Concurso de pessoas e excesso acusatório (overcharging): da necessidade de distinção entre cooperação necessária e cumplicidade na imputação delitiva

Codelinquency and overcharging: the need to distinct between necessary cooperation and complicity in criminal imputation

DOI: 10.19135/revista.consinter.00019.15

Recebido/Received 13/11/2023 – Aprovado/Approved 26/09/2024

Leonardo Augusto de Almeida Aguiar[1] – https://orcid.org/0000-0003-1174-0533

Resumo

O presente trabalho busca demonstrar as vantagens que se podem extrair de um tratamento diferenciador no nível da imputação do injusto a título de participação. Defende-se a configuração de dois marcos penais distintos no tratamento da codelinqüência: um primeiro marco, previsto no caput do art. 29 do CPb, referente à autoria, e que engloba também a coautoria e a autoria imediata, e ainda a chamada “participação primária”, constituída pela forma de participação à qual corresponde uma pena igualada à autoria (cooperação necessária); e um segundo marco, previsto no § 1º. do art. 29 do CPb, referente à “participação secundária”, constituída por uma forma de participação à qual corresponde uma pena atenuada em relação à autoria (participação de menor importância ou simplesmente cumplicidade).

Essa valoração individualizada, restritiva e diferenciadora do fenômeno da codelinquência, acarreta na utilização da tipicidade como base da imputação, em substituição à causalidade, de modo que a distinção entre autoria e participação passa a ser um problema de tipo, o que gera um importante reflexo no âmbito do direito processual: a necessidade de que a postulação acusatória especifique, nos casos de codelinquência, a classificação jurídica da intervenção de cada acusado.

A adoção dessa prática, além de representar um maior respeito ao princípio da ampla defesa, trazendo um maior detalhamento da acusação que se faz, teria ainda o efeito concreto de aumentar a possibilidade de aplicação da figura processual da suspensão condicional do processo (art. 89 da Lei 9.099/1995), da transação penal (art. 76 da Lei 9.099/1995) e ainda do acordo de não persecução penal (art. 28-A do Código de Processo Penal), assim como qualquer outro tipo de instituto jurídico-processual baseado na pena cominada ao delito imputado. Isto porque, tratando-se eventualmente de participação a título de cumplicidade, deve ser considerada a causa especial de redução de pena do art. 29, § 1º. (participação de menor importância), tal qual ocorre no crime tentado, e até mesmo em conjugação com este (concurso de causas especiais de redução da pena).

Palavras-Chave: Direito penal. Concurso de pessoas. Distinção. Cooperação necessária. Cumplicidade. Excesso acusatório.

Abstract

The present work seeks to demonstrate the advantages that can be extracted from a differentiating treatment at the level of imputation of the unjust by way of participation. It defends the configuration of two distinct penal marks in the treatment of co-delinquency: a first mark, foreseen in the caput of art. 29 of CPb, referring to authorship, which also includes co-authorship and immediate authorship, and also the so-called “primary participation”, constituted by the form of participation which corresponds to a penalty equal to authorship (necessary cooperation); and a second milestone, provided for in § 1. of art. 29 of CPb, referring to “secondary participation”, constituted by a form of participation which corresponds to an attenuated penalty in relation to authorship (minor participation or simply complicity).

This individualized, restrictive and differentiating valuation of the phenomenon of codelinquency leads to the use of typicality as the basis of attribution, replacing causality, so that the distinction between authorship and participation becomes a problem of type, which generates an important reflection in the scope of procedural law: the need for the accusatory postulation to specify, in cases of co-delinquency, the legal classification of the intervention of each accused.

The adoption of this practice, in addition to representing greater respect for the principle of broad defense, bringing greater detail to the accusation made, would also have the concrete effect of increasing the possibility of applying the procedural figure of the conditional suspension of the process (art. 89 of Law n. 9.099/1995), the criminal transaction (art. 76 of Law n. 9.099/1995) and also the non-criminal prosecution agreement (art. 28-A of the Code of Criminal Procedure), as well as any other type of a legal-procedural institute based on the penalty imposed on the offense charged. This is because, in the case of participation by way of complicity, the special cause of reduction of sentence of art. 29, paragraph 1. (participation of minor importance), as it occurs in the attempted crime, and even in conjunction with this (competition of special causes of reduction of the penalty).

Keywords: Criminal law. People contest. Distinction. Cooperation required. Complicity. Accusatory excess.

Sumário: Introdução. 1 – Da evolução do tratamento da codelinquência na legislação brasileira. 2 – O estado atual das coisas: a compreensão dominante do art. 29 do CPb. 3 – Ainda quanto ao estado atual das coisas: o concurso de pessoas na prática forense brasileira. 4 – Crítica à compreensão tradicional do art. 29 do CPb. 5 – A necessária releitura do CPB: a configuração de um conceito restritivo.  6 – O § 1º. do art. 29 do CPb e a adoção de dois marcos penais distintos: a configuração de um modelo restritivo e diferenciador. 7 – A cooperação necessária como participação primária (equiparada à autoria) e a cumplicidade como participação secundária (de menor importância).  8 – Por que essa releitura é necessária? 9 – A tipicidade como base da imputação. Conclusão: manifesto pela efetiva distinção entre as formas de intervenção no crime (coautoria, cooperação necessária e cumplicidade) como requisito essencial de qualquer peça acusatória que impute a prática de crime em concurso de pessoas. Referências.

Introdução

I   Problematização

É extremamente comum, na prática forense brasileira, que a peça acusatória imputadora de infração penal praticada – em tese – em concurso de pessoas simplesmente descreva o binômio “materialidade e autoria”, caracterizando implicitamente todos os denunciados ou querelados apenas como “autores” (ou melhor, “coautores”), independentemente da concreta contribuição de cada um ao fato delituoso, se caracterizadora, em sentido estrito, de coautoria ou de participação, daí decorrendo ainda a ausência de diferenciação entre participação primária e participação secundária.

Essa postura, a nosso ver, decorre da compreensão dogmática que atualmente se tem, de forma dominante, acerca do art. 29 do Código Penal brasileiro (Art. 29. Quem, de qualquer modo, concorre para o crime, incide nas penas a este cominadas, na medida da sua culpabilidade), que é visto como instituidor de um modelo unitário de concurso de pessoas, não diferenciador, relacionado a um conceito extensivo de autor.

II. Objetivos

A presente investigação, contudo, busca demonstrar que, por imposição do princípio da proporcionalidade, a melhor leitura possível do sistema legal brasileiro é aquela no sentido de adequá-lo a um modelo conceitual diferenciado de concurso de pessoas, relacionado a um conceito restritivo de autor.

E mais: que esse modelo impõe que a peça acusatória da ação penal especifique a forma legal de contribuição do imputado ao fato, sendo que a adoção dessa prática, além de representar um maior respeito ao princípio da ampla defesa, trazendo um maior detalhamento da acusação que se faz, teria ainda o efeito concreto de aumentar a possibilidade de aplicação da figura processual da suspensão condicional do processo (art. 89 da Lei 9.099/1995), da transação penal (art. 76 da Lei 9.099/1995) e ainda do acordo de não persecução penal (art. 28-A do Código de Processo Penal), assim como qualquer outro tipo de instituto jurídico-processual baseado na pena cominada ao delito imputado. Isto porque, tratando-se eventualmente de participação a título de cumplicidade, deve ser considerada a causa especial de redução de pena do art. 29, § 1º (participação de menor importância), tal qual ocorre no crime tentado, e até mesmo em conjugação com este (concurso de causas especiais de redução da pena).

