Constitucionalização do Direito Civil e do Direito do Consumidor Como Efetividade das Garantias Fundamentais

DOI: 10.19135/revista.consinter.00010.09
Recebido/Received 15.03.2019 – Aprovado/Approved 30.04.2019

Marcos Alves da Silva[1] – https://orcid.org/0000-0002-3868-9435
E-mail: marcos@marcosalves.adv.br

Luiz Carlos Moreira Junior[2] – https://orcid.org/0000-0002-9752-9159
E-mail: lcmoreira@osaadvocacia.com.br

Leonardo Baldissera[3] – https://orcid.org/0000-0002-9151-4925
E-mail: baldisseraleo@gmail.com

Resumo: O presente estudo revela uma abordagem da codificação civil brasileira aliada a importantes fatores históricos que consagraram direito do consumidor como norma especial, bem como discorre sobre os anseios que levaram à Constitucionalização desses instrumentos jurídicos como direitos fundamentais na Carta Política em consonância aos princípios de direitos humanos e da dignidade da pessoa humana e os respectivos impactos nas relações contratuais, à exemplo da relativização do pacta sunt servanda. Demonstraremos ainda, que a democracia se impõe como instrumento para efetividade dos direitos oriundos da Constitucionalização do Código Civil de do Direito do Consumidor, cuja condição (de democracia) para a sua efetividade no estado de direito também depende de fatores multidisciplinares das relações sociais.

Palavras-chave: Codificação. Direito Civil. Direito do Consumidor. Dignidade. Direitos Fundamentais. Efetividade. Democracia.

Abstract: The present study reveals an approach to Brazilian civil codification coupled with important historical factors that have enshrined the right of the consumer as a special norm, as well as discusses the aspirations that led to the Constitutionalisation of these legal instruments as fundamental rights in the Political Charter in line with the principles of human rights and the dignity of the human person and the respective impacts on contractual relations, as in the relativization of pacta sunt servanda. We will also demonstrate that democracy imposes itself as an instrument for the effectiveness of the rights deriving from the Constitutionalisation of the Civil Code of Consumer Law, whose condition (of democracy) for its effectiveness in the rule of law also depends on multidisciplinary factors of social relations.

Keywords: Codification. Civil Right. Consumer Law. Constitutionalisation. Dignity. Fundamental Rights. Effectiveness. Democracy.

Sumário: 1. Do Advento Da Codificação Civil no Brasil; 2. Abordagem Histórica do Direito do Consumidor e Sua Consagração Norma Especial de Direito Civil; 3. Da Constitucionalização do Direito Civil; 4. Da Constitucionalização do Direito do Consumidor; 5. Direitos Fundamentais e Democracia; 6. Conclusão; Referências

1 DO ADVENTO DA CODIFICAÇÃO CIVIL NO BRASIL

Desde que o ensino jurídico foi instituído no Brasil existia preocupação e o interesse do Estado na atualização do Direito Civil no intuito de constituir um direito próprio e adequado aos reclamos sociais, bem como para se desvencilhar das desatualizadas Ordenações Filipinas em homenagem à uma prestação jurídica mais efetiva e completa aos jurisdicionados.

 

É nesse período que se tem um outro acontecimento transcendente para a evolução do Direito no Brasil: o estabelecimento do ensino jurídico, pela lei de 11.08.1827, criando dois cursos, nas academias de São Paulo e de Olinda, que se iniciaram no dia 28 do mesmo mês. Não foram porém adotados os estatutos da Universidade de Coimbra. Ao espírito liberal dos brasileiros não correspondia um ensino jurídico caracterizado por excesso de erudição, uma preocupação muito grande com antiguidades, com sutilezas, sem o cuidado que deveria ser primordial no que diz respeito à aplicação prática desses conhecimentos. Daí recomendações de que o ensino do Direito Civil fosse feito nos moldes das Instituições de Mello Freire, e que o professor, ao expor a matéria, se reportasse não apenas às opiniões acertadas dos tratadistas, mas também às más, manifestando sua repulsa aos conceitos errôneos, ponto de vista de perfeita atualidade. O Direito Privado começou a ser objeto de reformas principalmente no que diz respeito à necessidade de um afastamento das Ordenações e de inspiração nos princípios de direito seguidos pelas demais nações civilizadas (CHAVES, 2000, p. 78).

 

Tendo em vista a conclusão do Código Civil de 1916 por Clovis Beviláqua, e a sua respectiva vigência no ordenamento por meio da Lei 3.071/1916, tal marco “foi fundamental para a finalização do processo de independência e para a modernização do Estado” (FIUZA, 2012, p. 14).

Nesse contexto, Antônio Chaves, citando Spencer Vampré, pontua que, a partir de então o direito brasileiro recebeu um Código que reflete a melhor produção jurídica nacional, demonstrando a capacidade do nosso povo em construir legislação de extrema importância para atender aos seus anseios (CHAVES, 2000, p. 103).

Por óbvio que diante das sucessivas e ininterruptas relações humanas e da consequente e natural evolução da humanidade, surgiram novos desafios e conflitos sociais que necessitaram de efetiva disciplina com vistas à propiciar a satisfação de direitos e interesses individuais e coletivos, bem como atribuir segurança jurídica aos cidadãos, emergindo a percepção de que os códigos possuem efetividade jurídica social por determinado período, cuja constante modificação de anseios e celeumas, como visto, implicam na sua contínua revisão e atualização legislativa.

