A Função da Constituição Financeira

DOI: 10.19135/revista.consinter.00011.15

Recebido/Received 30.04.2019 – Aprovado/Approved 16.05.2019

Pedro Augusto Costa Gontijo[1] – https://orcid.org/0000-0002-6977-3947

E-mail: pedro-acg@hotmail.com

Flávio Couto Bernardes[2] – https://orcid.org/0000-0001-8180-0218

E-mail:flavio.bernardes@bernardesadvogados.adv.br

Resumo: A partir da análise do sistema do Direito como sistema comunicativo, percebe-se a complexidade própria do fenômeno da Constituição Financeira. Esta é tomada como o acoplamento estrutural existente entre Política e Direito e que, em seu funcionamento orgânico, irrita diretamente o sistema da Economia. É a partir dessa visão de que a comunicação normativa da Constituição Financeira ocupa o papel central da estrutura estatal que o presente trabalho se apresenta no sentido de avaliar o valor da Constituição a partir de sua interrelação com a sociedade, com a normatividade e com os clássicos. Para construir o raciocínio, lançou-se mão de metodologia teorético-explicativa, especificamente com a contraposição de teorias e a extração dos principais significados de cada uma delas para revelar o que seria a Constituição Financeira.

Palavras-chave: Direito Financeiro. Constituição Financeira. Teoria dos Sistemas. Comunicação. Estado. Clássicos.

Abstract: From the analysis of the Law system as a communicative system, one can perceive the complexity of the phenomenon of the Financial Constitution. This is taken as the structural coupling between Politics and Law and, in its organic functioning, directly irritates the system of Economics. It is from this view that the normative communication of the Financial Constitution occupies the central role of the state structure that the present work presents itself in the sense of evaluating the value of the Constitution from its interrelationship with society, with normativity and with the classics. To construct the reasoning, theoretical-explanatory methodology was used, specifically with the counterposition of theories and the extraction of the main meanings of each of them to reveal what would be the Financial Constitution.

Keywords: Financial Law. Financial Constitution. Systems Theory. Communication. State. Classics.

Sumário: 1. Introdução; 2. A Constituição como elemento básico do Estado e da Sociedade; 2.1. Uma visão sociológico-política da Constituição; 2.2. Uma visão normativa da Constituição; 2.3. Uma visão doutrinária-culturológica da Constituição; 3. A Constituição Financeira e a sedimentação das práticas sociais a partir da funcionalidade complexa; 4. Conclusão; Referências.

Summary: 1. Introduction; 2. The Constitution as a basic element of the State and Society; 2.1. A sociological-political view of the Constitution; 2.2. A normative view of the Constitution; 2.3. A Doctrinal-Culturological View of the Constitution; 3 The Financial Constitution and the sedimentation of social practices from the complex functionality; 4. Conclusion; References.

1 Introdução

Ao longo da história, a estrutura institucional do Estado foi se tornando cada vez mais complexa, movimento que se deu pari passu com a própria evolução dos sistemas sociais. Esse ganho de complexidade interna serviu, como aborda a Teoria dos Sistemas, como movimento de redução da complexidade em seu nível interno. Isso demonstra o paradoxo de se enfrentar os fenômenos sociais em sua estrutura dinâmica: a partir do aumento da complexidade interna, permite-se a diminuição da complexidade interna em razão do meio. O motivo é o simples fato de o meio, o ambiente, conter muito mais possibilidades de acontecimentos que o próprio sistema.

Sob a óptica da Teoria dos Sistemas, estuda-se o Direito conforme um fenômeno intrinsecamente comunicativo. Usa-se, para efeitos referenciais, o termo comunicação normativa, a cingir, em algum grau, o aspecto deontológico do fenômeno, em que pese não ser o objeto de estudo próprio ao marco teórico adotado.

Essa comunicação normativa teve como ponto alto no devir histórico a ideia de Constituição. Como fenômeno que engloba características políticas e normativas de uma dada sociedade, a Constituição encarna a ideia de uma norma central, que tem a função de estabilizar o sistema do Direito e o sistema da Política, além de dar a marcha do ponto de partida para a possibilidade de existência desses dois níveis de sistemas sociais intrinsecamente comunicativos. Essa pretensão de estabilizar as expectativas vem justamente no sentido de garantir a prospecção de dado cenário, de trazer uma redução da complexidade do futuro no presente, tendo em vista, também, referenciais contidos no passado.

Nesse campo teórico, em razão do influxo dos movimentos iluministas e racionalistas sobre os campos do Direito e da Política, especialmente após a Revolução Francesa – que não somente propaga o ideal de Estado de Direito, República e Constituição como fonte do pensamento jurídico-político ocidental, como também opera a possibilidade de desestratificação social a partir da incorporação dos princípios da igualdade, liberdade e fraternidade como fonte comum para o estabelecimento da comunicação nos sistemas sociais – surge a necessidade de se estudar e fundamentar um fator que possibilita não somente a existência do Estado, como também sua própria operacionalidade e intersecção com seu respectivo tecido social, qual seja o Direito Financeiro.

É no campo do Direito Financeiro que as Constituições de matriz ocidental têm migrado suas mais fervorosas atenções no que diz respeito ao aumento de complexidade de suas estruturas comunicacionais normativas. Isso se dá por um motivo central: o elemento financeiro é a base para a existência da soberania e da autonomia das instituições estatais e sociais, sendo que a coesão possibilitada pela Constituição deve, necessariamente, perpassar pela ideia de garantir a higidez e a precisão de como o Estado poderá mobilizar riquezas, crédito e capital para cumprir com as finalidades integradas às Constituições contemporâneas.

Para enfrentar essa abordagem, recorre-se à necessária reconstrução do próprio fenômeno Constitucional, para, logo após, explicitar a face da Constituição Financeira do Estado – tomado o caso concreto, a Constituição Financeira do Estado brasileiro, circunscrito à Constituição de 1988 – e os aspectos comunicativos mais essenciais para a manutenção não somente da autopoiese do sistema constitucional, mas também dos acoplamentos estruturais realizados entre Direito e Política e Direito e Economia. Essa reconstrução depende, como não poderia deixar de ser, dos clássicos do Direito Constitucional, que remontam as ideias seminais sobre o que é uma Constituição e a sua respectiva função conjuntiva, bem como possibilitam enxergar a materialidade e importância da Constituição Financeira.

Ao final, traz-se os principais pontos acerca daquilo que pode ser considerado como a função da Constituição Financeira em um sistema autopoiético, bem como as necessárias adequações entre as abordagens realizadas pelos marcos teóricos sociológico, normativo e doutrinário da Constituição e a Teoria dos Sistemas.

2 A Constituição como elemento básico do Estado e da Sociedade

A Constituição se calca em sua força constitutiva imanente. Isso significa, em primeiro lugar, que traz em si um impulso criador, uma atividade primeva de caráter inovador e que concretiza a realidade. A Constituição, por constituir, não simplesmente diz algo, determina. Ao dizer, informa; ao informar, agrega; e ao agregar possibilita a vida; ao determinar, linda a realidade como projeto. A sedimentação daquilo que hoje conhecemos como Constituição Financeira é um fenômeno histórico, que tem suas origens no processo de evolução do Direito e da Política com a derrocada do Estado Moderno e de toda sua estrutura institucional. A Constituição Financeira é assentada na ideia de Democracia, de coisa pública, de submissão de todos, inclusive dos poderes constituídos pela própria Constituição, à vontade da Constituição e à vontade daquela ideia abstrata, o espírito e o poder do povo. É a Constituição Financeira que possibilita a mobilização das forças estatais em todas as suas formas de manifestação, que possibilita a transformação do projeto em realidade.

Mas o que é essa ação constituinte da Constituição Financeira? Constituir pode ser visto como “ser a parte principal de algo”, aquilo que possibilita a composição de uma realidade maior. Ao mesmo tempo, significa que algo pode ser estabelecido, organizado, metodizado, ou, em alguma medida, também indica a ação de algo que concorre com outros elementos para formar um todo. Comumente, no meio jurídico, vê-se constituir como ato que transmite poderes a alguém para exercer um mandato, um cargo eletivo, uma função, sendo nomeado ou elegido para tal. Por fim, a etimologia latina aponta para as ideias de “compor, designar, eleger, escolher, indicar, instituir e nomear” (HOUAISS, 2009, p. 531). Tudo isso perfaz o sentido de força constitutiva imanente da Constituição e o sentido da transformação de potência em ato das determinações constitucionais, o que só é possibilitado, a partir de uma lógica contemporânea, pela existência dessa Constituição Financeira. E é em contato com esse espectro semântico que se passa a visualizar a importância da Constituição na formatação da realidade financeira do Estado, em específico o Estado brasileiro, bem como a sanidade dos sistemas comunicativos próprios à Economia e à Política.

2.1 Uma Visão Sociológico-Política da Constituição

O que é uma Constituição? Com essa questão, Ferdinand Lassalle fez uma das mais fascinantes defesas teóricas na história do constitucionalismo moderno, que repercute até hoje como um dos parâmetros mais intrigantes e espantosos para aqueles que pretendem se mover sobre a Ciência do Direito.

Colocando-se mediante caráter “estritamente científico” (LASSALLE, 2015, p. 25), o autor se propõe a mostrar argumentos simples, claros e sólidos para encontrar a verdadeira essência da Constituição. Essa essência, contudo, não residiria meramente em um “pacto jurado entre o rei e o povo que estabelece os princípios básicos da legislação e do governo dentro de um país” ou, logo mais genérica, entendida como “a lei fundamental proclamada no país, na qual se lançam as bases para a organização do direito público” de uma nação (Ibidem, p. 28-29). Menos ainda é uma mera lei, mas a lei fundamental do país[3] (Ibidem, p. 33), que possui certas congruências fáticas.