Desse modo, em síntese, pode-se dizer que o presente trabalho busca demonstrar as vantagens que se podem extrair de um tratamento diferenciador no nível da imputação do injusto a título de participação.

III   Hipótese de Pesquisa

Defende-se, concretamente, a existência de dois marcos penais distintos no tratamento da codelinquência: um primeiro marco, previsto no caput do art. 29 do CPb, referente à autoria, e que engloba também a coautoria e a autoria mediata, e ainda a chamada participação primária, constituída pela forma de participação à qual corresponde uma pena igualada à autoria (cooperação necessária); e um segundo marco, previsto no § 1º. do art. 29 do CPb (Art. 29 ... § 1º. Se a participação for de menor importância, a pena pode ser diminuída de um sexto a um terço), referente à participação secundária, constituída por uma forma de participação à qual corresponde uma pena diminuída em relação à autoria (participação de menor importância ou simplesmente cumplicidade).

A partir daí, reconhecendo que esses marcos relacionam-se com a própria tipicidade da conduta de cada interveniente na empreitada criminosa, propugna-se a necessidade de que toda postulação acusatória apresentada em juízo especifique, nos casos de codelinquência, a classificação jurídica da intervenção de cada acusado, se caracterizadora de autoria (direta ou mediata) ou participação (primária ou secundária), gerando assim o efeito concreto de aumentar a possibilidade de aplicação da figura processual da suspensão condicional do processo (art. 89 da Lei 9.099/1995), da transação penal (art. 76 da Lei 9.099/1995) e ainda do acordo de não persecução penal (art. 28-A do Código de Processo Penal, incluído pela Lei 13.964/2019), assim como qualquer outro tipo de instituto jurídico-processual baseado na pena cominada ao delito imputado, em razão da consideração da causa especial de redução de pena do art. 29, § 1º, aplicável aos casos de “participação secundária” (participação de menor importância ou simplesmente cumplicidade).

iv   Método

A investigação vale-se preponderantemente do método dedutivo, pois parte-se de argumentos genéricos para se obter uma conclusão específica. Entabula-se uma cadeia de raciocínio em conexão descendente, isto é, do geral para o particular, chegando-se à conclusão.

v  Procedimentos Metodológicos

Trata-se de uma pesquisa descritiva, que parte de uma investigação bibliográfica para conjugá-la com a observação, análise e correlação de fatos que envolvem a questão jurídica abordada.

vi   Resultados Alcançados

A partir do reconhecimento de que os marcos da autoria e da participação se relacionam com a própria tipicidade da conduta de cada interveniente na empreitada criminosa, a pesquisa valida aquele reflexo no âmbito do direito processual mencionado em seu objetivo: a necessidade de que a postulação acusatória especifique, nos casos de codelinquência, a classificação jurídica da intervenção de cada acusado.

1  Da evolução do tratamento da codelinquência na legislação brasileira

No Brasil já tivemos a adoção do sistema diferenciado pelos Códigos Penais de 1830 e de 1890, e depois sobreveio a adoção do sistema unitário pelo Código Penal de 1940.

Com efeito, o Código Criminal do Império do Brazil tratou da codelinquência em seus artigos 4º., 5º. e 6º., fazendo nítida distinção entre duas formas de intervenção delitiva, que nominava de autoria e cumplicidade. Tratava como autores tanto os que cometessem a infração diretamente, de própria mão, quanto também os que a praticassem através de interposta pessoa, ou seja, indiretamente. A determinação (na modalidade mandato) foi equiparada à autoria. Já cúmplices eram todos aqueles que diretamente tivessem intervenção na empreitada, mas sem que pudessem ser considerados autores. Além disso, também duas formas específicas de contribuição indireta foram equiparadas à cumplicidade: a receptação de coisas obtidas por meios criminosos e o abrigo de “assasinos ou roubadores”. Concretamente, os casos de cumplicidade eram extremamente amplos, pois todas aquelas situações que não correspondessem ao art. 4º (que definia a autoria) eram então tratadas como cumplicidade[2].

À cumplicidade correspondia um marco penal próprio, equivalente ao da tentativa (redução de um terço), sensivelmente atenuado em relação ao marco da autoria.

No Código Penal dos Estados Unidos do Brasil não só a equiparação da determinação à autoria foi mantida, como também a cooperação necessária foi equiparada à autoria. Justamente por se equipararem à autoria, essas formas de intervenção (determinação e cooperação necessária) eram designadas como participação primária. No ponto, note-se que – doutrinariamente – a participação criminal era dividida em participação principal e secundária: a participação principal era aquela equivalente à autoria, e a secundária à cumplicidade[3].

Em relação ao sistema que o precedeu, pode-se dizer que no Código Penal de 1890 o âmbito da cumplicidade foi reduzido, pois a cooperação necessária passou a ser equiparada à autoria.

Permaneceu, contudo, a previsão legal de um marco penal próprio para a cumplicidade, correspondente à pena da tentativa (redução de um terço).

Em 1932 sobreveio a chamada Consolidação das Leis Penais, que simplesmente repetiu os termos do Código de 1890.

Com o Código Penal de 1940 nosso Direito positivo adota a teoria da conditio sine qua non (art. 11)[4].

Como decorrência natural da equivalência dos antecedentes, então, a legislação positiva determinou a equiparação, em abstrato, das penas de todos os “participantes que contribuem, com condições sine qua non, para a realização do crime”[5].

No ponto, o Código foi expresso em seu art. 25: Quem, de qualquer modo, concorre para o crime incide nas penas a este cominadas.

De modo que, como leciona Nascimento, a partir desse diploma nossa legislação passou a adotar “a teoria segundo a qual o crime é uno e indivisível, isto tanto no caso de unidade de autoria quanto no de coparticipação”[6]/[7].

Corresponde, portanto, a legislação de 1940, a um modelo unitário de concurso de pessoas, rompendo com os sistemas que a precederam[8].