Nas palavras de Beviláqua (1931), os códigos representam uma concepção do mundo em determinado momento da história para atender as necessidades dos seus jurisdicionados e, assim, satisfazê-los da melhor forma possível (apud CHAVES, 2000, p. 103).

Com efeito, é cediço que no século passado ocorreram diversas transformações e quebra de paradigmas que geraram grande impacto no mundo, à exemplo do profundo avanço tecnológico que compreende desde a corrida espacial e armamentista; evolução automobilística; farmacêutica, computação; telecomunicações e transportes públicos para citar alguns. Sem contar expansão do capitalismo com a globalização da economia que demandaram novas soluções e desafios regulatórios, tanto por parte dos Estados como pelos entes privados através da autorregulação.

Deste modo, notou-se que o diploma de 1916 não contemplava todas as demandas multidisciplinares que a sociedade demandava em razão da incessante e dinâmica evolução histórica e das cotidianas relações interpessoais, o que culminou advento de diversas leis especiais, como a Lei 6.121/1962 que instituiu o Estatuto da Mulher Casada; Lei de Alimentos n. 5.478/1968; Lei de Registros Públicos n. 6.015/1973; Lei das Sociedades Anônimas n. 6.404/1976; Lei do Divórcio n. 6.515/1977; Lei 8.079/1990 que instituiu o Código de Defesa do Consumidor; o Estatuto da Criança e do Adolescente por meio da Lei 8.069/1990; Lei do Bem de Família n. 8.009/1990 para citar alguns.

Nesse jaez, Maria Berenice Dias (2018) leciona que o Estatuto da Mulher Casada devolveu a plena capacidade a mulher que passou a ser colaboradora da sociedade conjugal, bem como dispensou a autorização marital para o trabalho, cujo patrimônio ficaria protegido das dívidas contraídas pelo marido ainda que contraídas em benefício da família, o que representa mais um exemplo da incompatibilidade daquela legislação aos anseios sociais que se sucederam nas décadas seguintes à sua vigência, culminando, assim, na necessidade de uma legislação civil mais efetiva e contemporânea, o que será buscado por meio do Código Civil de 2002 e também pelo Código de Defesa do Consumidor ante a Constitucionalização destes em consonância à atual Carta Política, conforme será exposto no presente trabalho.

2 ABORDAGEM HISTÓRICA DO DIREITO DO CONSUMIDOR E SUA CONSAGRAÇÃO NORMA ESPECIAL DE DIREITO CIVIL

Além da constitucionalização da norma puramente civil, também houve a preocupação do constituinte em garantir a proteção dos consumidores com vistas a lhes propiciar dignidade, segurança jurídica e, ainda, a promulgação de uma legislação específica com status de ordem pública e interesse social nos termos dos arts. 5°, inc. XXXII, 170, inc. V, da Constituição Federal de 1988 e art. 48 de suas Disposições Transitórias.

Essa necessidade legislativa decorreu de diversos incidentes e subsequentes reflexos que culminaram numa série de medidas nos Estados Unidos com vistas a conceber proteção, ainda que embrionária, ao consumidor. Assim, destacamos alguns dos relevantes acontecimentos históricos a esse respeito:

1872 – O advento da SHERMAN ANTI TRUST ACT (Lei Sherman), que surgiu o propósito de reprimir fraudes no comércio e a práticas desleais, como os monopólios e o ajuste de preços entre empresas.
1891 – Surgimento do NEW YORK CONSUMERS LEAGUE como primeiro organismo de defesa do consumidor.
1906 – O escritor Upton Sinclair publicou o livro THE JUNGLE, cuja repercussão dessa obra levou à edição da PURE FOOD AND DRUG ACT ante as revelações do sistema fabril de alimentos derivados da carne.
1907 – Nasce o MEAT INSPECT ACT para o controle e fiscalização do comércio de carne.
1914 – É criado o FEDERAL TRADE COMISSION.
1927 – Nasce o PFDA (Pure Food Drug Insecticide Administration), que se transformou na atual FDA (Food and Drug Administration) no controle de alimentos e medicamentos.
1936 – Surge o CONSUMERS UNION, que se tornou o maior órgão de proteção do consumidor do mundo.
1962 – No mês de março daquele ano, o Presidente Kennedy encaminha ao Congresso Americano afirmando, em síntese, que os consumidores seriam o maior grupo da economia que é afetado por quase todas as decisões econômicas, apresentando naquela ocasião a Declaração dos Direitos Essenciais do Consumidor que deveriam ser respeitados: 1 – Direito à saúde e à segurança; 2 – Direito à informação; 3 – Direito à escolha; 4 – Direito a ser ouvido.