No primeiro passo de sua exposição, Lassalle destaca três noções necessárias para se identificar a Constituição, quais sejam primeiramente que seja algo mais que as “leves correntes” que dominam o cenário legislativo ordinário; em segundo que constitua o estrito fundamento das demais leis do ordenamento; e terceiro que se algo se constitui como fundamento é porque necessariamente deve ser dessa forma, e não de outra[4] (Ibidem, p. 34-35). Conclui, preliminarmente, que a Constituição se coloca como “uma força ativa que faz, por um império de necessidade que todas as demais leis e instituições jurídicas vigentes no país, sejam o que realmente são, de tal modo que, a partir deste instante, não se possam promulgar-se, neste país, mesmo que se quisesse outras quaisquer” (Ibidem, p. 37).

Logo após, centra sua análise no ponto principal de sua teoria: a Constituição nada mais reflete que a composição dos fatores reais de poder presentes na sociedade, sendo estes a “força ativa e eficaz que informa todas as leis e instituições jurídicas da sociedade em questão, fazendo com que não possam ser, em essência, mais do que são” (Ibidem, p. 38). Esses fatores reais de poder se manifestariam por meio de fragmentos constitucionais, que em sua perspectiva estariam alocados em seis grandes fatores sociais que carregam, em si, a essência da Constituição: 1) a monarquia, que exerce poder sobre o exército e os cânones; 2) a aristocracia, que possui influência sobre o rei e sua Corte; 3) a grande burguesia, que teria instrumentais econômicos para modelar as massas desorganizadas caso seus interesses fossem fatalmente ameaçados; 4) os banqueiros, que possuem capital suficiente para fazer com que o crédito circule, a economia se mova e que grandes investimentos sejam feitos; 5) a consciência coletiva e a cultura geral e 6) a pequena burguesia e a classe operária, no caso de o poder estatal impor o despojamento não só das liberdades políticas, como também da liberdade pessoal desses sujeitos, o que fatalmente levaria à quebra do poder político (Ibidem, p. 40-50).

Ao determinar esses fragmentos constitucionais, Lassalle pondera sobre a existência da Constituição jurídica, que para ele nada mais seria que a formatação desses fatores reais de poder sobre uma folha de papel e, nesse aspecto, “já não são simples fatores reais de poder, mas que se consolidaram em direito, em instituições jurídicas e quem atenta contra eles atenta contra a lei e é castigado” (Ibidem, p. 51). Mas nesse caminho, quando se poderia dizer que uma Constituição em folha de papel é boa ou perene? Para o teórico, isso somente ocorre quando a Constituição escrita corresponda aos fatores reais de poder que regem determinado país, pois, quando “lá onde a Constituição escrita não corresponde à real, estoura inevitavelmente um conflito que não há maneira de eludir e a longo prazo, cedo ou tarde, a Constituição escrita, a folha de papel tem necessariamente que sucumbir diante do impulso da Constituição real” (Ibidem, p. 77-78).

A abordagem lassalleana é um avanço em termos de Teoria da Constituição mas deixa muito a desejar no que se refere à precisa separação entre direito e sociedade, entre direito e poder político, que são matérias de análise das ciências sociais com forte imbricação, mas ao mesmo tempo com conteúdo e autonomia precisamente distintas. Nesse caminho, o fenômeno constitucional não pode ser visto somente a partir de uma correlação de forças que possuem uma pretensa precedência social. A Constituição vai para além disso. Ela fecha o sistema cognitivamente e, ao mesmo tempo, permite sua abertura para o ambiente. Em suas referências setoriais, a partir da perspectiva de seus subsistemas, sobressai o acoplamento realizado entre Direito e Economia e entre Direito e Política, a partir da perspectiva da Constituição Financeira.

É no desenvolvimento da lógica de que o Estado é uma estrutura viva, dinâmica, em contínua transformação e submetido às contingências, que paira a necessidade de existência de normas constitucionais de natureza financeira. A Constituição Financeira, para além de mera folha de papel[5], assim como a própria Constituição, se mostra como centro referencial para dar concretização à comunicação normativa de índole constitucional. Há uma normatividade constitucional e, por derivação, da Constituição Financeira, que não pode ser relegado a simples aspecto simbólico[6].

2.2 Uma Visão Normativa da Constituição

Em famosa aula inaugural lecionada em 1959 na Universidade de Freiburg, Konrad Hesse proferiu discurso que ficou marcado como uma das mais veementes defesas da ideia de Constituição já realizadas. Basicamente, Hesse coloca as bases de fundamentação do conceito de Força Normativa da Constituição em contraposição à constituição sociológico-política de Lassalle. O autor de Freiburg rechaça a concepção de que as questões constitucionais sejam de natureza política, e não jurídica[7], de modo que não haveria, em sua análise, a possibilidade de identificar esse documento normativo como mera folha de papel ou como a constituição real do país. Argumentar nessa base seria desvirtuar o sentido de existência da Ciência do Direito, a partir da identificação da Constituição como simples averiguação de elementos contidos no mundo do ser.

A argumentação de Hesse para verificar a hipótese de haver uma força determinante única que revelasse a ideia de um dever constitucional se baseia em três premissas iniciais: em primeiro lugar a pesquisa acerca da constatação de uma imbricação condicionante entre as normas jurídicas constitucionais e a realidade político-social; em segundo lugar, observar e considerar qual a fronteira que adstringe o alcance de atuação Constituição jurídica; em terceiro lugar, a investigação dos pressupostos de eficácia da Constituição (1991, p. 13).

No primeiro nível da exposição, vê-se que não há como cindir o viés de ordenação – colocação de parâmetros para ação e para a interação, de base deontológica – do viés da realidade social para a qual a Constituição jurídica aponta – de base ontológica. A fragmentação entre realidade e campo normativo, entre ser (Sein) e dever ser (Sollen) – especialmente defendida por alguns positivistas – não resolveria os problemas epistemológicos a respeito da fundamentalidade da Constituição não só para o Direito, como também para a sociedade. Nesse caminho, Hesse afirma que “a norma constitucional não tem existência autônoma em face da realidade”, de maneira que sua essência estaria alocada justamente na vigência, ou naquilo que o teórico chama de “pretensão de eficácia[8] (1991, p. 14). Caso isso se configurasse de modo contrário, haveria um vácuo normativo em relação à realidade, ou uma norma totalmente vazia no que diz respeito ao referencial de regulação. Esse plano de interrelação entre normatividade e realidade revela a pretensão de eficácia da Constituição, que é sempre normatizar a sociedade e, em caminho contrário, ganhar sentido a partir da própria sociedade. Apesar dessa interdependência, o viés normativo da Constituição deve ser determinante para sua identificação, porquanto não se pode relegar sua eficácia a questões contidas no mundo do ser, a depender de forças sociais e políticas[9].

No segundo nível da argumentação, vê-se que o fenômeno constitucional deve ser lido de acordo com um parâmetro, uma consideração não menos que reveladora de sua estruturação no tempo, com base em uma dada realidade social, ou seja, o seu aspecto histórico. Diante disso, entender a Constituição como simples ferramenta de estruturação do Estado, de maneira abstrata e exclusivamente teórica nada mais reflete que uma apreensão estéril desse fenômeno. Isso ocorre em razão de, em alguma medida, as coisas já possuírem existência, sendo que a força vital da Constituição emana justamente dessa consideração da própria realidade para a qual ela aponta, ou seja, a Norma Fundamental não pode ser alheia à realidade sobre a qual se direciona[10] (HESSE, 1991, p. 18). Esse enunciado de correlação entre realidade e normatividade constitucional é denominado como “princípio da necessidade[11]. Mas esse princípio, por si só, não é capaz de revelar o que seria a força normativa da Constituição. Segundo Hesse, a Constituição por si só não realiza nada, mas pode impor tarefas, que na medida que são concretizadas acabam por verterem-se em genuína força ativa, que movem a realidade. Essa força ativa se dá quando os concretizadores da Constituição estão incutidos não só pela vontade de poder (Wille zur Macht), como também pela vontade de Constituição (Wille zur Verfassung)[12] (1991, p. 19).

O terceiro ponto de elucidação se refere à consideração de que a força ativa da Constituição tem como sustentação dois pressupostos fundamentais: um referente ao conteúdo, e outro referente à práxis constitucional.

Em relação ao conteúdo da Constituição, Hesse propõe que este quanto mais este “lograr corresponder à natureza singular do presente, tanto mais seguro há de ser o desenvolvimento de sua força normativa” (1991, p. 20). Nesse particular, a Constituição deve para além dos fatores sociais, políticos e econômicos preponderantes, também incorporar “o estado espiritual (geistige Situation) de seu tempo[13]. A Constituição, a levar em consideração essa conformação, deve ter condições de lidar com a contingência, ou seja, com a modificação dos fatores condicionantes do estado espiritual do tempo em que foi constituída. Justamente por isso, Hesse idealiza que a Constituição, para ser duradoura e cumprir com seus pressupostos de eficácia, deve conter as essenciais normatizações de natureza técnico-organizatória do Estado e, deve “limitar-se, se possível, ao estabelecimento de alguns poucos princípios fundamentais, cujo conteúdo específico, ainda que apresente características novas em virtude das céleres mudanças na realidade sócio-política, mostre-se em condições de ser desenvolvido[14] (1991, p. 21). A Constituição Financeira faz parte desse núcleo essencial de natureza técnico-organizatória, não havendo como o Estado, a sociedade e o Direito abrirem mão de uma normatividade mínima nesse campo, mesmo que de natureza estritamente principiológica. Em relação à comunicação normativa, a Constituição Financeira determina que o Estado e o poder político instituído ajam sempre no intuito de alcançar as finalidades hipotéticas contidas na Constituição. A Constituição Financeira permite a concretude, localizando-se sua funcionalidade na própria possibilidade de existência do Direito e do Estado a partir de uma lógica financeira, do binômio ilícito/lícito influenciado pelos códigos de poder e ter.