No ponto, note-se que no CP de 1940 houve a igualação, quanto ao marco penal, de todas as formas de intervenção, de modo que inexistia qualquer distinção material entre autoria e participação. Havia uma distinção formal? Aparentemente sim, ainda que implícita, sobretudo no art. 27 (Casos de impunibilidadeArt. 27. O ajuste, a determinação ou instigação e o auxílio, salvo disposição expressa em contrário, não são puníveis, se o crime não chega, pelo menos, a ser tentado). Dessa redação se extraí a existência de uma forma de concorrência acessória (que seria a participação), a qual pode se dar por determinação ou instigação (participação moral) ou por auxílio (participação material). Contudo, essa distinção formal entre autoria e participação não desabona o modelo unitário. É que o sistema unitário se caracteriza por igualar, no plano valorativo, todas as intervenções sob um único marco penal (aspecto material), ainda que, sob o aspecto meramente formal, se reconheçam distinções entre as formas de intervenção. Daí decorre apenas que sua classificação mais adequada seria como unitário funcional. Havia uma distinção quanto à aplicação concreta das penas aos concorrentes? Nitidamente sim. Em primeiro lugar, porque o art. 42 agasalhava o princípio da individualização da pena, nos seguintes termos: Fixação da pena – Art. 42. Compete ao juiz, atendendo aos antecedentes e à personalidade do agente, à intensidade do dolo ou gráu da culpa, aos motivos, às circunstâncias e consequências do crime: I – determinar a pena aplicavel, dentre as cominadas alternativamente; II – fixar, dentro dos limites legais, a quantidade da pena aplicavel. Em segundo lugar, porque existiam circunstâncias legais (agravantes e atenuantes) voltadas especificamente para os casos de codelinquência (arts. 45 e 48). Mas daí não se pode concluir que existiam marcos penais próprios para a autoria e para a participação. O marco penal era único: tanto autores como partícipes, todos eles, incidiam nas penas cominadas ao resultado final. Esta era a regra do art. 25, que não sofria qualquer exceção: Pena da coautoria – Art. 25. Quem, de qualquer modo, concorre para o crime incide nas penas a este cominadas. O fato de que as penas passavam por um processo de individualização nada mais é do que uma imposição básica do princípio da culpabilidade, que incide tanto nos sistemas unitários como também nos sistemas diferenciados. Não se pode conceber, e isso já era uma verdade em 1940, que se atribua uma pena idêntica a todos os colaboradores causais, independentemente de serem todos considerados autores ou de se fazer, entre eles, uma seleção entre coautores e partícipes[9]/[10].

Em conclusão, temos que no sistema do CP de 1940 todas as formas de intervenção no delito eram punidas de acordo com um único marco penal, pois ainda que formalmente fossem distintas elas se equiparavam sob uma perspectiva material, configurando assim um sistema não diferenciado (ou sistema unitário da autoria e da participação)[11]/[12].

Já com a reforma da Parte Geral do Código Penal, ocorrida em 1984, a participação de menor importância passou a ser tratada como uma causa geral de redução de pena, de cuja aplicação decorre a obrigatória redução da pena do concorrente, em patamar que varia de um sexto a um terço. Ou seja: à autoria e às figuras a ela equiparadas aplica-se a pena correspondente ao crime praticado; à participação de menor importância (ou cumplicidade) aplica-se tal pena reduzida de um sexto a um terço, caracterizando-se assim uma forma de participação secundária.

A diferença com o regime anterior (CP de 1940) está no fato de que naquela legislação a participação de menor importância (ou de “somenos” importância, como se preferiu) consistia apenas em uma circunstância atenuante, incapaz de alterar o marco penal correspondente a esse tipo de concorrente. Isto porque, sendo apenas uma circunstância atenuante, ela não tinha o condão de alterar os limites estabelecidos no tipo penal para a infração correspondente, ou seja, ela não podia levar a pena para aquém do mínimo previsto no tipo penal.

Tal sistema, inaugurado com a Reforma de 1984 e ainda vigente nos dias de hoje, note-se, é relativamente semelhante aos dos Códigos de 1830 e 1890: neles havia a autoria e as figuras a ela equiparadas quanto ao marco penal, e também havia a participação secundária (constituída pela cumplicidade), que se caracterizava primordialmente por corresponder a um marco penal próprio, equivalente à pena dos autores reduzida de um terço (semelhante à redução correspondente ao crime não consumado, ou seja, à chamada tentativa)[13].

2  O estado atual das coisas: a compreensão dominante do art. 29 do CPb

A redação literal do caput do art. 29 do Código Penal brasileiro (Quem, de qualquer modo, concorre para o crime, incide nas penas a este cominadas, na medida da sua culpabilidade) parece indicar a adoção, pelo nosso sistema legal, de um modelo unitário de concurso de pessoas, não diferenciador, relacionado a um conceito extensivo de autor.

Essa percepção, de certo modo, é reforçada pela regra do art. 13 do CPb, que trata da relação de causalidade: O resultado, de que depende a existência do crime, somente é imputável a quem lhe deu causa. Considera-se causa a ação ou omissão sem a qual o resultado não teria ocorrido.

O raciocínio que leva a tal ideia é o seguinte: qualquer ação ou omissão determinante para a produção do resultado (ainda que não seja uma ação ou omissão estritamente típica) é considerada causa dele, de modo que o crime é imputável a quem praticou essa ação ou a quem se omitiu. E mais: todo aquele que contribuiu para o crime, de qualquer modo, responde por ele, incidindo nas penas cominadas pelo Código Penal[14].

A leitura literal da legislação, então, leva a crer que o Código Penal brasileiro, partindo da teoria da equivalência das condições necessárias à produção do resultado, não faz distinção entre autores e partícipes, correspondendo assim a um conceito extensivo de autor, que se caracteriza por considerar todo aquele que intervém no fato criminoso como seu autor, sem fazer qualquer tipo de diferenciação entre formas de intervenção no injusto[15].

Essa opção do legislador estaria fundamentada em uma construção político-criminal segundo a qual todos os participantes de uma mesma infração penal devem, a priori, ser punidos igualmente.

Tal opção, em verdade, remonta ao CP de 1940, e não teria sido alterada pela Reforma de 1984, que simplesmente acresceu à redação do antigo art. 25 a expressão “na medida da sua culpabilidade” [16]. Sob tais pressupostos, então, teríamos um modelo não diferenciado de codelinquência, fundado numa concepção extensiva da autoria, de base causal[17]. Com isso fica equiparada a responsabilidade de todos aqueles que contribuíram para o crime[18]. Tal solução funda-se na ideia de que o crime pode ser obra individual de um único agente, mas pode também ser obra conjunta de mais de uma pessoa. E, em se ocorrendo essa segunda hipótese, optou o legislador em lançar mão da equiparação de todos os concorrentes como responsáveis pelo crime. Em decorrência dessa equiparação, é que se defende que nossa legislação adota um conceito unitário de autor. Mas essa equiparação não é absoluta, basicamente por três motivos:

a) Embora fiquem todos os concorrentes sujeitos à sanção prevista na norma violada, cada um vai responder na exata medida de sua culpabilidade, em decorrência do princípio da individualização das penas;

b) Além disso, se a contribuição do agente for de menor importância, a sua pena poderá ser diminuída em até dois terços (§ 1º. do art. 29); e

c) Se algum dos concorrentes quis participar de crime menos grave, ser-lhe-á aplicada a pena deste; essa pena será aumentada até metade, na hipótese de ter sido previsível o resultado mais grave (§ 2º. do art. 29).

Nada obstante, significativa parte da dogmática brasileira, apesar de dizer que nosso sistema é unitário, a partir da premissa de que todos os intervenientes são autores, admite que se possam fixar, doutrinariamente, distintas formas de codelinquência, se bem que com idêntica valoração jurídica sobre elas, e consequentemente também idêntica responsabilização penal, ainda que na fase de aplicação concreta da pena possa haver sua individualização[19]/[20].

Assim, entende-se que os parágrafos do art. 29 do CPb estabeleceram um tratamento diferenciado entre os intervenientes, mantendo-se o fundamento da imputação na causalidade e reconhecendo-se um marco penal único[21].

De toda forma, o modelo brasileiro corresponderia a uma construção unitária com regras que procuram abrandar os seus rigores, distinguindo em certos aspectos a autoria da participação, em especial nos parágrafos do art. 29, o que caracterizaria o nosso sistema como unitário funcional[22].