Fonte: Adaptado GUGLINSKI (2014)

A Europa, por sua vez, também atravessou uma série de movimentos importantes ao reconhecimento do direito do consumidor ao longo da história, conforme destacamos abaixo:

1948 – Surge a ORGANIZAÇÃO EUROPEIA DE COOPERAÇÃO ECONÔMICA (OECE), tendo como objetivo administrar o auxílio financeiro americano pelo Plano Marshall.
1960 – Os países membros da OECE passaram a ajudar os países em desenvolvimento, alargando as atribuições daquela instituição. No mesmo ano a OECE foi extinta e se instituiu a OCDE (Organização de Cooperação e Desenvolvimento Econômico Europeu), e ainda, naquele mesmo ano foi criado o IOCU (International Organization of Consumers Union).
1971 – Na Suécia, a proteção do consumidor passa a contar com o Ombudsman e o Juizado de Consumo, cujo modelo, mais tarde, seria seguido pela Noruega, Dinamarca e Finlândia.
1976 – A Comissão dos Consumidores criou a Carta dos Consumidores, o qual foi primeiro documento oficial na Europa a tratar sobre Direito do Consumidor.
1977 – Surgiu na Inglaterra o Unfair Contract Terms Act, que consistia em um instrumento jurídico para buscar o reconhecimento da nulidade de cláusulas abusivas que prejudicassem o consumidor.

 

Fonte: Adaptado GUGLINSKI (2014)

Ademais, na década de 1970, “[…] a Comissão de Direitos Humanos das Organizações das Nações Unidas (ONU), na 29ª sessão, reconheceu como direitos fundamentais e universais do consumidor, aqueles dispostos na Declaração dos Direitos Essenciais do Consumidor dos Estados Unidos” (FARIA, 2008).

No ano de 1985, a Assembleia Geral da ONU editou a Resolução 39/248 de 10.04.1985 que tratou sobre a proteção ao consumidor e, dessa forma, reconheceu a sua vulnerabilidade no âmbito internacional. Por meio da referida norma, foram instituídas diretrizes que os Estados atuassem em diversas frentes com o intuito de propiciar proteção ao consumidor, assim dispondo:

 

[…] Taking into account the in terests and needs of consumers in all countries, particularly those in developing countries; recognizing that consumers often face imbalances in economic terms, educational levels, and bargaining power; and bearing in mind that consumers should have the right of access to non-hazardous products, as well as the right to promote just, equitable and sustainable economicand social development, thes e guidelines for consumer protection have the following objectives: (a) To assist countries in achieving or maintaining adequate protection for their population as consumers; (b) To facilitate production and distribution patterns responsive to the needs and desires of consumers; (c) To encourage high levels of ethical conduct for those engaged in the production and distribution of goods and services to consumers; (d) To assist countries in curbing abusive business practices by all enterprises at the national and international levels which adversely affect consumers; (e) To facilitate the development of independent consumer grou ps; (f) To further international co-operation in the field of consumer protection; g) To encourage the development of market conditions which provide consumers with greater choice at lower prices (ORGANIZAÇÃO DAS NAÇÕES UNIDAS (ONU), 1985, p. 2).

 

No Brasil, durante o mesmo período foram constituídos diversos órgãos e medidas que corroboraram para a proteção do consumidor:

 

Por força do engajamento de vários setores da sociedade, por meio do Decreto 91.469, de 24.07.1985, foi criado o Conselho Nacional de Defesa do Consumidor, do qual fizeram parte associações de consumidores, Procons Estaduais, a Ordem dos Advogados do Brasil, a Confederação da Indústria, Comércio e Agricultura, o Conselho de Auto-Regulamentação Publicitária, o Ministério Público e representações do Ministério da Justiça, Ministério da Agricultura, Ministério da Saúde, Ministério da Indústria e do Comércio e Ministério da Fazenda, com o escopo de assessorar o Presidente da República na elaboração de políticas de defesa do consumidor (DEFESA DO CONSUMIDOR, 2018)

 

Na sequência, com o advento da Carta Política, houve a incorporação expressa da defesa dos interesses do consumidor no texto dos arts. 5°, inc. XXXII, 170, inc. V, em consonância aos preceitos insculpidos na mencionada Resolução 39/248 de 1985 da ONU que, como dito, reconheceu a necessidade da proteção do consumidor perante a comunidade internacional.

A referida proteção estatal foi consagrada pela legislação ordinária com a promulgação do Código de Defesa do Consumidor que trouxe uma série de avanços de ordem material e processual para a proteção desses direitos, à exemplo da facilitação dos meios de defesa, inversão do ônus da prova e da responsabilidade objetiva do fornecedor, sem olvidar da tipificação de crime contra o consumidor.

Na concepção de Renato Moreira Dorneles, o Código de Defesa do Consumidor consiste em um “microssistema jurídico”, já que, nele, encontram-se normas de direito penal, civil, constitucional, processuais penais, civis e administrativas, com caráter de ordem pública” (2003 apud FARIA, 2008). Assim, em se tratando de norma de ordem pública e interesse social, as mesmas são inderrogáveis ainda que por vontade dos interessados, admitindo-se, todavia, a livre disposição de alguns interesses de ordem patrimonial (FILOMENO, 2018, p. 58).

Em seguida, por meio do Decreto 7.738 de 2012, foi criada a Secretaria Nacional do Consumidor tendo como premissa fundamental a supervisão e a coordenação das políticas de defesa desses direitos do Consumidor (DEFESA DO CONSUMIDOR, 2018).

Assim, esses direitos passaram a ser tratados como garantias fundamentais inerentes a todos os cidadãos e cabendo ao Estado prover e assegurar sua proteção.

3 DA CONSTITUCIONALIZAÇÃO DO DIREITO CIVIL

Ainda que incompatibilidade do Código Civil de 1916 com os anseios e conflitos sociais estivesse evidente há tempos, impende ressaltar que desde a Revolução Francesa já se identificava a necessidade de proteção do cidadão enquanto detentor de garantias correlatas à sua dignidade, sendo que a Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão (Déclaration des Droits de l’Homme et du Citoyen) de 1789 consagrou uma série de diversos princípios e direitos inatos do homem, dentre os quais se destacam liberdade de expressão, igualdade e a propriedade.