Voltando-se ao raciocínio deontológico proposto por Hesse, sobre o viés da práxis constitucional, o escritor apregoa que, para além do conteúdo, no sentido de que para haver vontade de Constituição, todos os partícipes da vida constitucional devem partilhar essa concepção, global ou singularmente (1991, p. 21). Nesse ponto, importante transcrever o sentido de práxis como uma ação paradoxal, que contém em si a fruição e a cessão de direitos em prol da manutenção de garantia da própria Constituição. Citando Walter Burckhardt,

aquilo que é identificado como vontade da Constituição, ‘deve ser honestamente preservado, mesmo que, para isso, tenhamos de renunciar a alguns benefícios, ou até a algumas vantagens justas. Quem se mostra disposto a sacrificar um interesse em favor da preservação de um princípio constitucional, fortalece o respeito à Constituição e garante um bem da vida indispensável à essência do Estado, mormente ao Estado democrático’. Aquele, que, ao contrário, não se dispõe a esse sacrifício, ‘malbarata, pouco a pouco, um capital que significa muito mais do que todas as vantagens angariadas, e que, desperdiçado, não mais será recuperado’. (HESSE, 1991, p. 22).

O sistema de Direitos e Garantias Fundamentais, que compõem o núcleo das normas constitucionais, é permanentemente interpretado e construído pela sociedade ao longo da história. Isso significa que sua formação se dá numa ação diuturna de sedimentação. A agregação gradual, muitas vezes lenta, depende de uma forte coesão social para alçar novos rumos e para a proteção de um direito materialmente existente sob interpretações axiológicas em consonância com a forma de um direito formalmente contido em sua deontologia, ou seja, traz em si sua natureza constitucional. Entender essa necessidade temporal para que dadas conformações sociais e realidades se transformem em garantias fundamentais é insubstituível e inarredável se se quer construir uma sociedade onde o respeito e os valores democráticos sejam a regra matriz do sistema. Mudanças bruscas, sem o devido preparo comunicativo e sem o devido amadurecimento das instituições sociais muitas das vezes ameaçam essas próprias garantias, de maneira a provocar reações que venham a mitigar muito mais direitos do que aqueles pretensamente conquistados. Não se trata de posicionamento covarde em frente à realidade. É simplesmente a constatação das regras de um jogo democrático, a não ser que o intérprete enviese a crítica por meio de um pensamento unívoco ou revolucionário. Enquanto houver ordem democrática baseada em uma Constituição, as lutas sociais e os grupos de interesse devem estar em constante atividade em seus próprios canais de participação, de maneira que as estruturas institucionais do Estado, no mais das vezes, sirvam sempre e exclusivamente para corroborar e aperfeiçoar os direitos já conquistados. A marcha da razão deve se operar nos fatores sociais de maior volatilidade, em sua própria estrutura dinâmica comunicacional endógena, sob pena de a invasão de um código sobre o outro resultar em perda substancial não somente da força normativa da Constituição, como também na desfiguração do projeto de democracia e Estado de Direito. Por esse viés, a práxis Constitucional apontada por Hesse exige atribuição de responsabilidades e a especificações das funções sociais de cada uma das instituições comunicativas.

Só que, do ponto de vista da Constituição Financeira, a manutenção da própria normatividade constitucional exala um elemento importante acerca do liame que une o Direito e a Economia: o princípio da escassez. Para que Direitos Fundamentais e o próprio Estado existam é necessário dinheiro, este, por natureza, um bem escasso. Lidar com a escassez e transformá-la em elemento produtor de ordem e prosperidade é um dos maiores desafios postos para a normatividade Constitucional. Esses elementos constitucionais diversos somente podem ser condensados e concretizados a tomar por início a firmeza, coerência e retidão das normas e princípios contidos no subsistema da Constituição Financeira.

De mais a mais, e de acordo com a lógica de garantia da normatividade constitucional, Hesse previne que a perniciosa prática de revisões constitucionais acaba por gerar déficit de legitimidade e eficácia da Constituição. A cada reforma, o constituinte derivado mitiga a ideia de confiança da comunicação normativa que permeia o extrato normativo sobre o qual se assenta a Constituição, de forma que sua vinculação acaba sendo condicionada a forças episódicas. Esses fatores elevam a perda da estabilidade, que “constitui condição fundamental da eficácia da Constituição” (HESSE, 1991, p. 22). As revisões no campo da Constituição Financeira, quando feitas sem a devida racionalidade e correspondência com a realidade social, podem causar a desarticulação da natureza normativa imanente da Constituição, relativizando-a em face de seus destinatários, descreditando-a de seu papel constitutivo. Perece o dado básico da vida e da comunicação social, a confiança.

No âmbito de sua produção infraconstitucional também é importante a visão da cogência dessa Força Normativa da Constituição em seu viés comunicativo, autorreferencial e autopoiético. As formas de manifestação do Direito Financeiro no âmbito infraconstitucional – equalização de receitas e despesas, crédito público, dívida pública, patrimônio público, etc. – devem se dar conforme máxima efetividade comunicativa da Constituição em intrínseca correlação com a Constituição Financeira.

Por fim, dentro do pensamento de Hesse, pode-se dizer que a visão de práxis é também salientada em relação à interpretação da Constituição. O autor dá relevo à necessidade de correlação entre os fatos concretos e os fatores normativos, não se podendo fazer tábula rasa dos primeiros. Nesse ponto, “uma mudança das relações fáticas pode – ou deve – provocar mudanças na interpretação da Constituição” (HESSE, 1991, p. 23). Contudo, adverte que o sentido do enunciado normativo traça uma demarcação delimitativa da atuação hermenêutica, uma barreira às mutações normativas.

É essencial que, para o resguardo da força normativa da Constituição, a finalidade da proposição constitucional não sejam modificadas em razão de contingências fáticas, ou seja, de mudanças da situação[15] (Ibidem). Essa situação há de ser verificada em todos os subsistemas constitucionais, especialmente no que diz respeito ao subsistema financeiro.

Reconhecer a materialidade da Constituição Financeira, como núcleo da realidade constituinte, perpassa pelo respeito aos parâmetros primitivos e pelo máximo cuidado nas modificações futuras. Sem essa metodologia de observação, a Constituição Financeira passa a ser figura retórica, desprovida de sua fundamentalidade. Como subsistema autônomo, dotado de objeto, princípios e métodos próprios, a figura da Constituição Financeira deve ser vista não somente como centro produtor de normas de Direito Financeiro, mas também como fonte comunicativa que possibilita a autopoiese do sistema do Direito como legítimo sistema social.

A defesa do papel da função da Constituição Financeira estabelecida nesse trabalho se dá justamente no sentido de observar a importância do corpo normativo que, conforme se verá, possui peculiaridades estritas e basilares para a existência de comunicação social em dado tempo e espaço. Sem a operacionalidade permitida pela Constituição Financeira não há direitos, não há ordem e não há a mínima possibilidade de sedimentação de práticas sociais, ou seja, institucionalidade. A eficácia substancial dos Direitos Fundamentais, o vigor da comunicação política e a dinâmica da comunicação econômica somente podem ser resguardadas a partir da preservação da força normativa da Constituição. Assim:

Se, também, em tempos difíceis, a Constituição lograr preservar a sua força normativa, então ela configura verdadeira força viva capaz de proteger a vida do Estado contra as desmedidas investidas do arbítrio. Não é, portanto, em tempos tranquilos e felizes que a Constituição normativa vê-se submetida à sua prova de força. Em verdade, esta prova dá-se nas situações de emergência, nos tempos de necessidade (HESSE, 1991, p. 25).

2.3 Uma visão doutrinária-culturológica da Constituição

Para além dos enfoques sociológico e normativo, a ciência do Direito Constitucional conta também com uma abordagem da construção do conceito e da aplicação da Constituição sob um aspecto doutrinário e culturológico. Para encerrar a tríade de doutrinadores em matéria de definição do que é uma Constituição, examina-se a obra do jurista alemão Peter Häberle, que nos trará importantes aportes para a discussão da função da Constituição Financeira.

Em sua obra “Textos clássicos na vida das Constituições”, Häberle se propõe a examinar o papel das obras clássicas sobre a interpretação dos textos constitucionais e, um pouco mais além, a relação entre esses mesmos clássicos e o texto da norma constitucional[16]. Clássicos, conforme o autor, geralmente se refere àqueles autores de relevo, cuja importância os leva a serem invocados e referenciados permanentemente. Nesse sentido, propõe a busca sobre um “conceito material” de clássico para realizar essa correlação entre o desenvolvimento teórico dado na história e a normatividade da Constituição[17].

Dentre os inúmeros clássicos existente na história do constitucionalismo ocidental, Häberle aponta para a existência de clássicos e de anticlássicos. A visão de um e de outro dependerá do ponto a partir do qual se observa. Como exemplo de clássicos que sustentam nossas visões acerca das constituições, pode-se colocar as visões de Locke, Montesquieu, Burke, Mill e Tocqueville, sendo seus antípodas Rousseau e Hobbes. Esses clássicos, de forma inegável, podem ser encarados como verdadeiras lupas, que desvelam os conceitos que permeiam a formação do Estado e de suas respectivas instituições e fórmulas funcionais[18]. Alguns clássicos em matéria do significado da Constituição e sua relação com sociedade e Estado são explicitados por Häberle:

Esse breve panorama permite identificar elementos “clássicos” do Estado Democrático de Direito. A Lei Fundamental representa a constituição da sociedade política organizada [politisches Gemeinwesen], mais especificamente, do Estado e da sociedade com a dignidade da pessoa como “premissa”; ela é a “restrição e racionalização do poder político” (assim Horst Ehmke) e, como se deve acrescentar na minha opinião, a restrição do poder social – por isso, a divisão dos poderes estatais se amplia na direção do âmbito social. A Constituição é a ordem jurídica fundamental do Estado (assim Werner Kägi) e da sociedade. Ela é, no sentido da expressão de Rudolf Smend, “sugestão e barreira” [Anregung und Schranke], mas, conforme penso, também um processo público. (HÄBERLE, 2016, p. 54-55).