Defende-se essa solução ao argumento de que hoje vive-se o esplendor do direito penal da culpa, no qual a culpabilidade é fundamento e medida da pena. Assim, a se adotar uma pena (concreta) idêntica para todos os envolvidos, que independesse da reprovabilidade pessoal e individualizada de cada um deles, estaríamos abrigando verdadeiro resquício de responsabilidade penal objetiva, o que é inaceitável atualmente. Assim, louva-se a opção de fazer todos incidirem na mesma previsão legal de sanção (pena em abstrato), mas também por individualizar a reprimenda (pena concreta) de cada um deles.

3  Ainda quanto ao estado atual das coisas: o concurso de pessoas na prática forense brasileira

A experiência profissional de praticamente todos que militam na seara criminal no Brasil certamente autoriza afirmar que a imputação de um crime, praticado em tese em concurso de pessoas, normalmente é feita sem a devida delimitação de cada intervenção no plano da sua qualificação jurídica, ou seja, se caracterizadora de coautoria ou de participação no crime.

Nesse sentido, como já dito, a grande maioria das peças acusatórias simplesmente descreve o binômio “materialidade e autoria”, caracterizando implicitamente todos os denunciados ou querelados apenas como “autores” (ou melhor, “coautores”), independentemente da concreta contribuição de cada um ao fato delituoso, se caracterizadora, em sentido estrito, de coautoria ou de participação. Daí decorre ainda a total ausência de diferenciação entre participação primária (ou cooperação necessária, assim entendida como aquela forma de participação cuja pena cominada é idêntica à da autoria) e participação secundária (ou participação de menor importância, ou ainda simplesmente cumplicidade, assim entendida como aquela forma de participação à qual é cominada uma pena atenuada em relação à autoria).

Essa postura, consoante já fixamos, decorre logicamente da compreensão dogmática que se tem, de forma dominante, acerca do art. 29 do Código Penal brasileiro.

Ocorre que o panorama descrito, a nosso ver, comporta crítica e está a merecer revisão.

4 Crítica à compreensão tradicional do art. 29 do CPb

De fato, o art. 29 do Código Penal brasileiro trata do “concurso de pessoas” de uma maneira bastante ampla, sem se preocupar em distinguir qualquer forma de intervenção no injusto, algo comum aos sistemas unitários.

Ademais, tal dispositivo mostra-se claramente derivado da adoção, pelo Código, da teoria da equivalência dos antecedentes causais. Nesta linha, dando a legislação tão intensa importância à causalidade, pode-se realmente alegar a impertinência de uma distinção qualitativa entre as diversas classes de intervenientes.

Uma concepção assim revela a opção político-criminal pela contemplação do delito como obra em comum de todos que para ele contribuem, respondendo igualmente pela infração comum, sem diferenciação entre as diversas formas de cooperação.

Contudo, a tradicional construção interpretativa do art. 29 do CPb é simplista e superficial, sendo necessário refutar a ideia segundo a qual o nosso sistema se adequa ao modelo unitário funcional.

Isto porque, a nosso ver, mostra-se equivocada a concepção político-criminal segundo a qual todos os participantes de uma mesma infração penal devem, a priori, ser punidos igualmente, já que incompatível com o princípio da proporcionalidade (em sentido estrito).

O princípio da proporcionalidade relaciona-se com a própria legitimidade do sistema jurídico-penal na medida em que conduz a uma forma mais justa e equilibrada de aplicação da sanção penal.

De uma maneira geral, preceitua que a sanção penal só é legítima quando proporcional à gravidade da infração praticada. Ou seja: deve haver um equilíbrio na relação entre crime e pena, entre a gravidade do injusto penal e a pena cominada, de modo a se evitar uma resposta penal excessiva frente à infração penal considerada (proibição de excesso).

Nas palavras de Juarez Tavares, “a criminalização não pode ser também desproporcional ao dando ou ao perigo produzido pela conduta”[23]/[24].

Aplicado o conceito ao concurso de pessoas, temos que a sanção penal de cada concorrente, para ser legítima, deve ser proporcional à gravidade da infração praticada (conteúdo extrínseco)[25] e também à importância da colaboração prestada pelo agente na empreitada delituosa (conteúdo intrínseco).

O reconhecimento da existência de um conteúdo intrínseco no princípio da proporcionalidade, evidentemente, impõe que aos concorrentes com participação menos relevante seja aplicada pena mais branda em comparação com a reprimenda correspondente aos concorrentes com participação mais relevante na empreitada criminosa.

Obviamente que esse preceito é, em parte, atendido com a correta individualização da pena, envolvendo tanto as circunstâncias judiciais (agravantes e atenuantes) quanto as causas gerais e especiais (de aumento e de diminuição da pena).

Contudo, e é exatamente isso que se defende no presente trabalho, apenas a chamada “individualização” [26] da pena é insuficiente para um pleno atendimento do princípio da proporcionalidade no âmbito do concurso de pessoas. É preciso, a nosso ver, que se estabeleça um tratamento diferenciado já no âmbito da imputação, com marcos penais claros e pré-definidos para a autoria e para a cooperação necessária (configuradora de participação primária), de um lado, e para a participação de menor importância (ou cumplicidade, configuradora de participação secundária), de outro.

Com isso, concretamente, possibilita-se a aplicação de institutos jurídico-penais como a suspensão condicional do processo (art. 89 da Lei 9.099/1995), a transação penal (art. 76 da Lei 9.099/1995) e ainda o acordo de não persecução penal (art. 28-A do Código de Processo Penal), assim como qualquer outra regra processual-penal baseada na pena cominada ao delito imputado, a casos de codelinquência hoje não abrangidos por suas disposições, mais especificamente aos casos de cumplicidade (participação de menor importância).

Explicamos: os mencionados institutos jurídicos trazem como requisito de aplicabilidade a pena cominada ao delito. Trazendo a peça de imputação (denúncia ou queixa) já a delimitação da participação como sendo de menor importância, a aferição do cabimento destes institutos levaria em conta a causa especial de diminuição de pena do § 1º do art. 29 do CPb, de um sexto a um terço.

Assim, por exemplo, o acordo de não persecução penal (art. 28-A do Código de Processo Penal), que pressupõe pena mínima cominada de até quatro anos, pode ser aplicado em crimes com pena mínima cominada de até seis anos, desde que a participação do sujeito tenha sido secundária (ou seja, cumplicidade).

A esse instituto, especificamente, aplica-se a regra expressa do § 1º do art. 28-A do CPP, segundo a qual “para aferição da pena mínima cominada ao delito a que se refere o caput deste artigo, serão consideradas as causas de aumento e diminuição aplicáveis ao caso concreto”.

Em todas essas hipóteses – suspensão condicional do processo, transação penal e acordo de não persecução penal – deve-se levar em conta, na causa de diminuição do § 1º do art. 29 do CPb, a fração que mais reduz a pena (um terço), pois foi essa a razão de decidir dos precedentes que levaram à Súmula 723 pelo STF, segundo a qual “não se admite a suspensão condicional do processo por crime continuado, se a soma da pena mínima da infração mais grave com o aumento mínimo de um sexto for superior a um ano[27].

