementas foi reduzido (também em uma unidade), no mesmo período.
Além da relação entre a variação do número de dispositivos legais, e a variação no número de tipos infracionais não obedecerem a uma proporção direta, há, também, um problema de captura de sentido no processo de extração de tipos infracionais, a partir dos dispositivos celetistas.
Tome-se, novamente, o art. 61 da CLT. Ele trata de um episódio a que a doutrina denomina “necessidade imperiosa”. Tal episódio reúne, numa tradução técnico-economicista, os conceitos genéricos de força maior e caso fortuito, aplicados ao regime de proteção do trabalhador, em relação à duração do trabalho.
Sem entrar muito no mérito doutrinário, tem-se que a necessidade imperiosa engloba situações específicas em que se autoriza mitigar tanto a condição consensual, quanto o limite legal (Art. 59, caput, CLT) para a prorrogação da jornada.
À ocasião do Ementário de 2008 (e, obviamente, de 2002 e 1995), ainda se exigia como condição formal para a configuração da necessidade imperiosa, a comunicação ao MTb do fato que a suscitou, no prazo de 10 dias (§ 1º do art. 61, CLT), ou antes disso, diretamente ao AFT, em caso de diligência fiscal[25].
Nesse sentido, a Ementa n. 001000-6, introduzida na edição de 2002, e mantida na de 2008, possuía a seguinte redação:
Deixar de comunicar à autoridade competente, no prazo de 10 (dez) dias, o excesso do limite legal ou convencionado para a duração do trabalho, quando ocorrer necessidade imperiosa de serviço (art. 61, § 1º, da Consolidação das Leis do Trabalho).
O problema com essa ementa é que ela descreve uma conduta infratora que, simplesmente, não tem existência independente do próprio fato que suscitou a necessidade imperiosa.
A conclusão de que a empresa cometeu um ilícito trabalhista ao não ter informado, no prazo legal, a ocorrência da necessidade imperiosa, toma a sua própria ocorrência como um pressuposto fático, o que é paradoxal.
Se a avaliação fática da ocorrência da necessidade imperiosa (sim, o AFT pode descontruí-la) depende do uso legítimo, pela empresa, do argumento que a invoca, o que, por sua vez, depende da comunicação ao MTb, como é possível isolar a inação da empresa em satisfazer tal condição, como um ilícito trabalhista independente, sem que antes se reconheça como autêntica a ocorrência da necessidade imperiosa não comunicada?
De fato, a mera comunicação ao MTb não chancela automaticamente a ocorrência da necessidade imperiosa, apenas confere à empresa o direito de ter seu argumento apreciado pelo AFT, que pode confirmá-lo, ou não. A necessidade imperiosa é exceção, em relação à regra que determina a limitação em duas horas a prorrogação da jornada. A comunicação ao MTb é, portanto, condição de possibilidade da exceção. Sem ela, a exceção cede lugar à regra, e o fato deverá ser analisado à luz do caput do art. 59, da CLT, ou seja, uma prorrogação de jornada como outra qualquer.
A tautologia demonstrada compromete, portanto, a existência desse ilícito. Ele tem previsão, mas a sua ocorrência é logicamente impossível.
Por tudo que se expôs, uma conclusão parece certa, a que é deveras imprudente tomar o ilícito trabalhista como um dado a priori. Não se trata de um fenômeno autossenciente que simplesmente “salta” do texto legal para ganhar o mundo, independente da cognição de um observador externo.
A Inspeção do Trabalho é entronizada constitucionalmente no papel desse observador. Sua perspectiva é influenciada pelo acervo das experienciações e por um senso de oportunidade histórica[26]. O Ementário não sistematiza propriamente um conjunto de condutas ilícitas, mas de percepções do ilícito, a partir da perspectiva da Inspeção do Trabalho.
Mas uma razão, portanto, para que prevaleça a transparência reclamada por Lima Teixeira, cuja concordância se expressa no sítio da internet – não oficial – que hospeda o texto do Ementário de 2008: “Às leis deve ser dada a maior divulgação possível”[27].