Em seu enfoque culturológico, Häberle associa a formação do conceito de “clássico” à própria comunidade de recepção. Para esse autor, uma das faces que representam a identificação de um clássico está justamente na possibilidade de um observador constatar a presença de formação de consenso sobre uma dada obra seminal, que, avaliada em dado lapso temporal, acabam por transmudar “enunciados materiais em símbolos comunitários[19] (HÄBERLE, 2016, p. 93). Contudo, o autor declara que a ênfase no conceito de clássico não é suficiente para explicar a importância dos clássicos para a vida das Constituições[20]. Para elaborar um conceito material sobre o que seriam os clássicos, o teórico parte da argumentação de que “por um lado, os clássicos são respaldados pelas suas comunidades; por outro, a comunidade, assim como também o clássico, está posicionada em determinada realidade social” (Ibidem, p. 95). Derivado disso, diz-se que os clássicos em alguma medida realizaram padrões de justificação aptos a integrarem uma resposta convincente aos problemas de sua época, sendo que, mesmo após o tempo em que esses clássicos foram gestados, alguns desses problemas podem persistir, a tornar a referência aos clássicos apenas uma ponte de integração entre uma forma de estruturação e a necessidade de trabalhar numa mesma direção para a solução daqueles problemas[21] (Ibidem).

Mas como se dá essa dinâmica de vinculação dos clássicos a partir de um ponto de vista culturológico? Primeiramente, Häberle ressalta que o enfoque jurídico strictiore sensu não consegue realizar a fundamentação dos textos de autores clássicos. Por esse motivo, o texto clássico não pode servir como fonte formal do direito, porquanto não tem legitimidade democrática e nem pretensão normativa, o que o afasta das normas constitucionais e da legislação infraconstitucional (2016, p. 97). Mas, visto que há uma vigência cultural inegável dos textos clássicos em relação à concepção e à prática constitucional, o teórico se propõe a investigar, numa concepção latiore sensu, como essa vigência cultural pode ser compatível com o próprio direito positivo (2016, p. 107). Nesse ponto, Häberle afirma que os clássicos são textos constitucionais em um outro sentido, ou seja, inclui-se metodologicamente à interpretação os intérpretes em sentido lato, ou seja, os cidadãos, conforme sua famosa defesa proferida no livro “A sociedade aberta dos intérpretes da Constituição[22], aspecto material dessa vinculatividade (Ibidem). Diante dessa argumentação, o teórico coloca em relevo:

Quanto aos detalhes: textos de clássicos são parte tão integrante da interpretação possível da Constituição que eles devem ser considerados textos constitucionais latiore sensu. Não são apenas recurso, mas objeto da interpretação. Inserem o texto constitucional escrito no pertinente nexo cultural e de tradições. Assim vistos, os textos dos clássicos não são apenas um conglomerado, mas “materiais” para a Lei Fundamental. (…) Resumindo: textos de normas bem como textos literários formam um conjunto – cultural –, que perfaz a “verdadeira” Constituição de um país apenas se considerados na íntegra. Diga-se, de passagem, que a rememoração dos textos fundamentais do Estado constitucional não é um fim em si mesmo. O retorno sempre serve ao avanço. (HÄBERLE, 2016, p. 108-110).

Häberle ressalta ainda que a validade material dos textos clássicos não está envolta a uma sanção, mas a um respaldo à própria normatividade da Constituição (2016, p. 111). Essa volta aos textos clássicos, do ponto de vista de sua vinculação material, não limita a interpretação de maneira anacrônica, não coloca limites para uma atualização futura de sua própria concepção. Isso porque para o autor, tanto os textos clássicos, como os textos constitucionais positivados, são produtos culturais, sendo que muitas das vezes os textos clássicos possuem uma força normativa muito maior que a dos próprios textos constitucionais. A tomar essa ideias, conjuga-se não somente a força normativa dos clássicos, como também a força normativa da sociedade aberta dos intérpretes da Constituição, ou seja, a atuação conjunta desses dois fatores amplia e potencializa a apreensão do que é a “Constituição real”[23] (2016, p. 115-116). Essa seleção dos clássicos também é feita de maneira pormenorizada e levando em consideração que a consulta aos clássicos é, ao mesmo tempo, fundamentada pela Constituição positiva e pela situação atual do problema. Esses dois fatores atuarão, segundo Häberle, de maneira seletiva na atividade de referência aos clássicos, de maneira que a utilização destes se dá conforme critério de exclusão, pois, segundo o teórico, “onde tudo é possível, nada vale[24] (2016, p. 120). Assim, há que se ter em mente algumas limitações dessa forma de lidar com os clássicos, pois

A confiança na autoridade (material) dos enunciados dos clássicos deve ser limitada,

– pois também os clássicos foram apenas homens falíveis;

– pois sempre é possível aduzir posições alternativas de autores clássicos;

– pois as explanações dos clássicos sempre foram condicionadas historicamente, o que sempre é também sinônimo de limitação e unilateralidade (HÄBERLE, 2016, p. 122).

Ao final, Häberle reserva três níveis de argumentação para instrumentalizar sua defesa da vantagem do retorno aos clássicos. Em primeiro nível, os clássicos sedimentam na teoria política e do Estado constitucional os elementos propedêuticos de suas respectivas compreensões. Para bem além disso, argumenta que algumas controvérsias constitucionais somente podem ser solucionadas e devidamente compreendidas por meio do conhecimento aprofundado de teorias clássicas. Por fim, o terceiro viés se apresenta na função de crítica da ideologia proporcionada pelos clássicos. Esse argumento leva em conta que essas espécies textuais seriam capazes de prover os critérios relativos à cultura jurídica e política que de modo algum podem ser perdidos. Finalizando sua obra, conclui que:

Textos clássicos formulam exigências ao Estado constitucional, que podem despertar – e efetivamente despertam – uma “má consciência”, mas também uma “boa consciência” nos cidadãos e seus representantes. Não é por acaso que somente determinados Estados proíbem ou mesmo queimam textos clássicos (de Freud a Marx) – a saber, aqueles que não querem ou não podem enfrentar a discussão aberta dos critérios dos clássicos. O estudo dos textos clássicos é, pois, a conscientização das exigências imperdíveis ao nosso Estado constitucional – uma tarefa permanente para todos nós (HÄBERLE, 2016, p. 128).

A ideia dos clássicos vinculados à própria realidade interpretativa e comunicativa da Constituição é um fato. Não se pode desvencilhar disso. Já sua correlação com a normatividade intrínseca ao fenômeno constitucional certamente pode ser criticada. Entretanto, sobressai da análise realizada por Häberle a utilidade e a importância que os textos clássicos têm no que diz respeito ao descobrimento do conteúdo, da ideia, que perpassa a razão de ser das próprias normas constitucionais, e também no que se refere ao conhecimento dos limites imanentes à confluência política e jurídica cristalizada na Constituição.

Mas qual a vantagem dessa abordagem para o desenvolvimento teórico acerca da função da Constituição Financeira? Primeiramente atestar que este microssistema normativo está em constante evolução. Certamente os textos clássicos de Direito Financeiro – que remontam teóricos da ordem de Paul Leroy Baulieu, Vito Bompani, Fernando Sainz de Bujanda, François Deruel, Luiz María Drago, Benvenuto Griziotti, Louis Trotab e os grandes teóricos do Estado – permitem o conhecimento dos institutos e seu aperfeiçoamento no tempo, mas não bastam. Em segundo lugar, o conhecimento dos clássicos permite avaliar a lógica científica de construção do Direito Financeiro e, a partir disso, como a Constituição Financeira se erige como o ponto de encontro entre o Direito, a Economia, a Política e a Sociedade. É dentro da lógica de busca dos textos clássicos que se insere um novo patamar daquilo que é argumentado como comunicação normativa, a partir da perspectiva da Teoria dos Sistemas. Estes fragmentos doutrinários têm a função de não somente filtrar a interpretação normativa, a partir de uma lógica autopoiética, como também possibilitam o maior adensamento e precisão dos institutos relativos ao subsistema da Constituição Financeira, como se passa a argumentar.

3 A Constituição Financeira e a sedimentação das práticas sociais a partir da funcionalidade complexa

Os três clássicos apresentados no capítulo anterior possuem uma função redutora para nossa argumentação. A um só tempo, estabelecem inúmeras distinções sobre o que seria a Constituição e os efeitos da Constituição sobre os sistemas sociais. Além disso, amoldam aquelas características básicas do fenômeno constitucional moderno, quais sejam a existência de um corpo normativo positivado (com maior ou menor valor para o sistema), e sua realização enquanto norma jurídica. Obviamente há outros clássicos de grande relevância, para além dos já citados. Contudo, parece que esses três trazem os aportes principais de uma abordagem preliminar e elementar sobre o presente propósito: a visão sociológica estrita, a visão normativa e a visão doutrinária/culturológica. Esse é o ponto de partida para enxergar a delimitação funcional daquilo que denominamos de Constituição Financeira, numa visão sistêmica.