Expediente assim, aliás, tem sido utilizado na prática forense para a causa de diminuição do crime tentado[28].

Dessa forma, apesar do Código Penal brasileiro não optar claramente por um sistema unitário ou por um sistema diferenciado, há razões suficientes para se sustentar a melhor adequação da nossa legislação a um modelo que acolha a concreta diferenciação entre autoria propriamente dita e outras formas de participação no crime e estabeleça marcos penais distintos no trato da codelinquência.

Ou seja: ainda que um tratamento puramente unitário possa parecer mais simples e descomplicado, é preferível recorrer a um sistema diferenciador porque atende ao princípio da proporcionalidade e assim conduz a consequências mais justas, possibilitando inclusive a aplicação concreta de diversos institutos jurídico-processuais criados nos últimos tempos.

5  A necessária releitura do CPB: a configuração de um conceito restritivo

Para uma melhor interpretação do atual sistema legal brasileiro, é preciso então se desapegar da literalidade do art. 29 do CPb. Até porque existe uma enorme contradição no próprio CPb, pois enquanto o caput do art. 29 indica um sistema unitário, seus parágrafos já induzem a existência de um sistema diferenciado.

Além disso, existem contradições também entre os artigos 30 e 31 do CPb, senão vejamos: o art. 30 do CP, que trata da comunicabilidade de circunstâncias, aponta na direção de um sistema unitário, eis que um sistema restritivo e diferenciador não tem necessidade de um dispositivo sobre comunicabilidade de circunstâncias, pois parte-se da ideia de que o partícipe não realiza o tipo, apenas promove uma agressão indireta ao bem jurídico, por meio do autor; já o art. 31 do CP, que trata da tentativa de participação, aponta na direção de um sistema diferenciador, pois tal disposição parte da ideia de que a participação somente tem relevância penal quando atrelada à figura da autoria[29].

Mas o principal motivo que nos leva a reinterpretar o art. 29 do CPb está na consideração de que uma interpretação literal do dispositivo, em especial da expressão “de qualquer modo”, viola o princípio da proporcionalidade. Isto porque a expressão sugere uma equiparação entre todos os níveis de eficiência causal, gerando assim o nivelamento da apenação dos concorrentes, o que contraria o princípio da proporcionalidade.

É que, como leciona Juarez Tavares, “a proporcionalidade está sempre associada a um juízo de valor da própria ordem jurídica, mesclando elementos quantitativos com elementos qualitativos” [30].

Pois bem. No caso do concurso de pessoas, é o diferente desvalor da ação de cada concorrente que, sob um prisma eminentemente qualitativo, impõe a diferenciação do tratamento das diversas formas de participação.

Para além disso, do princípio da autorresponsabilidade[31] deriva a necessidade de se delimitar âmbitos de responsabilidade, do que decorre a necessidade de se reconhecer uma separação entre as esferas organizativas dos vários concorrentes[32].

Nesse cenário, não é correto extrair do art. 29 do CPb a conclusão de que todos os concorrentes são autores, mas apenas que o crime deve ser imputado a todos os concorrentes, pelo menos a princípio, qualquer que tenha sido a sua forma de contribuição (coautoria ou participação)[33].

Assim, necessário se faz uma releitura da função sistêmica do art. 29 do CPb, abandonando definitivamente qualquer visão que o tenha como fundamento de um conceito unitário de base causal, para passar a tê-lo como determinante de um limite mínimo de imputação, qual seja justamente a causalidade.

Propõe-se, pois, a adoção da visão segundo a qual “o art. 29, caput, CP, determina o limite mínimo da imputação de fatos a sujeitos, a saber: a existência comprovada de uma contribuição (ação ou omissão) causal”[34], com abandono da visão que extrai dele a função de nivelar, em princípio, as penas de todas as formas de contribuição à infração[35].

De certo modo, deve-se admitir que essa releitura torna o dispositivo (art. 29) inócuo, principalmente diante da interpretação que se faz do art. 13 do CPb, no sentido de que tal norma apenas limita a imputação com base na causalidade, nos crimes de resultado[36].

Assim, para que serve então o art. 29 do CPb? Não pode ser apenas para impedir a punição de contribuições não causais, pois se fosse, poderíamos dizer que ele “é menos do que dispensável: é redundante”[37], pois o próprio art. 13 já tem conteúdo normativo lógico suficiente para impedir que contribuições não causais possam acarretar responsabilidade criminal, ainda que se trate de execução coletiva da infração.

A única função que se pode extrair do dispositivo em foco nesse contexto, no qual se reconhece o art. 29 do CPb como norma estabelecedora do limite mínimo de imputação, é a de declarar a punibilidade da autoria e de constituir a punibilidade da participação.

Assim, extrai-se do dispositivo a presença de duas dimensões: a primeira delas tem caráter declaratório da autoria, e a segunda constitutiva da participação[38].

Essa releitura, portanto, é baseada num conceito restritivo de autor, em abandono da visão extensiva de origem causal[39]/[40].

6  O § 1º. do art. 29 do CPb e a adoção de dois marcos penais distintos: a configuração de um modelo restritivo e diferenciador

Tecnicamente, o legislador pode optar por um sistema que distingue entre autores e partícipes e prevê diferentes marcos penais (como os Códigos Penais alemão – § 25 e ss. – e português – art. 26º. e ss.) ou por um sistema que não prevê distinções entre as formas de intervir no delito e repassa as distinções materiais entre as contribuições para a determinação judicial da penal (como os Códigos Penais italiano – art. 110 e ss. – e austríaco – § 12 e ss.). O primeiro modelo é designado por sistema diferenciador e o segundo por sistema unitário[41].

No modelo diferenciador, entre a relação de causalidade e a imputação subjetiva sempre será possível estabelecer a distinção entre autoria e participação em sede de imputação objetiva[42].

Como visto, atualmente a doutrina é majoritária quanto à configuração do sistema normativo brasileiro como unitário, de base causalista, mas com temperamentos que levam a uma certa diferenciação entre os concorrentes no crime. Neste cenário, diz-se que nosso sistema é unitário, a partir da premissa de que todos os intervenientes são autores, mas que o CPb admite distintas formas de autoria se bem que com idêntica valoração jurídica sobre elas, e consequentemente também idêntica responsabilização penal, ainda que na fase de aplicação concreta da pena possa haver sua individualização. Desse modo, repita-se, o modelo brasileiro corresponderia ao unitário-funcional.

Sob tais premissas é que se refuta a ideia de que o sistema brasileiro possa ser um sistema diferenciado: diz-se que o art. 29 do CPb equipara a responsabilização penal de todos os intervenientes, que portanto respondem por um único marco penal, ainda que possam ter penas concretas individualizadas.

De fato, só se pode dizer que um sistema seja diferenciado quando ele atribua marcos penais próprios e distintos às formas diversas de codelinquência.

Assim, dizer que há uma diferenciação ontológica não significa dizer que se trata de um sistema diferenciado, pois se a ela não corresponde uma distinção nos planos valorativos e da responsabilidade, o sistema será unitário[43].

Da mesma forma não basta dizer que há uma diferenciação formal na própria lei, pois se a tal distinção não corresponde um tratamento penal também distinto, não se pode dizer que ela seja caracterizadora de um sistema diferenciado, mas apenas – como ocorria no CP de 1940 – de um sistema unitário funcional.