Muito embora já se tenha passado mais de dois séculos desde a sua promulgação, vale destacar a contemporaneidade que o seu conteúdo universalista ainda reflete exitosa inspiração nas mais diversas sociedades, bem como perante a comunidade internacional. Por seu turno, a Declaração Universal dos Direitos Humanos de 1948 surgiu com a premissa de que todos os homens “nascem livres e iguais em dignidade e direitos[4].

Antes do advento da Constitucionalização do Direito Civil, as Constituições praticamente não tratavam das relações privadas, as quais eram tratadas pelos códigos com liberdade de patrimônio e, ainda, prestigiando o polo economicamente mais forte da relação jurídica, sem levar em conta os critérios da isonomia e função social. Assim, a legislação civil se impunha como soberana nas relações privadas, de modo que o individualismo se destacava enquanto a as Constituições não externavam efeito direto sobre os jurisdicionados, cujo liberalismo exacerbado gerou nefastos efeitos às sociedades, porquanto os cidadãos estavam à mercê do desequilíbrio contratual nas relações travadas com agentes economicamente mais fortes, bem como à cega submissão ao princípio do pacta sunt servanda.

E essa concepção excessivamente formal e rigorosa do contrato, que ignorava, por vezes a inexistência de igualdade entre as partes, bem como não observara a existência de problemas e fatores diversos que poderiam afetar o adimplemento, implicava que contrato se se transformasse num instrumento prejudicial ao polo mais frágil, emergindo, assim, diversas críticas à esse respeito (NERY JUNIOR; SANTOS, 2011, p. 119).

Essa despreocupação do Estado com o aspecto social das relações privadas também implicou em graves excessos durante a Revolução Industrial, tais como os notórios abusos em que os trabalhadores experimentaram em virtude das condições lastimáveis de insalubridade, segurança e jornada exaustiva com parca remuneração, sem olvidar do uso de crianças como força de trabalho, o que levou essa classe a lutar em prol da defesa e conquista de diretos mínimos contra a exploração, tal como ocorreu na Revolução Russa de 1917.

Com isso, os códigos e as legislações esparsas passaram a ser relativizados ante a imposição do cumprimento da função social no direito privado por força das modernas Constituições, tal como ocorreu no Brasil com a edição da Carta Política de 1988.

O fenômeno da globalização política, considerada a última etapa da institucionalização do Estado Social e os avanços biotecnológicos evidenciam os direitos fundamentais de quarta geração, que também se referem à proteção à vida, democracia, informação e ao pluralismo (BONAVIDES, 2006, p. 571).

A Constituição Federal de 1988 tolheu a soberania do Código Civil de 1916 como regulador das relações privadas, relativizando suas disposições e efeitos à luz da função social e dos princípios e garantias fundamentais.

Sobre a incompatibilidade do Código Civil de 1916 com as demandas sociais, Luiz Edson Fachin pontua que o referido diploma quedou silente em relação à vida e ao mundo, sendo especulativo acerca das questões patrimoniais, revelando a necessidade de reavaliar os fundamentos até então adotados pelo legislador (FACHIN, 1992, p. 53).

Com a promulgação da Carta da República de 1988, houve uma série de avanços normativos de efeitos imediatos na seara privada, ratificando a incompatibilidade do Código Civil de 1916 com as necessidades sociais e, por conseguinte, com o texto da superveniente Lei Maior.

A esse título de encontro à realidade social, impende salientar que a união estável teve reconhecimento constitucional (art. 226, § 3º da CF), ao passo que em relação aos contratos, a Constituição Federal assegurou o direito de propriedade (art. 5º, inc. XII) agregando a ela a sua função social no inciso seguinte, de tal maneira que a funcionalização da propriedade rural consiste na produtividade desta nos termos do art. 186, enquanto a propriedade urbana atende esse requisito ao enquadrar-se nos termos do plano diretor, conforme dispõe o art. 182, § 2º.

Tendo-se em mira o efeito vinculante da função social por força da vigência da Carta Política de 1988, no campo contratual evidenciou-se a imperiosa relativização do, até então, engessado e inflexível princípio do pacta sunt servanda, tal como ratificado pela Jurisprudência do Superior Tribunal de Justiça nas relações privadas:

 

Processo Civil. Direito das Obrigações. Novação. Possibilidade de Análise do Negócio Jurídico Antecedente. Mitigação do Princípio Pacta Sunt Servanda. Súmula 286 Do STJ. Violação do Art. 535 Do CPC Configurada. Retorno Dos Autos Ao Tribunal de Origem. 1. A violação do art. 535 do CPC configurou-se, no caso dos autos, uma vez que, a despeito da oposição de embargos de declaração, nos quais os recorrentes apontam a existência de omissões, mormente no tocante à possibilidade de exame judicial de supostas ilegalidades substanciais nos contratos celebrados anteriormente à alegada novação com a instituição financeira (fls. 1.052-1.053), o Tribunal não se manifestou de forma satisfatória sobre o apontado vício, consoante se infere do voto condutor às fls. 1.061-1.066. 2. A novação, conquanto modalidade de extinção de obrigação em virtude da constituição de nova obrigação substitutiva da originária, não tem o condão de impedir a revisão dos negócios jurídicos antecedentes, máxime diante da relativização do princípio do pacta sunt servanda, engendrada pela nova concepção do Direito Civil, que impõe o diálogo entre a autonomia privada, a boa-fé e a função social do contrato. Inteligência da Súmula 286 do STJ. 3. Recurso especial provido para determinar o retorno dos autos ao Tribunal de origem (BRASIL. Superior Tribunal de Justiça, 2011).