A perspectiva que passamos a adotar para o estudo do sistema do Direito vai para além das idiossincrasias dessas inúmeras abordagens e formas de observação. Em que pese os fenômenos normativos (em sentido estrito, pela mera abordagem da antítese existente entre ser e dever ser) serem de grande importância na tradição teórica ocidental, bem como aquelas abordagens ligadas a vieses axiológicos diversos, iniciamos numa análise encerrada pela teoria dos sistemas que se dá conforme a distinção entre sistema e ambiente, nos moldes da teoria de Niklas Luhmann (2016, p. 54-55). Sistema, conforme Luhmann, é a diferença da diferença entre sistema e o meio. (2009, p. 81). A diferenciação existente entre o sistema e o meio não é colocada de maneira estática, pelo contrário, observar-se que há algum nível considerável de interação entre ambos, dentro do espectro conceitual de acoplamentos estruturais[25]. Nesse sentido, a proposta da teoria dos sistemas vai para além do estudo da estrutura propriamente dita[26] (corpo normativo positivado), e se centra na operação básica do sistema, qual seja a comunicação, no caso do Direito comunicação normativa. Essa mudança do foco epistemológico do observador de segunda ordem[27] propicia a verificação da relevância da operação sistêmica em relação à própria estrutura dentro daquilo que se poderia considerar como unidade, que passa a ser enfrentada no âmbito da teoria dos sistemas como a diferença entre um e o outro lado da forma, ou seja, aquilo que está operativamente vinculado ao sistema do Direito e o que pertence aos sistemas que formam o ambiente.

No contexto epistemológico da teoria dos sistemas, não há como se confundir, como o faz Lassale, o fenômeno da política (Constituição Real) e o fenômeno normativo (Constituição como folha de papel). Em nossa abordagem, a Constituição integra a unidade do sistema do Direito, servindo-se como a força central, que concentra as zonas de irritabilidade recíproca e contínua entre os sistemas da Política e do Direito, com influxo sobre o sistema da Economia. Essa figura do acoplamento constitucional surge, conforme Luhmann, a partir da ideia de que o Estado é a figura que absorve essa tensão entre os dois sistemas em sua institucionalidade, especificamente no âmbito da Constituição (2016, p. 630-631), o que torna possível os próximos passos para a evolução dos próprios sistemas sociais[28]. A sedimentação de práticas sociais, que nada mais é que o processo de institucionalização plurilocalizado do Estado Constitucional, é a tônica do fenômeno que levou a civilização ocidental a positivar a Constituição e conformar uma nova forma de Estado:

As Constituições são conquistas reais (em contraste com meros textos), por um lado, ao restringir as influências recíprocas entre direito e política aos canais proporcionados pela constituição de um Estado e, por outro lado, nas crescentes possibilidades no contexto desses acoplamentos. Pode-se ver, não obstante, que outras possibilidades são efetivamente excluídas com esse tipo de acoplamento, significando, por exemplo, a exploração de posições jurídicas no sistema econômico (riqueza, controle de opções politicamente importantes) a fim de alcançar o poder político, ou o terrorismo político, ou a corrupção política. À medida que o sistema político, por um lado, e o sistema jurídico, por outro, encontram-se vinculados pelo poder “privado” da pressão, do terror e da corrupção, nem um, nem outro sistema, se é que é possível distingui-los, chega a adquirir grau elevado de complexidade. Por meio de Constituições, chega-se então, em razão da limitação das zonas de contato de ambas as partes, a um enorme incremento de irritabilidade recíproca – maiores possibilidades, por parte do sistema jurídico, de registrar decisões políticas em forma jurídica, mesmo havendo mais possibilidades de a política se valer do direito para implementar seus objetivos (LUHMANN, 2016, 631-632).

Mas o que seria a Constituição financeira? E sua visão sob o viés da Teoria dos Sistemas? A partir de uma perspectiva doutrinária, deslocada do marco teórico da Teoria dos Sistemas, a Constituição Financeira possui vários enfoques. Heleno Taveira Torres, por exemplo, aborda o papel estruturante das contas públicas, dos princípios democráticos e republicanos, a efetividade dos direitos sociais, a base de sustentação do federalismo, a efetivação de ações de fomento estatal, realização de programas e políticas públicas, além de importantes mecanismos de controle interno e externo da atividade financeira do Estado (TORRES, 2014)[29]. Na orientação da presente pesquisa, a Constituição Financeira encarna a sedimentação de práticas sociais no bojo da Constituição, ou seja, institucionalização. É uma segmentação funcional da comunicação normativa, que compõe o cerne da estrutura da Constituição. A institucionalização desse subsistema da dogmática constitucional tem como pressuposto a ideia de que a Constituição, do ponto de vista de suas normas que predefinem Direitos e Garantias Fundamentais e da matriz estruturante do Estado, nada realiza. Não há direitos e Estado sem atividade financeira, concretizada mediante comunicação normativa. Há que se conjugar, funcionalmente, a partir da estrutura, a possibilidade de concatenação mútua – possibilitada pela lógica de acoplamentos estruturais – entre os códigos comunicativos normativos, políticos e, em via de consequência, econômicos. Essa conjugação atingida no nível da institucionalização advém de lenta e constante evolução. Sem a análise financeira, poder-se-ia falar, com efeito, na Constituição como folha de papel. Mas a Constituição Financeira permite a existência de uma força motriz, fonte viva de garantia da eficácia das normas constitucionais em todos os seus vieses de manifestações setoriais. É na Constituição Financeira que se encontra a possibilidade de equacionar o poder estatal, como bem coloca Juan Vogel, na análise da Constituição Financeira alemã:

A Constituição financeira, quer dizer, a regulação constitucional do poder financeiro, dos orçamentos, do regime fiscal e da designação de receitas e despesas constitui-se como um dos núcleos de toda a ordem federal, a par de ser um indicador inequívoco da distribuição real do poder e da influência entre o Estado global e dos Estados membros (Vogel in BENDA et al, 1994, p. 665 – tradução livre).

Como se chega à ideia de que a Constituição financeira, em verdade, se realiza autopoieticamente a partir de sua evolução funcional inserida no contexto comunicativo de sistemas sociais? A resposta é complexa. Mas, ao mesmo tempo, toma forma a partir das reflexões emanadas pelos grandes teóricos do Direito Constitucional, tais como Lassale, Hesse e Häberle, quando lidos sob a óptica da Teoria dos Sistemas. Em primeiro lugar, sobressai a necessidade de se inserir a lógica binária poder/não poder da comunicação política dentro da análise constitucional, mas não com a submissão da Constituição à política. É por meio da Constituição Financeira que o Estado ganha os contornos de seu poder efetivo, e é também no âmbito desse subsistema constitucional que há possibilidade de limitação do próprio poder do Estado e de suas coletividades locais. A Constituição brasileira de 1988, por exemplo, instaurou o princípio do federalismo cooperativo no âmbito da Constituição Financeira: por meio de repasses constitucionais, há a implementação da descentralização do Poder Político a partir da implementação de autonomização do Poder Financeiro. Em segundo ponto, a análise da Teoria dos Sistemas, dentro do espectro teórico realizado por Niklas Luhmann, sobre a Constituição financeira se dá conforme a lógica da comunicação normativa, aqui devidamente adaptada para a teorização desse marco utilizado[30]. A comunicação normativa na matriz da Constituição Financeira deve se dar no viés da comunicação sincera[31] e da confiança, em que seu contorno operativo é delimitado pelo código binário identificado lícito/ilícito. Nesse ponto, a questão sai da análise de “vontade de Constituição” para a ideia de que a comunicação deve se estabelecer a partir de uma correlação entre emissor/receptor que garanta a proteção da própria comunicação sob o viés da autopoiese. Em uma visão sistêmica, a evolução funcional da Constituição Financeira somente é possível graças ao papel da dogmática, dos clássicos. Luhmann advogava a tese da inegabilidade dos pontos de partida, de modo que alguma coisa sempre tem um princípio, e o princípio para se construir conceitos e institutos jurídicos vem de suas próprias teorizações. Além disso, a análise estrita da comunicação normativa contida em uma proposição normativa peca pela superficialidade da compreensão. Nesse aspecto, os clássicos representariam a possibilidade se distanciar previamente dessa própria análise superficial e, além disso, a reflexão contida, a possibilidade de assunção de dúvidas e a adição de algumas incertezas que seriam levadas para o caminho da previsibilidade controlável (LUHMANN apud LARENZ, 2012, p. 320-322). Por esses vieses de análise, pode-se dizer que a Constituição Financeira emana comunicação normativa, de base autopoiética, não se submetendo e não se misturando com o código da Política. Essa autonomia, advém do estabelecimento de um nível de comunicação sincera e que, por sua vez, é aperfeiçoado no bojo da dogmática financeira e constitucional.

Diante desses contornos gerais, pode-se dizer que a Constituição Financeira possui uma função própria dentro do sistema do Direito, a partir da óptica da autorreferência[32]: “ela concretiza a comunicação normativa, possibilita seu conhecimento pelos demais sistemas sociais observadores com a consequente conversão em informação sistêmica, irrita os sistemas da Política e da Economia, e possibilita a existência do Estado. Essa funcionalidade específica está em ampla consonância com a própria Constituição, que até mesmo em Kelsen é evidenciada: a função política da Constituição é estabelecer limites jurídicos ao exercício do poder” (KELSEN, 2007, p. 240). Ao limitar o Poder, permite a operacionalidade do próprio poder. Além disso, reafirma a sua base comunicativa específica. Possibilita, então, a organicidade da existência do Estado, e estabelece os parâmetros para a mitigação do risco.

4 Conclusão

A análise da Constituição Financeira deve começar pela própria definição do fenômeno constitucional. A partir disso, observou-se a cadência daquelas obras clássicas, insubstituíveis e altamente influentes para a compreensão do que é a Constituição. Contudo, considerou-se que estas eram perspectivas particulares e parciais sobre o fenômeno. Para abrir a teorização básica acerca da Constituição Financeira e sua função dentro do sistema do Direito, evidenciou-se a necessidade de cogitar de uma teoria não somente mais ampla, mas que também abarcasse todas as perspectivas dadas pelos clássicos constitucionalistas. Essas visões foram colocadas diante de um marco teórico próprio, que as encara diante de uma perspectiva única: a identificação da operação base do sistema e a sua funcionalidade em relação à estrutura.