Por fim, dizer que há diferenciação na aplicação da pena também não desnatura o sistema unitário, pois tal diferenciação opera apenas no plano da culpabilidade, na aplicação concreta da reprimenda jurídica.

Contudo, a bem da verdade, o que ocorre é que o sistema brasileiro pode sim – e deve – ser classificado como diferenciador.

Isto porque há uma efetiva diferenciação no plano da tipicidade (mais precisamente, no plano do consequente da norma penal incriminadora) pelo menos em relação a uma classe de concorrentes.

No ponto, tem-se que a Reforma de 1984 modificou o panorama anterior, passando a acolher (novamente) dois marcos penais distintos ao tratar da codelinqüência:

Um primeiro marco, previsto no caput do art. 29 do CPB, refere-se à autoria, e que engloba não só a coautoria e a autoria mediata, mas também a chamada “participação primária”, constituída pelas formas de participação que têm a pena igualada à autoria[44]/[45].

Já o segundo marco está previsto no § 1º. do art. 29 do CPB, e refere-se à “participação secundária”, constituída basicamente pela participação de menor importância[46]/[47].

Essa conclusão se impõe justamente porque, no § 1º do art. 29, “trata-se de redução obrigatória, de forma que, presente, não pode deixar de ser concedida”[48].

De modo que existem, de maneira bem clara, dois marcos penais no atual sistema normativo nacional: um para a autoria e para a participação primária (participação equiparada à autoria ou, simplesmente, cooperação necessária); outro para a participação secundária (participação de menor importância ou, simplesmente, cumplicidade)[49].

Como já assentamos, a diferença com o regime anterior (CP de 1940) está no fato de que naquela legislação a participação de menor importância (ou de “somenos” importância, como se preferiu) consistia apenas em uma circunstância atenuante, incapaz de alterar o marco penal correspondente a esse tipo de concorrente (isto porque, sendo apenas uma circunstância atenuante, ela não tem o condão de alterar os limites estabelecidos no tipo penal para a infração correspondente, ou seja, ela não pode levar a pena para aquém do mínimo previsto no tipo penal). Já com a Reforma de 1984, a participação de menor importância passou a ser tratada como uma causa geral de redução de pena, de cuja aplicação decorre a obrigatória redução da pena do concorrente, em patamar que varia de um sexto a um terço. Ou seja: à autoria e às figuras a ela equiparadas (em especial a participação primária) aplica-se a pena correspondente ao crime praticado; à participação secundária aplica-se tal pena reduzida de um sexto a um terço[50].

Isto posto, parece-nos muito claro que, atualmente, o direito penal brasileiro adota um sistema diferenciado, eis que suas características intrínsecas (especialmente a existência de dois marcos penais distintos) nos demonstram que a coautoria se distingue da participação secundária não apenas no aspecto formal, mas – principalmente – no aspecto material.

7  A cooperação necessária como participação primária (equiparada à autoria) e a cumplicidade como participação secundária (de menor importância)

Em síntese, a releitura que se propõe seja feita dos dispositivos do CPb que tratam do concurso de pessoas – em especial do caput do art. 29 – nos leva de um sistema unitário e extensivo para um diferenciador e restritivo.

Restritivo porque se reconhece o art. 29 do CPb apenas como norma estabelecedora do limite mínimo de imputação, extraindo-se do dispositivo a presença de duas dimensões: a primeira delas com caráter declaratório da autoria, e a segunda constitutivo da participação.

Diferenciador porque acolhe dois marcos penais distintos ao tratar da codelinqüência: um primeiro marco, previsto no caput do art. 29 do CPb, refere-se à autoria, e engloba não só a coautoria e a autoria imediata, mas também a chamada “participação primária”, constituída pelas formas de participação que têm a pena igualada à autoria (cooperação necessária – participação material – ou determinação/induzimento – participação psíquica); e um segundo marco, previsto no § 1º. do art. 29 do CPb, refere-se à “participação secundária”, constituída basicamente pela participação de menor importância (ou simplesmente cumplicidade – participação material – ou instigação – participação psíquica)[51].

Desse modo, conclui-se que o modelo legal brasileiro é, concretamente, diferenciado, com nítida vertente restritiva. Nesse sentido, veja-se ainda a própria redação da exposição de motivos da nova Parte Geral do CPb[52], bem como o tratamento dado à acessoriedade pelo atual art. 31 do Código Penal brasileiro (CPb).

Utilizando o critério da distinção em razão dos marcos penais correspondentes, chegamos então a duas modalidades de participação no crime: a cooperação necessária (que é a participação material que corresponde ao marco penal da autoria) e a cumplicidade (que é a participação material de menor importância, à qual corresponde o marco penal privilegiado do § 1º. do art. 29, CPb)[53].

Nesse cenário, fica evidente a grande importância prática da distinção entre o correato[54] (ou cooperador necessário), de um lado, e o cúmplice (ou partícipe de menor importância), de outro lado, porque se refere à linha demarcatória entre o que é punível com a mesma pena da autoria (cooperação) e o que é punível com um pena atenuada (cumplicidade)[55]/[56].

8  Por que essa releitura é necessária?

Como já afirmado, a releitura que se propõe seja feita do art. 29 do CPb faz então a transposição de um sistema unitário e extensivo para um diferenciador e restritivo.

Ocorre que a adoção de um sistema unitário, aparentemente, traz uma grande simplificação à problemática da codelinquência, na medida em que gera a unificação das diversas formas de intervenção basicamente em torno da sua igual eficácia causal. Assim, considerando essa aparente simplificação que o modelo unitário proporciona à problemática do concurso de pessoas[57], a transposição que propomos deve ser, necessariamente, justificável[58].

O fato é que à simplificação do modelo unitário se contrapõem várias vantagens que decorrem da diferenciação entre autoria e participação, e que tornam o modelo diferenciado bem mais atraente do que o unitário[59]/[60]/[61].

No ponto, cabe fixar que a reinterpretação do modelo legal atual segundo parâmetros diversos da concepção unitária é imprescindível frente ao reconhecimento de que a unificação de todas as formas de participação e autoria é, a rigor, incompatível com um Direito Penal da culpa, pois viola o princípio da proporcionalidade das penas.

Isto porque o modelo causal-unitário promove a unificação do tratamento de contribuições material e qualitativamente diferentes, o que ofende o princípio da proporcionalidade. Nesse sentido, o modelo unitário não diferencia o desvalor da ação de cada interveniente, já que, sob o estrito ponto de vista da causalidade, iguala o marco penal de todas as contribuições ao delito[62].

Ademais, a releitura que se propõe também se mostra relevante à medida que a adoção de um sistema diferenciador, com a distinção entre autoria e participação, mostra-se mais alinhada com uma decisão em favor de um direito penal que se apoia na descrição típica das condutas (princípio da tipicidade)[63]/[64].

Por fim, como já dito, do princípio da autorresponsabilidade deriva a necessidade de se delimitar âmbitos de responsabilidade, do que decorre a necessidade de se reconhecer uma separação entre as esferas organizativas dos vários concorrentes[65].

9  A tipicidade como base da imputação

A principal consequência da revisão que se propõe seja feita do art. 29 do CPb está em colocar a tipicidade como base da imputação, em substituição à causalidade[66].