4. Considerações Finais
Como antecipado na introdução, este artigo se propõe a abordar apenas um dos tópicos de um exame bem mais complexo, que vai desde a análise do télos protetivo da Inspeção do Trabalho brasileira e sua relação com o próprio direito do trabalho, ao processo de transformação institucional pelo qual a nossa fiscalização trabalhista vem passando, desde o advento da CRFB/88 (ASSUMPÇÃO, 2018).
O que se destaca, nesta oportunidade, é o Ementário do qual faz uso a Inspeção do Trabalho, com o fim de padronizar os textos descritivos das infrações trabalhistas, subsumidas do texto consolidado – a CLT.
Considerando o estado da arte sobre a Inspeção do Trabalho do Brasil, é raríssimo que alguma obra literária, mesmo composta por AFTs[28], aborde o Ementário como um tema de análise, ou divulgue seu conteúdo. Esse silêncio apenas confirma o que, no âmbito da fiscalização trabalhista, parece uma obviedade: o Ementário é tão só um apanhado de textos.
Contudo, como se viu, há autores que enxergam algo mais. Tomam o Ementário como um sumulário de entendimentos administrativos, um glossário de proposições jurídicas ou, como ora se propõe, um verdadeiro códice penal-trabalhista.
De qualquer modo, tais possibilidades reforçam o que se demonstrou nos mencionados estudos recentes sobre o tema; que a Inspeção do Trabalho não se resume ao mero exercício subsuntivo da vigilância e do controle de legalidade das condutas patronais, no âmbito das relações de trabalho. Bem mais que isso, trata-se de uma operação cognitiva, tanto no campo fático, quanto no hermenêutico, cujo decisionismo latente apenas revela que a Inspeção do Trabalho, no exercício de sua função reguladora, não possui apenas uma dimensão política, mas constitui, ela mesma, forma de ação política do Estado, no âmbito das relações de trabalho.
5. REFERÊNCIAS
ASSUMPÇÃO, L. F. Monsores de. O Sistema, a História, a Política e o Futuro da Inspeção do Trabalho no Brasil. 2018. 451 f. Tese (Doutorado em Ciências Jurídicas e Sociais) – Universidade Federal Fluminense, Niterói, 2018.
______. A Inspeção do Trabalho no Brasil, apontamentos acerca do processo de reconfiguração institucional a partir da Constituição Federal de 1988. Trabalho apresentado no XV Encontro Nacional da ABET, Rio de Janeiro, RJ, nos dias 06 a 09.09.2017. Anais do XV Encontro Nacional da ABET, 2017. Disponível em: https://drive.google.com/file/d/0BzewPTlXjDnnaE9OWXFNMEhwOFU/view. Acesso em: 25/fev./2019.
______. A Inspeção do trabalho, as Relações de Trabalho e o Problema da Integração Intersistêmica, ou a asfixia da mediação de conflitos de direitos no âmbito do Ministério do Trabalho e Emprego. Trabalho apresentado no CONINTER 4, Foz do Iguaçu, PR, nos dias 08 a 11.12.2015. Anais…CONINTER 4. Disponível em: http://www.aninter.com.br/Anais%20Coninter%204/GT%2024/03.%20A%20INSPECAO%20DO%20TRABALHO,%20AS%20RELACOES%20DE%20TRABALHO%20E%20O%20PROBLEMA.pdf. Acesso em: 20/ fev./2019.
BIGNAMI, Renato. A Inspeção do Trabalho no Brasil, procedimentos especiais para a ação fiscal, São Paulo, LTr, 2007.
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______. Ministério do Trabalho. Ementário, Elementos para Lavratura de Auto de Infração. 2ª edição – revista e ampliada. Brasília, MTE, SIT, 2008.
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Notas de Rodapé
[1] Bacharel em Direito e Economista. Especialista em Direito do Trabalho e Legislação Social. Mestre e doutor em Direito e Sociologia. Auditor-Fiscal do Trabalho. Professor do Centro Universitário Geraldo di Biase. Membro da Associação Brasileira de Pesquisadores em Sociologia do Direito (ABraSD) e da Rede de Pesquisa Empírica em Direito (REED).
[2] Ao lado da Justiça do Trabalho e do Ministério Público do Trabalho.