A partir disso, pôde-se observar que a operação comunicação normativa desempenhada pelo subsistema da Constituição Financeira se erige como meio para alcançar a finalidade da própria existência do Estado. Esse nicho teórico possui função híbrida, a partir da existência do acoplamento estrutural entre Política e Direito, além de irritar diretamente o sistema da economia. Esse complexo ramo de estudo do Direito Constitucional abarca então a função normativa, lançada como informação sistêmica formadora de sentido, que alcança fins propostos autopoieticamente pelo próprio sistema do Direito. A função política se dá nos níveis de contenção do Poder estatal, colocados sob as lógicas dos poderes vertical e horizontal, especialmente se analisamos estruturas estatais federadas. Por fim, a função comunicação normativa e comunicação política também se dá a partir da irritação da comunicação econômica, no nível do código ter/não ter, tanto na perspectiva interna do Estado (vertical e horizontal), como na perspectiva externa, influenciando os agentes de mercado, por exemplo, com mecanismos redistributivos que são possíveis e planejados no bojo da comunicação colocada pela Constituição Financeira.

Referências

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Notas de Rodapé

[1] Bacharel e Mestre em Filosofia do Direito, Legística, Teoria dos Sistemas, Direito Constitucional e Direito Internacional pela UFMG. Pesquisador vinculado ao Observatório para qualidade da lei. Consultor jurídico e acadêmico em Direito Público. Professor de Direito Empresarial e Introdução ao Estudo do Direito da PUC-MG. E-mail:pedro-acg@hotmail.com

[2] Bacharel, Mestre e Doutor em Direito Tributário pela Universidade Federal de Minas Gerais. Professor adjunto de Direito Financeiro e Tributário da UFMG. Professor de Direito Financeiro e Tributário e do mestrado e doutorado da PUC-MG. Advogado e consultor. Procurador do Município de Belo Horizonte. . E-mail:flavio.bernardes@bernardesadvogados.adv.br

[3] Lassalle lança uma interessante e ilustrativa argumentação em relação a esse ponto, dizendo que “o país, por exemplo, não protesta porque a cada etapa estão sendo promulgadas novas leis. Pelo contrário, todos nós sabemos que é necessário que todos os anos se promulgue um número mais ou menos grande de novas leis. Contudo, não se pode ditar uma só lei nova sem que se altere a situação legislativa vigente no momento de promulgar-se, pois se a nova lei não introduzisse nenhuma mudança no estatuto legal vigente, seria absolutamente supérflua e não teria o porquê promulgá-la. Mas não protestamos para que as leis se reformem. Muito pelo contrário, nós vemos nestas mudanças, em geral, a missão normal dos organismos governantes. Porém, em relação à Constituição, nós protestamos e gritamos: Deixe estar a Constituição! De onde vem essa diferença? Esta diferença é tão inegável que até existem constituições, na qual se dispõe taxativamente que a Constituição não poderá ser alterada de forma alguma; em outras, se prescreve que, para sua reforma, não bastará a simples maioria, mas que deverão ser reunidas dois terços das partes dos votos do Parlamento; e há algumas em que a reforma constitucional não é da competência dos órgãos legislativos, nem associados ao Poder Executivo, mas para acometê-la, deverá ser convocada, extra, ad hoc, expressa e exclusivamente para este fim, uma nova assembleia legislativa que decida sobre a oportunidade ou conveniência da transformação. Em todos estes fatos se revela que, no espírito unânime dos povos, todavia, uma Constituição deve ser algo muito mais sagrado, mais firme e mais incomovível que uma lei comum” (Ibidem, p. 32-33). Não obstante esses argumentos tenham se modificado em razão da extrema complexidade dos atuais modelos de sociedade ocidental – que reivindicam legítimas mudanças legislativas em nível infraconstitucional – há que se reconhecer que as modificações constitucionais amplificam os debates em torno da necessidade ou não de reforma. Essa constatação demonstra, em algum grau, a sutileza do espírito que encarna a ideia de Constituição, especificamente a segurança jurídica.

[4] Essa última noção aponta para uma diferença singular do significado ontológico da Constituição. Enuncia Lassalle que “porém, as coisas que possuem um fundamento não são como são por vontade própria, podendo ser também de outra maneira, mas que são assim porque necessariamente tem de ser. O fundamento a que respondem não lhes permite ser de outra maneira. Apenas as coisas carentes de um fundamento que são as coisas casuais e fortuitas, podem ser como são ou de qualquer outra forma. O que tem um fundamento não, pois aqui trabalha a lei da necessidade. Por exemplo, os planetas se movem de determinado modo. Este deslocamento responde a causas, a fundamentos que o governam, ou não? Se não houvesse tais fundamentos, seu deslocamento seria causal e poderia variar em qualquer instante, variaria sempre. Mas, se realmente responde a fundamento, responde-se como pretendem os investigadores, à força de atração do Sol, basta isso para que o movimento dos planetas esteja regido e governado de tal modo por este fundamento, pela força de atração do Sol que não possa ser de outra forma, senão tal como é. Portanto, a ideia de fundamento leva implícita a noção de uma necessidade ativa, de uma força eficaz que faz, por lei de necessidade que o aprofunda-se sobre ela seja assim e não de outra forma” (Ibidem, p. 35-36 – grifo nosso). A analogia de Lassalle é feliz nesse ponto. A normatividade e a função da Constituição em seus vários microcosmos, especialmente a Constituição Financeira, é algo inerente à própria ideia de Constituição, pois não há Estado e, menos ainda, sociedade sem finanças públicas e todas as suas áreas correlatas.

[5] Afasta-se, também aquelas concepções a respeito da Constituição Financeira como zona de encontro de normas meramente programáticas, ou cujo conteúdo possuiria alguma espécie de confusão metodológica com outros subsistemas constitucionais, como a Constituição Econômica e a Constituição Política.

[6] Pensar de modo contrário a isso é estabelecer um paradoxo instransponível no patamar argumentativo sobre a função e a normatividade da Constituição. Com base em Rudolf Sohm, Konrad Hesse salienta justamente que negar a existência autônoma e nuclear da Constituição jurídica a partir de uma ascendência da Constituição real significa a própria negação da Constituição, em outras palavras, “que o Direito Constitucional está em contradição com a própria essência da Constituição” (1991, p. 11). O simbólico também pode ser pensado no plano da efetividade dessas normas constitucionais que teriam essa pretensão de alinhavar a conduta humana, mas em razão de forças externas ao próprio sistema do Direito não lograria alcançar a autopoiese, transformando-se em um intrincado e tortuoso sistema comunicativo baseado na ideia de alopoiese, como bem desenvolveu Marcelo Neves (2011).

[7] O Caráter jurídico da Constituição Financeira se ajusta à ideia de autopoiese do sistema do Direito, autorreferencialidade e fechamento operativo. Somente é possível a existência da comunicação jurídica se houver a existência de canais comunicativos eficazes e cuja decodificação dos códigos seja eficaz. Essa zona de eficácia da comunicação jurídica determina a estruturação do sistema do Direito numa perspectiva financeira, que permite que as instituições, conformadoras dos sistemas sociais, fluam seus papéis na sociedade de forma estruturada. Isso tem um custo, e é nesse custo do estabelecimento da comunicação normativa que se dá o foco do subsistema da Constituição Financeira. Obviamente que a abordagem de Konrad Hesse perpassa uma lógica ontológica e deontológica do aspecto normativo, mas a ideia de que esse sistema normativo tem vinculação própria e é autônomo em relação às influências dos demais sistemas sociais, especialmente a Política, é um dos grandes ganhos evolutivos da Teoria da Constituição e que, em alguma medida, pode ser lido através dos pressupostos teóricos da Teoria dos Sistemas, especialmente a de base luhmanniana.

[8] Assim, conclui o constitucionalista que “a força condicionante da realidade e a normatividade da Constituição podem ser diferenciadas; elas não podem, todavia, ser definitivamente separadas ou confundidas” (HESSE, 1991, p. 15).

[9] Conclui Hesse, nesse ponto, que “graças à pretensão de eficácia, a Constituição procura imprimir ordem e conformação à realidade política e social. Determinada pela realidade social e, ao mesmo tempo, determinante em relação a ela, não se pode definir como fundamental nem a pura normatividade, nem a simples eficácia das condições sócio-políticas e econômicas. A força condicionante da realidade e a normatividade da Constituição podem ser diferençadas; elas não podem, todavia, ser definitivamente separadas ou confundidas” (1991, p. 15). Essa abordagem é de extrema relevância para debater a eficácia do subsistema da Constituição Financeira. As normas de Direito Financeiro podem, com efeito, serem vistas como meio para alcance de uma dada finalidade – isso se discute na busca pela própria natureza das normas de direito positivo, qual seja hipotéticas. Contudo, a sua força normativa está para além da merca conjugação de diretrizes políticas. As normas de Direito Financeiro estabelecem um dever, um quadro, um cenário a ser realizado. Deve ser assim, e não de outra maneira. O fenômeno político é conjugado ao fenômeno normativo, no momento da dinâmica jurídica, contudo não é o elemento validador, não é o elemento que dá eficácia. A validade e a eficácia sobressaem da própria norma, em seu aspecto estruturante. No bojo da teoria dos sistemas, alguns ajustes são necessários, contudo, a ideia permanece: comunicação normativa depende da existência da confiança. Sem esta, não há normatividade.

[10] Em decorrência disso, “se as leis culturais, sociais, políticas e econômicas imperantes são ignoradas pela Constituição, carece ela do imprescindível germe de sua força vital. A disciplina normativa contrária a essas leis não logra concretizar-se” (HESSE, 1991, p. 18).