Dessa forma, reflexamente, a problemática da teoria do concurso de pessoas também se transmuda, pois a distinção entre autoria e participação passa a ser um problema de tipo[67]/[68].

Com isso, passa a ser absolutamente inadequada qualquer tipo de visão que enxergue, nas normas que tratam da codelinquência, um simples conjunto de regras de aplicação da pena[69]/[70].

No ponto, note-se que, na nossa proposta, autor e partícipe em regra incorrem em igual marco penal, e só por exceção é que se aplica um marco penal diferenciado, nos casos de participação de menor importância (cumplicidade). Ou seja: definitivamente, não é o marco penal diferenciado que caracteriza a participação.

10   Conclusão: manifesto pela efetiva distinção entre as formas de intervenção no crime (coautoria, cooperação necessária e cumplicidade) como requisito essencial de qualquer peça acusatória que impute a prática de crime em concurso de pessoas

A leitura literal do atual Código Penal brasileiro é, em princípio, indicativa da adoção do modelo conceitual causal-unitário, baseado numa construção extensiva da autoria e não diferenciadora das formas de codelinquência.

Contudo, a análise epistemológica do injusto penal, especificamente do injusto praticado em concurso de pessoas, conduz à inarredável conclusão da existência de um conjunto de intervenções individuais no qual cada uma delas tem conteúdo e significado próprios.

Assim sendo, o juízo de reprovação incidente sobre o injusto, embora tenha como referencial obrigatório o resultado que é comum a todas as intervenções, não pode prescindir também da valoração individualizada de cada contribuição posta.

Neste contexto, a presente investigação propõe a distinção entre cooperação necessária e cumplicidade na prática forense brasileira, a partir de uma releitura dos dispositivos do Código Penal brasileiro (CPb) que tratam do concurso de pessoas, em especial do art. 29.

Concretamente, defende-se o reconhecimento de um sistema restritivo e diferenciador, no qual é possível a configuração de dois marcos penais distintos no tratamento da codelinqüência: um primeiro marco, previsto no caput do art. 29 do CPb, referente à autoria, e que engloba também a coautoria e a autoria imediata, e ainda a chamada “participação primária”, constituída pela forma de participação à qual corresponde uma pena igualada à autoria (cooperação necessária); e um segundo marco, previsto no § 1º. do art. 29 do CPb, referente à “participação secundária”, constituída por uma forma de participação à qual corresponde uma pena atenuada em relação à autoria (participação de menor importância ou simplesmente cumplicidade).

Essa valoração individualizada, restritiva e diferenciadora do fenômeno da codelinquência, contudo, acarreta na utilização da tipicidade como base da imputação, em substituição à causalidade, de modo que a distinção entre autoria e participação passa a ser um problema de tipo.

A partir do reconhecimento de que a qualificação jurídica de cada intervenção no plano da autoria e da participação relaciona-se com a própria tipificação da conduta, chega-se a que cada intervenção deve ter uma configuração típica individualizada.

E mais: o reconhecimento de que esses marcos relacionam-se com a própria tipicidade da conduta de cada interveniente na empreitada criminosa gera um importante reflexo no âmbito do direito processual: a necessidade de que a postulação acusatória especifique, nos casos de codelinquência, a classificação jurídica da intervenção de cada acusado.

Isto porque o CPP, em seu art. 41, determina que a denúncia ou queixa deve conter “a exposição do fato criminoso, com todas as suas circunstâncias, a qualificação do acusado ou esclarecimentos pelos quais se possa identificá-lo, a classificação do crime e, quando necessário, o rol de testemunhas”.

Pois bem. Tratando-se a classificação jurídica da qualidade da intervenção do concorrente de matéria atinente ao tipo penal, temos então que a questão referente a tratar-se o acusado de coautor ou de partícipe da infração é atinente à própria classificação do crime, e como tal deve necessariamente ser devidamente especificada na peça acusatória, assim como também, tratando-se de participação, se é primária ou secundária[71].

A adoção dessa prática, além de representar um maior respeito ao princípio da ampla defesa, trazendo um maior detalhamento da acusação que se faz, teria ainda o efeito concreto de aumentar a possibilidade de aplicação da figura processual da suspensão condicional do processo (art. 89 da Lei 9.099/1995), da transação penal (art. 76 da Lei 9.099/1995) e ainda do acordo de não persecução penal (art. 28-A do Código de Processo Penal), assim como qualquer outro tipo de instituto jurídico-processual baseado na pena cominada ao delito imputado. Isto porque, tratando-se eventualmente de participação a título de cumplicidade, deve ser considerada a causa especial de redução de pena do art. 29, § 1º (participação de menor importância), tal qual ocorre no crime tentado, e até mesmo em conjugação com este (concurso de causas especiais de redução da pena).

Desse modo, em síntese, pode-se dizer que o presente trabalho busca demonstrar as vantagens que se pode extrair de um tratamento diferenciador no nível da imputação do injusto a título de participação.

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Notas de Rodapé

[1]     Mestre e Doutor pela UFMG. Pós-doutor pela UFRJ. Juiz Federal. Presidente da Turma Recursal dos Juizados Especiais Federais da Subseção Judiciária de Juiz de Fora/MG (2016-2018 e 2022-atual). Membro da Turma Regional de Uniformização dos Juizados Especiais Federais da 1a. Região (2017-2018) e da 6ª. Região (2022-atual). Juiz convocado no Tribunal Regional Federal da 1ª. Região (2017-2019). Magistrado Instrutor do Supremo Tribunal Federal (2019-2020). leonardo.aguiar@trf6.jus.br, http://lattes.cnpq.br/3744763358229209, https://orcid.org/0000-0003-1174-0533.

[2]     Para a doutrina da época, “a cooperação se pode realizar em três tempos diversos, sendo distinta em cada um deles, e sendo moral ou física. Antes do delito: animando a vontade criminosa; dando esclarecimentos, instruções sobre o delito e o modo de realizá-lo; dando meios de transporte para pôr o agente no lugar do crime; dando casa para a reunião dos delinquentes, onde possam esperar a hora convencionada, ou mais favorável; fornecendo-lhes armas, instrumentos, disfarces, fazendo vigias, tirando informações, etc. Na execução: auxiliando, cooperando com seus esforços, pra realização do delito, sem contudo fazer atos de autoria; segurando a escada, lanterna etc.; rondando; fazendo número com sua pessoa; aconselhando o melhor modo de proceder; animando os fracos etc. Depois do delito, conforme o art. 6º” (CAMARGO, Joaquim Augusto de, Direito Penal brasileiro, pp. 284-285).

[3]     Cf. GARCIA, Basileu, Instituições de Direito Penal, v. 1, t. 1., p. 362.