[3] Admite-se que o marco regulatório de uma proto-inspeção do trabalho, territorial e subjetivamente restrita à Capital Federal e ao trabalho dos menores nas oficinas e fábricas, tenha advindo com o Decreto 1.313/1891. Como modelo institucionalizado, embora restrito ao estado de São Paulo, pode-se retroagir à criação do Departamento Estadual do Trabalho (DET), em 1911, e aos primeiros trabalhos de campo e inquéritos sociais, realizados a partir de 1912. Como forma institucional regulada por norma federal, a Inspeção do Trabalho surge com a primeira versão do Departamento Nacional do Trabalho (DNT), em 1918 e, mais adiante, em 1921, com a sua proposta regimental. Ela retorna em 1925, com a reformulação do Conselho Nacional do Trabalho (CNT), criado em 1923 para “substituir” o natimorto DNT. Como sistema e política nacionalmente implementada, a Inspeção do Trabalho brasileira surge com a versão varguista do Departamento Nacional do Trabalho, em 1931. Já a unidade territorial da política de inspeção do trabalho só veio mesmo em 1952, com a extinção (definitiva) do DET e com o restabelecimento da Delegacia do Trabalho do Estado de São Paulo.
[4] De acordo com Assumpção (2018), como uma das conclusões da 3ª parte de sua recente tese doutoral, que trata das transformações do desenho institucional da Inspeção do Trabalho brasileira, no pós-CRFB/88.
[5] Em relação ao conceito cibernético de black box, ver Glanville (1982). Considerando a teoria dos sistemas sociais, a abordagem luhmanniana adota uma perspectiva funcionalista do direito, tomando como referência o sistema social. Essa função, em linhas muito gerais, emerge da necessidade de o direito resolver um problema temporal “que se apresenta na comunicação social, quando a comunicação em processo não se basta a si mesma (seja como expressão, ou como ‘prática’) tendo que se orientar e se expressar em expectativas de sentido que implicam tempo. A função do direito tem a ver com expectativas” (LUHMANN, 2016, p. 100). Comunicar expectativas e levá-las ao conhecimento na comunicação, eis a função do direito, segundo Luhmann. Logo, segundo o referencial sistêmico, a opacidade atribuída à Inspeção do Trabalho, caso se justifique, comprometeria a integridade ontológico-autopoiética do próprio sistema do direito.
[6] Carteira de Identificação Fiscal iniciada com 35. “Os CIF 35” se tornou uma expressão corriqueira no meio fiscal, sobretudo entre os AFTs ingressos na década de 90, utilizada para designar, às vezes de forma jocosa e crítica, os AFTs da “geração século XXI” (ASSUMPÇÃO, 2018, p. 407).
[7] Uma dessas exceções é Renato Bignami, em sua dissertação publicada em 2007: A Inspeção do Trabalho no Brasil: procedimentos especiais para a ação fiscal.
[8] Atualmente redesignado genericamente como Procedimento Especial de Fiscalização.
[9] Conferir no volume 2 do Instituições de Direito do Trabalho, (SÜSSEKIND et al, 2005, p. 1305).
[10] Há similitudes, de fato, com a jurisprudência, no que tange ao processo de depuração histórica dos entendimentos e fundamentos da decisão judicial. Mas o caráter vinculante atribuído ao Ementário não vem da apreciação fática ou hermenêutica, mas da cognição vertida para produzir, a partir de um estatuto de direitos – a CLT – um códice de preceitos primários que tipificam condutas infratoras.
[11] Disponível em: http://www.sinpait.com.br/download/notatecnica622010duplavisita.5.pdf. Acesso em: 23.fev.2019.
[12] A afirmação de que o debate sobre os perfis institucionais da Inspeção do Trabalho, extremados pelo punitivo e o orientador, pertence à seara política e ideológica, e que por isso deve ser invalidado em favor do “conhecimento técnico” contido na NT é, em si, carregado de conteúdo ideológico e político. Por outro lado, ao admitir que tal debate tem espaço nos “meios especializados”, o autor considera, contraditoriamente, que a questão da antinomia entre perfis busca adesões dentro do que Gusfield (1981) chama de discurso de especialistas. Portanto, dentro do domínio da técnica.