 

Impende destacar também acerca da proteção conferida aos Consumidores pela Constituição Federal (art. 5º, XXXII), marco esse que implicou na elaboração do já mencionado Código de Defesa do Consumidor (Lei 8.078/1990), com vistas a proteger a parte mais vulnerável nas relações consumeristas, bem como dispondo de várias sanções ao fornecedor que descumprir tais premissas, inclusive na seara penal.

Dessa forma, a Constituição Federal de 1988 bem ratificou a necessidade de uma profunda revisão e atualização da legislação civil com vistas a adequar-se as contemporâneas demandas e conflitos sociais, bem como submeter-se ao novo espírito constitucional por força da superioridade hierárquica desta norma.

Em vista disso, desde 1983 o projeto do Novo Código Civil já tramitava pela Câmara dos Deputados, mas em virtude do processo de redemocratização do país com a elaboração da nova Carta Política, somente teve o seu projeto aprovado no ano de 2001 e passou a viger no ordenamento pátrio por meio da Lei 10.406, de 10.01.2002, cujos princípios principais consistem nos Princípios da Eticidade, da Socialidade e da Operabilidade com vistas a assegurar os direitos fundamentais face a dinâmica das relações cotidianas, e, assim, uma justiça social e o estado democrático de direito, em consonância à nova ordem constitucional.

Uma das principais inovações trazidas pelo Código Civil de 2002 como constitucionalização dessa legislação, refere-se à função social dos contratos expressamente positivada no art. 421, a qual tem como escopo evitar abusos e prejuízos em detrimentos das partes e de terceiros.

Nesse sentido, a função social do contrato não deve ser desvirtuada como uma ferramenta capaz de causar prejuízos a quem quer que seja, haja que o contrato não pode ficar adstrito aos interesses de seus signatários, porquanto os seus termos não podem conflitar ou prejudicar o interesse público (REALE, 2003).

Para Ricardo Fiuza, o novo Código Civil provocou uma nova avaliação das normas que regulam os particulares e, com isso, os jurisdicionados não mais estavam submetidos ao engessamento legal de outrora (FIUZA, 2012, p. 18).

Além disso, o Código Civil de 2002 trouxe diversos outros avanços que impactaram positivamente na disciplina dos mais diversos clamores da sociedade, valendo destacar:

Maioridade civil:

– Reduzida de 21 para 18 anos.

Igualdade entre os sexos:

– Foi reforçada nos termos do art. 1º, com a seguinte redação: “toda pessoa é capaz de […]”.

– Igualdade de direitos e deveres entre os cônjuges.

– Ambos os pais possuem legitimidade para a concessão da capacidade civil aos filhos, por meio da emancipação.

Capacidade/Incapacidade civil:

– Os absolutamente incapazes não podem realizar atos jurídicos com terceiros, exceto por seus representantes.

– A incapacidade relativa é estendida aos ébrios habituais, aos viciados em tóxicos, aos deficientes mentais e a todos aqueles que tiverem o discernimento reduzido.

– A capacidade dos índios passa a ser regulada por legislação específica.

Casamento:

– O casamento poderá se dissolver pela morte de um dos cônjuges, pelo divórcio e ainda quando um deles se tornar ausente de forma permanente.

– Garantia dos direitos dos filhos havidos fora do casamento.

– Possibilidade da alteração consensual do regime de bens mediante autorização judicial.

– A instituição do “poder familiar”, como garantia a igualdade entre o pai e mãe na condução da família.

Personalidade Jurídica:

– Os territórios, as autarquias e as demais entidades de caráter público, criados em lei, foram inclusos no rol das pessoas jurídicas de direito público.

– Maior especificidade com relação aos objetivos das Fundações, que só poderão ser criadas para fins religiosos, morais, culturais ou de assistência, ressalvados os casos daquelas existentes ao tempo da norma.

Outras mudanças:

– Ao contrário do texto anterior, o marido poderá acrescentar a seu nome o sobrenome da mulher, iniciativa anteriormente restrita à mulher.

– A guarda dos filhos, anteriormente concedida à mãe (exceto em casos excepcionais) passa a ser daquele que possuir melhores condições de exercê-la.

– As dívidas do cônjuge, quando superiores à sua meação, não obrigam ao outro cônjuge ou aos herdeiros a por elas se responsabilizar.

Fonte: Adaptado CÂMARA DOS DEPUTADOS (2002)

Destarte, o direito civil passou a ser reinterpretado de forma axiológica aos princípios constitucionais da Carta Política de 1988, em especial aqueles arrolados no art. 5º que, dentre diversas garantias, trata expressamente do consumidor brasileiro (TARTUCE; NEVES, 2018, p. 672).