[11] Assim, a correspondência colocada em nível basal é traduzida de acordo com o liame que liga a hipótese normativa e o mundo sobre o qual a Constituição incide em um contexto e tempo. Possibilita, assim, o desenvolvimento e concretude à ordenação objetiva da natureza normológica sobre o substrato fático que a realiza como força vital, como normatividade.

[12] A partir dessa conclusão, Hesse aponta três vertentes diversas da origem da vontade de Constituição: “Baseia-se na compreensão da necessidade e do valor de uma ordem normativa inquebrantável, que proteja o Estado contra o arbítrio desmedido e disforme. Reside, igualmente, na compreensão de que essa ordem constituída é mais do que uma ordem legitimada pelos fatos (e que, por isso, necessita de estar em constante processo de legitimação). Assenta-se também na consciência de que, ao contrário do que se dá com uma lei do pensamento, essa ordem não logra ser eficaz sem o concurso da vontade humana. Essa ordem adquire e mantém sua vigência através de atos de vontade” (1991, p. 19-20).

[13] A consequência disso seria “o apoio e a defesa da consciência geral”, visto que a Constituição incorporaria um estado espiritual representativo de uma ordem adequada e justa (HESSE, 1991, p. 20). O grande problema dessas considerações genéricas certamente é a dissociação com mudanças contingentes e incontroláveis no nível das comunicações sociais, com grande penetração de visões falseadas da realidade, o que quebra o raciocínio de existência de uma “consciência geral” realmente consciente. Essa distensão acerca da adequada percepção dos fenômenos da realidade por parte dos atores que performatizam e atualizam a força normativa da Constituição pode levar o sistema a um estado de anomia, com a total não identificação de diretrizes essenciais para a conjugação de atividades comunicativas e de ações humanas.

[14] Indica, então, o exemplo americano, ao afirmar em nota de rodapé que “o fato de a Constituição americana estar assentada nesse princípio configura não a única, mas, certamente, a fonte essencial de sua incomparável vitalidade” (1991, p. 21).

[15] Expõe então que “se o sentido de uma proposição normativa não pode mais ser realizado, a revisão constitucional afigura-se inevitável. Do contrário, ter-se-ia a supressão da tensão entre norma e realidade com a supressão do próprio direito. Uma interpretação constitutiva é sempre possível e necessária dentro desses limites. A dinâmica existente na interpretação construtiva constitui condição fundamental da força normativa da Constituição e, por conseguinte, de sua estabilidade. Caso ela venha a faltar, tornar-se-á inevitável, cedo ou tarde, a ruptura da situação jurídica vigente” (HESSE, 1991, p. 23).

[16] Na análise de Niklas Luhmann sobre a dogmática, em sua obra Rechtssystem und Rechtsdogmatik, 1974, pode-se observar que se interpretarmos os clássicos como aportes de dogmática sobre a argumentação jurídica e sobre a possibilidade de revelação das faces mais densas dos conceitos jurídicos, eles são tomados a partir da visão da inegabilidade dos pontos de partida: não há como haver construção da racionalidade comunicativa própria à ciência do direito, à teoria do direito como um todo, sem que se recorra àqueles trabalhos dogmáticos fundamentais, que funcionam como ponto de partida para a concepção e para a formação de sentido do direito (LUHMANN apud LARENZ, 2012, p. 320).

[17] Aponta, então, o autor, diversas indagações para fundamentar sua argumentação. “Um conceito material de autor clássico exige um cânone de tradições garantidas, um consenso generalizado sobre o caráter modelar (talvez também na dimensão pessoal), o caráter exemplar, proeminente, ultrativo [weiterwirkend], num certo sentido “atemporal” [Zeitlose]. Para os “clássicos na vida das Constituições” deveríamos dispor além disso de uma pretensão especificamente normativa com referência ao Estado constitucional. A questão agudiza-se diante da vinculação à “lei e ao direito” ou à Constituição, esta enquanto “lei suprema” (cf. Lei Fundamental, art. 20, § 3, art. 19, § 2, art. 79). Onde e como, graças a qual legitimação e dentro de quais limites, essa vinculação juspositiva deixa espaço para os textos clássicos? Será que os textos clássicos podem produzir no Estado Constitucional um efeito comparável ao de “fontes jurídicas”? Qual é a sua legitimação democrática? O que nos legitima a aduzi-los subsidiariamente “à Lei Fundamental”? Talvez o fato de a Lei Fundamental pertencer ao tipo “Estado constitucional”? Para quem os clássicos são clássicos?” (HÄBERLE, 2016, p. 49).

[18] Obviamente que a referência a textos clássicos em aspecto normativo deve ser vista cum granum salis. As figuras institucionais e conceituais erigidas pela modernidade ocidental são variáveis de cultura para cultura e não podem ser simplesmente transpostas de um lado para o outro. São fórmulas aptas a realizarem diagnósticos e prognósticos em relação a um objeto de verificação empírica e conceitual, mas devem levar em consideração as próprias modificações contidas nas realidades estritas das conformações sociais que vivenciam esses mesmos conceitos. Como bem coloca Häberle, “Em duas palavras, tudo indica que a cautela é recomendável quando lidamos com clássicos. Também aqui estamos ameaçados por posições unilaterais. Textos clássicos, muitas das vezes apenas remetem a problemas; são, portanto, mais indicação do que solução de um problema. Variam com relação à cultura específica, possuem uma história distinta de efeitos e interpretações. Não raras vezes estão “em oposição” uns aos outros: pensemos no entendimento de democracia na Lei Fundamental alemã, mais comprometida com Montesquieu do que com Rousseau, ao passo que o momento plebiscitário está mais elaborado nas Constituições estaduais” (HÄBERLE, 2016, p. 51-52).

[19] Assim, conclui Häberle quanto a esse ponto no sentido de abordar que “a tematização de um clássico, isto é, de um consenso comunitário pode ser diretamente relevante para a ação ou também para a posição (do indivíduo que tematiza em relação à sua comunidade), o que depende tanto da ação em questão quanto do sistema normativo específico da comunidade” (2016, p. 93).

[20] “Apesar da ênfase na ideia do clássico, esta não é suficiente. No autor clássico, na dimensão clássica deve haver algo mais do que apenas a recepção formal, a saber, algo material, objetivo, pois do contrário toda e qualquer pessoa poderia tornar-se um clássico, desde que encontrasse a correspondente comunidade de receptores” (HÄBERLE, 2016, p. 94).

[21] Karl Larenz, ao examinar a teoria dogmática de Niklas Luhmann, ensina que para o sociólogo a dogmática não teria um sentido consistente “em fixar o que está simplesmente estabelecido, mas em possibilitar a distância crítica, em organizar estratos de reflexões, de motivos, de ponderações, de proporção, meios pelos quais o material jurídico é controlado para além do que é imediatamente dado e é preparado para a sua utilização” (LARENZ, 2012, p. 321). Nesse ponto argumentativo, Häberle e Luhmann se entrelaçam, porquanto a atividade vinculante dos clássicos serve, em última medida, para cumprir papel reflexivo sobre o fenômeno jurídico em sua inteireza, o que possibilita a crítica refinada, argumentativa e, sobretudo, preocupada em desvelar a melhor solução para dado problema que é posto diante, por exemplo, da efetivação da Constituição Financeira.

[22] Argumenta, então, que “a ampliação – e o aprofundamento – da Constituição enquanto objeto de interpretação agora se dá em termos materiais, transcendendo o texto da Constituição escrita na direção da dimensão profunda espaço-temporal da história e cultura constitucionais. Num sentido exigente, textos de clássicos são “textos constituintes” – talvez num sentido distinto da palavra escrita da Constituição, mas decerto com uma pretensão e eficácia nada menores” (HÄBERLE, 2016, p. 107-108).

[23] Já prevendo futuros questionamentos, Häberle argumenta que “uma objeção possível poderia ser a tese de que o texto da norma fundamental seria relativizado [mediatisiert] indevidamente por inserções gratuitas, que a “vontade” do constituinte seria ignorada, que a “vinculação do juiz à lei e ao direito” seria colocada em xeque. Ocorre que uma das descobertas das teorias da interpretação afirma que a interpretação não é nem pode ser efetuada “em e para si”, apenas em contraposição ao texto “nu”. Reconhece-se um entorno como “pré-compreensão” na “escolha do método”, a realidade social etc., ao menos enquanto “auxílios de interpretação”. Na perspectiva aqui desenvolvida, esse entorno cultural é visto mais honestamente como objeto da interpretação; por outro lado, é complementado pelos textos dos clássicos, que, no entanto, carreiam da sua parte um “entorno” cultural adicional. O enriquecimento material da interpretação pelos textos clássicos é uma mera continuação dos caminhos e procedimentos até agora percorridos (2016, p. 118-119). Atenta-se, então, para o fato de que o “os clássicos nos abrem a possibilidade de relativizar a nossa posição, por meio da consideração de entendimentos que, à primeira vista, são “anacrônicos”“ (Ibidem, p. 123).

[24] Conclui que “tal fundamentação do trabalho com clássicos bem determinados pressupõe a teoria material aqui esquematizada dos clássicos no Estado constitucional” (2016, p. 120).