[13] Que instituiu o estatuto da microempresa e da empresa de pequeno porte.
[14] Manteve-se a sigla MTb porque a “hipótese” a que se faz referência se baseia em fato ocorrido antes da extinção do Ministério do Trabalho, e a absorção da fiscalização trabalhista pelo Ministério da Economia. Contudo, a Gerência Regional do Trabalho, exatamente com esta denominação, foi mantida na nova estrutura.
[15] Aqui, a referência a Dworkin é proposital.
[16] Ver Sandel (2012).
[17] Sobre o formalismo na perspectiva de Guerreiro Ramos, conceito derivado de uma das classificações do etapismo social formulado por Fred Riggs: as “sociedades prismáticas”, ver em Vieira, Costa e Barbosa (1982).
[18] Ver Maturana (2001).
[19] Respectivamente Madeleine Swann e James Bond, em “007 contra Spectre” (2015).
[20] Respectivamente Petronius e Nero, em “Quo Vadis” (1951).
[21] Que são muitas, e de grande destaque, valendo citar, só a título de exemplo, as operações do Grupo Móvel de Combate ao Trabalho Escravo, em ação desde 1995. O maior operativo realizado no Brasil, até o momento, junto à megaprestadora de serviços de teleatendimento, a Contax, que durou quase dois anos (abril/2013 a dezembro/2014), abrangeu 7 estados, e um contingente de aproximadamente 50 AFTs. O operativo realizado em 2016 no município do Rio de Janeiro, envolvendo 30 empresas de ônibus. O trabalho do projeto nacional de combate à terceirização ilícita. As ações de combate ao trabalho escravo e degradante urbano nas oficinas de facção de São Paulo, ou nas pastelarias do Rio de Janeiro. No mesmo estado, a premiada iniciativa da coordenação do projeto de inclusão de jovens aprendizes, voltada para a reinserção social de adolescentes em situação de vulnerabilidade, dentre outros.
[22] Ex. Art. 29, § 5º; arts. 47 e 47-A; arts. 51 a 56; art. 332; art. 347; art. 435; art. 477, § 8º.
[23] Em vigor por força do Art. 2º, da Emenda Constitucional n. 32 de 2001.
[24] Cuja redação era: “Deixar de remunerar as horas excedentes com acréscimo de, pelo menos, 50% sobre a remuneração de hora normal, no caso de realização ou conclusão de serviços inadiáveis ou cuja inexecução possa acarretar prejuízo manifesto (art. 61, § 2º).”
[25] Essa exigência foi suprimida pela Lei 13.467/2017 (reforma trabalhista).
[26] Um exemplo bastante ilustrativo diz respeito à recente inclusão, em 29.05.2018, da ementa n. 001961-5: “Efetuar a paralisação das atividades empresariais com o objetivo de provocar lock-out. “Art. 722 da Consolidação das Leis do Trabalho.” Observe-se que o art. 722 faz parte do texto original da CLT, e jamais havia suscitado a percepção de que em seu conteúdo se “escondia” uma conduta ilícita. Não antes, pelo menos, da ocorrência da “greve” nacional dos caminhoneiros, iniciada em 21.05.2018, obrigando o governo a assinar um acordo com algumas das lideranças do movimento, em 24 de maio. A manifestação de parte das lideranças grevistas, no sentido de que o acordo não era legítimo, pois além de ter sido firmado por representantes que não “falavam pela categoria”, não contemplava certos itens essenciais da agenda dos grevistas, levou o governo a “suspeitar” da ocorrência de locaute, manifestada em declaração pública em 26 de maio, em tom de convicção, pelo Ministro Carlos Marun, da Secretaria de Governo. Três dias depois a SIT incluiu no Ementário (disponível somente a quem tem acesso ao Sistema Auditor) uma ementa reconhecendo a ilicitude da prática do locaute.
[27] Conferir em: http://www.trabalhoseguro.com.
[28] Seria o caso, por exemplo, do livro “Processo Administrativo do Trabalho”, publicado em 2009 pelo AFT Jair Teixeira dos Reis.