Portanto, a constitucionalização do direito civil teve como enfoque atribuir maior proteção às relações privadas mediante aplicação imediata no caso concreto dos princípios de igualdade e função social com vistas a preservar o patrimônio dos particulares e, de outra banda, a autonomia da vontade, haja vista os já mencionados problemas decorrentes aplicação exacerbada e inflexível da pacta sunt servanda.

4 DA CONSTITUCIONALIZAÇÃO DO DIREITO DO CONSUMIDOR

Uma vez fixados os elementos históricos que culminaram na Constitucionalização do Direito do Consumidor no Brasil, vale destaque o trecho das justificativas apresentadas por Wladimir Alcibíades Marinho Falcão na III Jornada de Direito Civil e que foram citadas por Tartuce e Neves na já mencionada obra:

 

Assim, a corporificação legislativa de uma atualizada teoria geral dos contratos protagonizada pelo CDC teve sua continuidade com o advento do Código Civil de 2002, o qual, a exemplo daquele, encontra-se carregado de novos princípios jurídicos contratuais e cláusulas gerais, todos hábeis a proteção do consumidor mais fraco nas relações contratuais comuns, sempre em conexão axiológica, valorativa, entre dita norma e a Constituição Federal e seus princípios constitucionais. (TARTUCE; NEVES, 2018, p. 48).

 

Claudia Lima Marques afirma que a plena reparação de danos é universal a todos os consumidores brasileiros, independentemente da sua classe social, do grau de instrução ou condição física (BENJAMIN; MARQUES; BESSA, 2013, p. 78).

Nesse sentido, Tartuce e Neves aduzem que é “vedado qualquer tipo de tarifação ou tabelamento, previsto por lei, entendimento jurisprudencial ou convenção internacional” (TARTUCE; NEVES, 2018, p. 71)

Com efeito, ainda que o Estado se utilize do direito moderno para preservar os mercados, defender o capitalismo dos capitalistas mediante calculabilidade e previsibilidade, pois sem elas o mercado não poderia existir (GRAU, 2016, p. 13), deve-se ter em mira que a atuação estatal através da normatização e fiscalização adequada deve proteger não apenas os mercados, mas também deve ter como escopo a manutenção do estado de bem-estar afeto às relações de consumo decorrentes, porquanto consiste em princípio de ordem pública e interesse social, nos termos do art. 1.o da Lei 8.078/1990 e arts. 48 e 170, inc. V da Constituição Federal.

Nesse particular, as questões contratuais também poderão ser relativizadas em homenagem à garantia fundamental de proteção ao consumidor:

 

Agravo Regimental no Recurso Especial. Contrato Bancário. Incidência do CDC. Possibilidade. Mitigação do Princípio Pacta Sunt Servanda. Comissão de Permanência. Inviabilidade de Cumulação Com os Demais Encargos Moratórios. Agravo Não Provido. 1. No pertinente à revisão das cláusulas contratuais, a legislação consumerista, aplicável à espécie, permite a manifestação acerca da existência de eventuais cláusulas abusivas, o que acaba por relativizar o princípio do pacta sunt servanda. Precedentes. […] (BRASIL, 2014).

Deste modo, o comportamento regulatório do Estado contemporâneo tem como escopo preservar a liberdade de concorrência e os abusos no mercado através de regras que externem previsibilidade e segurança jurídica, as quais devem ser reiteradamente aperfeiçoadas em consonância com a dinâmica veloz do capitalismo moderno, seja para preservar e estimular mercados, o equilíbrio da concorrência, o crescimento das empresas, ou, ainda, para proteger os consumidores de possíveis práticas abusivas.

As normas de defesa da concorrência primam pela, isonomia e liberdade, com pluralidade de fornecedores e serviços ofertados ao consumidor, ao passo que o Código de Defesa do Consumidor contempla regras, em especial ao direito de informação acerca destes produtos e serviços para uma liberdade de escolha consciente e por consequência, preservar o seu bem-estar.

A relação entre a política de defesa da concorrência e de proteção do consumidor não fica adstrita a identificar possíveis problemas que comprometam a livre concorrência, os preços praticados, a qualidade e diversidade de produtos disponíveis, mas busca primar pelo bem-estar do consumidor (PFEIFFER, 2010, p. 5).

Essa preocupação com o bem-estar do consumidor é notada no âmbito regulatório brasileiro através da atuação do CADE (Conselho Administrativo de Defesa Econômica), o qual detém como função precípua a regulamentar o poder econômico no mercado evitando condutas abusivas ou desleais como dumping, dominação de mercados e preços prejudiciais, de tal forma que o referido órgão denegou transação envolvendo a Nestlê Brasil Ltda e Chocolates Garoto S/A:

 

Estudos quantitativos e simulações mostram que operação reduz rivalidade no mercado de chocolates sob todas as formas. Adequação do modelo price standardart às condições definidas no §1º do art. 54 da Lei 8.884/1994. Eficiências (reduções reais de custo) em torno de 12% dos custos variáveis de produção e de distribuição são necessárias para compensar dano e impedir aumentos de preço. Eficiências insuficientes para compensar dano à concorrência e garantir a não redução do bem estar do consumidor. Não aprovação da operação. Solução estrutural. Desconstituição do ato (BRASIL, 2002).