[25] Da interrelação entre os conceitos de fechamento operativo, autopoiese, autorreferência e unidade sistêmica, sobressai a necessidade de estudo dos acoplamentos estruturais. Dentro desse nível argumentativo, em relação ao Direito, Luhmann disserta: “‘quanto maior a ênfase da teoria dos sistemas no fechamento operativo de sistemas autopoiéticos, é de modo mais urgente que se coloca a questão de como as relações entre o sistema e o seu ambiente se formam sob essa condição, pois nem a realidade, nem a relevância causal do ambiente são negados (se assim não fosse, não se poderia falar em diferença, diferenciação etc.). Fechamento operativo significa tão somente que a autopoiese do sistema pode ser executada unicamente com suas próprias operações e que a unidade do sistema pode ser reproduzida somente com as operações do próprio sistema, e, no sentido inverso, o sistema não pode operar em seu ambiente; portanto, não pode se ligar a seu ambiente usando as próprias operações do sistema. A vantagem teórica desse ponto de partida é que ele demanda um montante de precisão tão atípico quanto não desenvolvido em proposições acerca das “relações entre sistema e ambiente”. A resposta a essa demanda encontra no conceito de ‘acoplamento estrutural’” (2016, p. 589-590). A Constituição Financeira, com efeito, se amolda a um subsistema do sistema Constitucional. Ela funciona, a partir de uma centralização do fenômeno pelo observador de segunda ordem, como o acoplamento estrutural existente entre o Direito e a Economia, numa lógica inserida no regime jurídico de Direito Público. Ela possui uma operação própria: comunicação normativa. Contudo, opera diante da equalização entre a pretensão da comunicação normativa, da comunicação econômica e da comunicação política.

[26] É no nível das estruturas que a teoria do direito se moveu para analisar o sistema jurídico. A positividade do direito aponta para o nível das expectativas normativas, que se cristalizam no nível da programação do sistema, que por sua vez se traduz em operação, ponto redutor de identificação da autopoiese.

[27] O observador de segunda ordem, nesse momento, é considerado como sistema autopoiético próprio, heterorreferencial, que realiza suas observações a partir da dissecação do fenômeno jurídico em sua operação básica de primeira ordem. Esse diferencial permite a superação do ponto cego da observação, vez que o observador de primeira ordem se delimita como operação autorreferencial, ou seja, do próprio sistema. O ganho evolutivo da consideração do observador de segunda ordem é que ele consegue ver o sistema de cima, para além do observador de primeira ordem. Este, ao realizar a operação normativa, cindindo aquilo que considera, ou não, formador de sentido para o sistema, seleciona. O observador de segunda ordem vê o todo, consegue concatenar o sentido global do sistema, podendo ser encarado numa perspectiva autorreferencial (quando o sistema observa a si mesmo), ou heterorreferencial (quando um sistema presente no ambiente passa a observar um sistema adverso de si). Assim, pode-se enfrentar o fenômeno da Constituição Financeira e sua funcionalidade a partir de uma dupla perspectiva. Para maior aprofundamento sobre o conceito de observador de primeira ordem e observador de segunda ordem, ver Niklas Luhmann (2009, p. 152 e s.; 2016, p. 35; 2016a, p. 25, 56, e 547 e s.); Gunther Teubner, 1989, p. 155 e s.; Costa Gontijo, 2018, p. 107 e s; Marcelo Neves (2009, 2011 e 2012).

[28] Dessa maneira, Luhmann salienta que “essa forma de acoplamento mediante o Estado constitucional torna possível, em ambos os lados, para o sistema político e o jurídico, a realização de graus de liberdade superiores, assim como uma notável aceleração da dinâmica própria de cada um desses sistemas” (2016, p. 631). Pode-se dizer que a coevolução é o resultado prático da formação dos acoplamentos estruturais. Significa que um sistema, por mais que tenha em sua composição fundamental o conceito de autopoiese, realiza sua evolução gradualmente e, em alguma medida, a partir da coevolução dos próprios sistemas que estão adjacentes, lhe irritando.

[29] Buscar essa referência sobre o que seja a Constituição Financeira é, em certo modo, perscrutar sobre a própria definição do Direito Financeiro. Autores importantes como Régis Fernandes de Oliveira estabelecem que o Direito Financeiro consiste em “o conjunto de princípios e regras que dispõe sobre a arrecadação de receitas não tributárias, coloca-as no orçamento, estabelece despesas, realiza-as, controla-as por seus órgãos e instrumentos de controle, administra receitas e despesas, distribui-as entre os diversos entes federativos, exige responsabilidade na aplicação dos recursos e impõe sanções às infrações cometidas” (OLIVEIRA, 2014, p. 183-184). Além disso, o doutrinador segmenta o fenômeno do Direito Financeiro, e teoriza que este não trata dos seguintes objetos: “Em sendo assim, pode-se fazer a exclusão do que não está afeto ao Direito Financeiro: a) os tributos; b) o câmbio; c) a moeda; e d) o sistema bancário” (Ibidem, p. 179). Por outro lado, considera que somente está incluído no estudo do Direito Financeiro: “a) as receitas não tributárias; b) as despesas; c) o orçamento; d) o controle orçamentário que engloba os Tribunais de Contas; e) a dívida pública; e f) a responsabilidade fiscal” (Ibidem). Além disso, o autor aponta que não haveria como se indicar um conjunto de princípios próprios ao Direito Financeiro (Ibidem, p. 226). Essa concepção acerca desse ramo da dogmática jurídica somente pode ser sustentada a partir de uma visão parcial do fenômeno financeiro dentro da lógica do Estado e do Direito. Primeiramente, há uma contradição explícita em sua argumentação, a partir do momento em que diz que o Direito Financeiro é um “conjunto de princípios e regras (…)”, para, logo após, negar a existência de princípios próprios ao Direito Financeiro. Em segundo lugar, no que diz respeito ao objeto de estudo, fala-se que o orçamento é objeto do Direito Financeiro, mas os tributos e respectivas receitas tributárias não. Como se poderia cingir o estudo do orçamento sem o devido estudo da composição de receitas derivadas do Estado? Aliás, essa formatação teórica tem como consequência a mitigação da própria autonomia e da operacionalidade do sistema financeiro Estatal. Não se poderia, se essas fossem as bases epistemológicas da ciência do Direito Financeiro, sequer falar em Constituição Financeira. Não é o caso da abordagem ora realizada, especialmente numa construção teórica afeta à Teoria dos Sistemas. Nesse aspecto, a presente abordagem leva em considerações autores como Villegas, para quem “El derecho financiero es el conjunto de normas jurídicas que regulan la actividad financiera del Estado” (1995, p. 119), sendo que todos os elementos que compõem efetivamente a realidade financeira do Estado estariam dentro do campo de estudo do Direito Financeiro.

[30] Como bem disserta Kolja Möller, “Niklas Luhmann não era um crítico do direito e sempre contrariou as tentativas de abrir normativamente sua teoria jurídica (Luhmann, 1985). Recentemente surgiu, contudo, um amplo espectro de discussão que trabalha no sentido de tornar as reflexões de Luhmann frutíferas para uma crítica jurídica” (MÖLLER, 2015, p. 129). Essa problemática sobre a concepção do fenômeno jurídico dentro da Teoria dos sistemas de Luhmann unicamente sob o viés da comunicação é assim exposta por Luhmann, quando se contrapõe às teorias positivistas e jusnaturalistas: “Ao contrário de muitos juristas, por “sistemas” não entendemos uma interconexão de determinadas regras, mas uma interconexão de operações factuais, que, como ações de comunicação operacionais, devem ser comunicações, independentemente do que essas comunicações afirmem com respeito ao direito. Ora, isso significa: não buscamos o ponto de partida nem na norma, nem na tipologia dos valores, mas na distinção entre sistema e ambiente” (LUHMANN, 2016, p. 54-55). A questão para Luhmann é superar a análise unicamente da estrutura (normativa, axiológica), para poder partir a análise do Direito por meio de sua operação, qual seja comunicação. Contudo, comunicação somente pode existir a partir do acoplamento estrutural realizado entre a linguagem e a consciência. Se isso não existe, não há comunicação. E a linguagem do Direito é linguagem normativa, de modo que passamos a designar, sem demais aprofundamentos teóricos, que serão feitos em trabalhos ulteriores, a comunicação do sistema do Direito como comunicação normativa.

[31] Em trabalho recentemente desenvolvido no âmbito do programa de pós-graduação em Direito da Universidade Federal de Minas Gerais, uma dissertação de mestrado lançou mão da seguinte conceituação para se referenciar à necessidade de estabelecer um padrão mais preciso para que a comunicação possa se estabelecer um dado sistema social, especialmente no sistema do Direito: “A comunicação sincera pode ser descrita como aquela que se perfaz de modo claro, preciso, transparente, inteligível, cuja finalidade do emissor possa ser extraída sem muita dificuldade pelo intérprete, pelo destinatário. Aproxima-se, em certa medida da ideia axiológica do imperativo categórico kantiano, mas se afasta porquanto seja princípio epistemológico, ou seja, objetivamente verificável. Esse grau de verificabilidade é entendido a partir do momento em que a comunicação não se pode realizar em sua negação, ou seja, por meio da emissão de informação obnubilada, obscura, inverossímil e despregada da realidade circundante (facticidade sistêmica) e da própria estrutura do sistema do Direito. Comunicação sincera indica aquela baseada na boa-fé, na efetivação de que o que é transmitido pelo ato de comunicação e processado pelo ato de entendimento se concretiza em uma zona de confiança que se aproxima da verdade, que é verossímil. Apesar de a norma jurídica em sua estrutura comunicacional na lógica da teoria dos sistemas ser especialmente contrafática, há que se levar em consideração que se houver uma deturpação geral do código e da operação por meio de enviesamento e da falsidade da informação emitida, ao final o sistema se subverte rumo a um colapso que nada mais significa que a instauração da alopoiese, ou perda de autonomia e autorreferencialidade” (COSTA GONTIJO, 2018, p. 193-194). Sobre confiança, ver Luhmann, 2005.

[32] A autorreferencialidade da comunicação dos sistemas sociais é teorizada por Luhmann: “o sistema de comunicação determina não só seus elementos – que são, em última instância, comunicação –, como também suas próprias estruturas. O que não pode ser comunicado não pode influir no sistema. Somente a comunicação pode influenciar a comunicação; apenas ela pode controlar e tornar a reforçar a comunicação” (2009, p. 301)