 

Pelo exposto, a consagração dos direitos do consumidor pela Carta Magna se coaduna em perfeita harmonia com os reclamos e anseios de natureza análoga percebidos em todo mundo ao longo das décadas, fazendo com que a constitucionalização dessa legislação represente um avanço democrático da efetivação dos direitos e garantias fundamentais não apenas da norma puramente civil de caráter privado, mas, inclusive, do direito positivo ordinário no que compete as relações de consumo que foram positivadas como normas de ordem pública e interesse social (art. 1º da Lei 8.078/1990).

5 DIREITOS FUNDAMENTAIS E DEMOCRACIA

Conforme demonstrado durante o presente estudo, em razão da Constitucionalização do Direito Civil, diversas de suas disposições puderam ser encaradas como direitos fundamentais intrínsecos no rol da Carta Magna de 1988, uma vez que o Código Civil de 2002 tem como princípios norteadores a eticidade, solidariedade e boa-fé, o que tornou o homem sujeito de direitos conforme sua característica humana – defendida há tempos pela Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão de 1789, bem como através da Declaração Universal dos Direitos Humanos da ONU de 1948.

Nessa linha, o Código de Defesa do Consumidor não se resume a um elenco de normas, mas sim como um compilado de princípios que viabilizam a sua cidadania através das respectivas instituições e organismos especializados (FILOMENO, 2018, p. 57).

Destarte, fixada a premissa de que os direitos da personalidade quando positivados ganham conteúdo de direitos fundamentais, temos que o princípio constitucional da dignidade da pessoa humana torna-se a cláusula geral desses direitos, consoante a moderna constitucionalização do direito civil. E esses direitos da personalidade sequer poderiam ser enumerados pela legislação ordinária, porquanto se encontram positivados na Lei Maior que, por si própria, já assegura a efetividade desses direitos indispensáveis à pessoa humana (REALE, 2018).

Ademais, a proteção do consumidor representa direito fundamental consignado no texto constitucional, sendo inerente ao desenvolvimento da humanidade, conforme a síntese histórica apresentada. Logo, a proteção do consumidor também é um direito fundamental (BENJAMIM; MARQUES; MIRAGEM, 2010, p. 68).

Para Norberto Bobbio os direitos assegurados ao homem não podem sofrer qualquer prejuízo, sendo umbilicalmente atrelados ao desenvolvimento da humanidade (BOBBIO, 2011, p. 13). Robert Alexy, por seu turno, salienta que os direitos humanos podem vir a ser identificados mediante a sua universalidade, a fundamentalidade, a abstratividade, a moralidade e a prioridade (ALEXY, 2007, p. 45).

Assim, pode-se dizer que os direitos fundamentais estão positivados na Constituição Federal Brasileira, e os direitos humanos, em linhas gerais, são aqueles previstos nas normas de direito internacional.

 

Em que pese sejam ambos os termos (“direitos humanos” e “direitos fundamentais”) comumente utilizados como sinônimos, a explicação corriqueira e, diga-se de passagem, procedente para a distinção é de que o termo “direitos fundamentais” se aplica para aqueles direitos do ser humano reconhecidos e positivados na esfera do direito constitucional positivo de determinado Estado, ao passo que a expressão “ direitos humanos” guardaria relação com os documentos de direito internacional, por referir-se àquelas posições jurídicas que se reconhecem ao ser humano como tal, independentemente de sua vinculação com determinada ordem constitutional […] (SARLET, 2012, p. 18).

 

Neste tocante, diante do contido na norma do art. 5º, § 2º, da Constituição Federal, todos os tratados de direitos humanos, são materialmente constitucionais, de modo que em virtude do disposto no §3º se constata a existência de duas categorias desses tratados que consistem os materialmente constitucionais, já mencionados, e os material e formalmente constitucionais, sendo que aos primeiros é possível adquirir o status dos segundos alcançando similitude com emenda constitucional (PIOVESAN, 2013, p. 85-86).

Flavia Piovesan (2013) a dignidade e a cidadania formam a base do direito brasileiro, “consistentes na construção de uma sociedade justa, livre e solidária, na garantia do desenvolvimento social, erradicação da pobreza e marginalização, redução das desigualdades […]” (PIOVESAN, 2013, p. 85-86). Com efeito, Paulo Bonavides ressalta a necessidade de a democracia ser direta e isenta de contaminações que são familiares aos monopólios do poder (BONAVIDES, 2006, p. 571).

Ao tutelar os direitos, denota-se que a sua proteção constitucional também decorre do aperfeiçoamento do regime democrático, cuja efetividade da cidadania engloba o exercício e efetividade dos direitos humanos (PIOVESAN, 2013, p. 464-468).

Por outro lado, Aristóteles afirma que o homem estaria corrompido por se encontrar em meio ao campo político, pois se deixaria influenciar e se beneficiar pelo poder e, prejuízo do bem comum (2002, p. 21).

Assim, os nefastos efeitos da corrupção também podem comprometer a efetividade dos Direitos Fundamentais, seja de modo direito mediante propina para a obtenção de um serviço público direto, seja de modo indireto mediante suborno para obter autorização inerente ao exercício de atividade que causará prejuízos à saúde da população (LEAL, 2014, p. 11).

 

No que diz respeito à dimensão política da corrupção, um mergulho na história brasileira mostra que a ideia, comum entre intelectuais e na opinião pública, de que na esfera do Estado ocorrem os grandes casos de corrupção esconde não apenas uma concepção reducionista da esfera estatal, mas, sobretudo, um esquecimento de que a vida política de uma nação existe além de suas instituições estatais. Muitos aspectos importantes da corrupção ficam escondidos quando restringimos sua análise àquilo que ocorre na esfera pública e entre os funcionários do Estado. […] O que não podemos aceitar é reduzir nossos estudos apenas ao Estado, como se a sociedade e os interesses privados, expressos pelo mercado, fossem, em si próprios, legítimos e infensos a corrupção (AVRITZER; FILGUEIRAS, 2011. p. 33).

 

Verifica-se, assim, que a democracia se impõe como instrumento para efetividade dos direitos humanos e fundamentais, aqui compreendidos aqueles oriundos da Constitucionalização do Código Civil de do Direito do Consumidor, cujas condições para o seu implemento (democracia) no estado de direito também depende de questões diversas, tais como sociais, econômicas e culturais, haja vista o caráter multidisciplinar oriundo das relações humanas e das garantias e deveres inerentes a esse sistema.

CONCLUSÃO

O presente estudo buscou demonstrar o surgimento da codificação civil brasileira e a preocupação dos operadores do direito em atualizar suas disposições em busca de maior efetividade e garantias em prol do cidadão, haja vista a contínua e incessante dinâmica das relações privadas que culminam, diariamente, em novos desafios e soluções.

Desse modo, a incompatibilidade do Código Civil de 1916 com as necessidades sociais foi bem demonstrada com a Constitucionalização do Direito Civil, sendo que muitas de suas disposições puderam ser encaradas como direitos fundamentais intrínsecos no rol da Carta Magna de 1988, porquanto o subsequente Código Civil de 2002 utiliza como princípios norteadores a eticidade, solidariedade e boa-fé em consonância à Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão de 1789, bem como em relação a Declaração Universal dos Direitos Humanos da ONU de 1948.

No mesmo sentido, a consagração dos direitos do consumidor pela Carta Magna se revela em harmonia com os reclamos e anseios dessa natureza pelas mais diversas sociedades ao longo dos anos, fazendo com que a constitucionalização da Lei 8.078/1990 represente um avanço democrático da efetivação dos direitos e garantias fundamentais não limitado à norma puramente civil de caráter privado, mas também no que tange as relações de consumo que foram positivadas como normas de ordem pública e interesse social.

Ademais, vale lembrar que nas relações humanas também se verifica a contumácia da corrupção, especialmente envolvendo agentes públicos nos mais diversos escalões e áreas de atuação, o que acaba por violar o princípio da igualdade, sem olvidar, contudo, na conscientização e do relevante papel da sociedade para coibir a disseminação de tal prática também nos assuntos puramente privados.

Em que pese o nosso ordenamento contemplar avançada legislação civil e consumerista, um dos fatores primordiais para que o Estado, enquanto sociedade política, cumpra a sua parte nesse contrato social, consiste na atuação proba dos seus agentes, bem como na conduta consciente de seus cidadãos no que tange o cumprimento das leis e o grau de percepção e reprovação pela sociedade quanto à corrupção e a efetividade do seu combate pelas instituições competentes.

A corrupção é um dos males mais antigos das sociedades, comprometendo o desenvolvimento das nações e, ainda, prejudicando a efetividade de direitos humanos e fundamentais de seus cidadãos em prol do benefício pessoal de corruptos e corruptores.

Levando-se em conta que os direitos fundamentais consignados na Lei Maior constituíram malha firme como garantia de sua importância e efetividade, tem-se que a sua ineficácia em decorrência da corrupção torna sem valor o comando do texto constitucional, revelando um grave retrocesso social após a positivação dessas garantias fundamentais.

Verifica-se, assim, que a democracia se impõe como instrumento para efetividade dos direitos humanos e fundamentais, aqui compreendidos aqueles oriundos da Constitucionalização do Código Civil e do Direito do Consumidor, cujas condições para o seu implemento (democracia) no estado de direito também dependem de questões diversas, haja vista o caráter multidisciplinar oriundo das relações humanas e das garantias e deveres inerentes a esse sistema.

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Notas de Rodapé

[1] Pós-Doutor pela Universidade Nova de Lisboa (2017). Doutor em Direito Civil pela Universidade do Estado do Rio de Janeiro – UERJ (2012). Mestre em Direito pela Universidade Federal do Paraná – UFPR (2001). Graduado em Direito pela Universidade Federal do Paraná (1995). Professor Permanente do Programa de Mestrado em Direito Empresarial e Cidadania do Unicuritiba. E-mail: marcos@marcosalves.adv.

[2] Mestrando pelo Programa de Mestrado em Direito Empresarial e Cidadania do Unicuritiba; membro do grupo de Pesquisa Responsabilidade Civil e atividade empresarial, sob orientação do professor Pós Doutor Marcos Alves da Silva. E-mail: lcmoreira@osaadvocacia.com.br

[3] Mestrando em Direito Empresarial e Cidadania pela Faculdade de Direito de Curitiba – Unicuritiba e Pós-Graduado em Direito Empresarial pela Escola de Direito de São Paulo – GVlaw. E-mail: baldisseraleo@gmail.com.

[4]Art. 1º: todas as pessoas nascem livres e iguais em dignidade e direitos. São dotadas de razão e consciência e devem agir em relação umas às outras com espírito de fraternidade.” (DECLARAÇÃO UNIVERSAL DOS DIREITOS HUMANOS, 1948).