[4]     Nesse contexto, considera-se que “o evento, por sua natureza, é indivisível, e tôdas as condições que cooperam para a sua produção se equivalem. Tudo quanto foi praticado para que o evento se produzisse é causa indivisível dêle” (CAMPOS, Franciso. Exposição de Motivos: Ítem nº 22, Em: Decreto-Lei nº. 2.848: de 7 de Dezembro de 1940 – Código Penal, Rio de Janeiro: Diário Oficial da União, de 31 de dexembro de 1940, p. 23.911). Vive-se, pois, o paradigma da condição generalizadora, no qual se adota a concepção segundo a qual “há, na participação criminosa, uma associação de causas conscientes, uma convergência de atividades que são, no seu incindível conjunto, a causa única do evento e, portanto, a cada uma das fôrças concorrentes deve ser atribuída, solidariamente, a responsabilidade pelo todo” (Idem). Desse modo, o direito positivo brasileiro passa a considerar que “quem emprega qualquer atividade para a realização do evento criminoso é considerado responsável pela totalidade dêle, no pressuposto de que também as outras fôrças concorrentes entraram no âmbito da sua consciência e vontade” (Ibidem). Pela sistemática proposta pelo Código de 1940, então, “(...) basta que determinada atividade seja condição do resultado, concorrendo para a sua verificação, para que se repute causa desse resultado. O ato de uma pessoa que contribuísse, como simples auxiliar, para a obtenção de um resultado criminoso, não deixaria de ser causa do resultado. Se alguém coadjuvou no crime com certa parcela de ação, embora mínima, criando assim uma condição do acontecimento delituoso, foi seu causador, nos termos do art. 11” (GARCIA, Basileu, Instituições de Direito Penal, p. 362).

[5]     GARCIA, Basileu, Instituições de Direito Penal, p. 375.

[6]     NASCIMENTO, José Flávio Braga, Concurso de pessoas, p. 36.

[7]     Ainda no ponto, vale registrar que a explícita intenção unitária do CP de 1940, de base causal, foi direcionada “exatamente no sentido preconizado por Von Liszt, que pregava a existência, em qualquer código penal, de apenas uma única norma referente à autoria: quem estabeleceu uma condição para o resultado ocorrido é responsável por este. Um tal dispositivo constribuiria, segundo Von Liszt, sobremaneira para a simplificação do direito penal, evitando uma miríade de querelas meramente conceituais e doutrinárias (V. Liszt. Strafrechtliche Aufsätze, vol. II, Berlin, 1905, p. 88). Essa pretensão de Von Liszt ganhou (embora não completa) acolhida junto à União Internacional de Direito Penal, fonte de que bebeu o Código Penal italiano de 1930, por sua vez inspiração confessa do Código Penal brasileiro de 1940” (GRECO, Luís. TEIXEIRA, Adriano, Autoria como realização do tipo: uma introdução à idéia de domínio do fato como o fundamento central da autoria no Direito Penal brasileiro, pp. 68-69).

[8]     Na lição de Bruno, o CP de 1940 “(...) recusa-se a fixar a priori um esquema de formas de participação e estabelecer entre elas diferença de tratamento penal. A pena em princípio é a mesma para todos os concorrentes, cabendo aos juízes atender a circunstâncias particulares de maior ou menor responsabilidade” (BRUNO, Aníbal. Direito Penal, p. 257). Ou seja: para Bruno, o art. 25 do CP de 1940 simplesmente “atribui, em princípio, a todos os que concorrem no fato punível a mesma consequência penal” (Idem, p. 258). Mas ocorre que Bruno, enxergou no CP de 1940 como um todo (em especial pela conjugação dos arts. 11 e 25) algo mais do que a simples equiparação a priori das penas: concluiu-se que, frente a tal diploma, o código teria adotado uma orientação unitária da autoria. O mestre do Recife é, nesse ponto, taxativo: “todo colaborador é autor” (Ibidem, p. 258). De igual modo para Benfica: “todos os participantes de um crime são autores” (BEMFICA, Francisco Vani, Curso de Direito Penal, p. 285). Na mesma linha, veja-se ainda o magistério de Nascimento: “O Código de 1940 termina com a estrutura anterior e muda completamente sua orientação no concernente à codelinquência, equiparando todos os agentes que contribuíram para o crime” (NASCIMENTO, José Flávio Braga, Concurso de pessoas, p. 32). Nélson Hungria também é taxativo na questão atinente à adesão legal ao modelo unitário: “Todos os partícipes são autores, pois todos cooperam na realização do crime com igual eficiência causal (isto é, suas cotas de cooperação são igualmente necessárias e decisivas in concreto ou segundo um juízo ex post)” (HUNGRIA, Nélson, Cometários ao Código Penal, pp. 405-406). Também Esther de Figueiredo Ferraz, em trabalho monográfico sobre concurso de pessoas, enxergou, na legislação de 1940, a opção pela sistemática unitária: “Adotando como ponto de partida a teoria da equivalência das causas e das condições (art. 11), aboliu o vigente estatuto a distinção, já consagrada no direito brasileiro, entre autores e cúmplices” (FERRAZ, Esther de Figueiredo, A co-delinquência no Direito Penal brasileiro, p. 3).

[9]     Ou seja, independentemente do modelo conceitual que se adote quanto à codelinquência, impõe-se a observância ao princípio da culpabilidade, que só é respeitado quando a construção, mesmo levando a um sistema não diferenciado, preserve a garantia da análise individualizada da intervenção de cada um dos concorrentes na etapa de aplicação da pena. Somente nessa moldagem é que se mostra aceitável a ideia central do modelo unitário, de refutar a distinção entre autoria e participação, pois a diferenciação seria de certo modo substituída por uma concreta apreciação judicial da culpabilidade individual de cada um dos intervenientes, com base na efetiva contribuição subjetiva e objetiva de cada concorrente. Com isso, se atenua o maior defeito da construção, qual seja a indevida equiparação valorativa das intervenções, sem se chegar ao estabelecimento de marcos penais próprios, ou seja, sem se chegar a um modelo diferenciado.

[10]    No ponto, veja-se que Hungira criticava severamente o modelo diferenciado, exatamente porque ele traz uma “ilógica, (...) apriorística e irrestrita diferenciação de punição dos co-delinquentes” (HUNGRIA, Nélson. Cometários ao Código Penal, p. 398).

[11]    Corroborando os fundamentos do nosso entendimento, cite-se o magistério de Cirino dos Santos: “O conceito unitário de autor representa a mais antiga teoria sobre a relação do sujeito com o fato: autor é quem produz qualquer contribuição causal para a realização do tipo legal. Em sua formulação original, o conceito unitário de autor não distingue entre autor e partícipe: as diferenças de contribuição objetiva ou subjetiva entre os autores não constituem problema do tipo de injusto, mas matéria da aplicação da pena, como medida da culpabilidade individual” (SANTOS, Juarez Cirino dos, A moderna teoria do fato punível, p. 272).

[12]    Ainda no ponto, cumpre registrar que a doutrina da época efetivamente reconheceu no CP de 1940 um modelo unitário funcional. Nesse sentido, Bruno questionava a possibilidade concreta de um modelo puramente unitário, senão vejamos: “Não é realmente fácil contestar a distinção que separa, na realidade objetiva ou subjetiva do fato punível, os vários graus de participação, quer sob o ponto de vista da quantidade de crime realizado por cada um dos partícipes, quer sob o ponto de vista da intensidade da vontade criminosa, e daí da culpabilidade e da perigosidade criminal do sujeito. Em um sistema penal de sentido objetivo, lógico é que se considere que quanto mais perto estiver o agente de participar da realização da ação típica, com vontade e consciência, maior deverá computar-se a sua responsabilidade. Mesmo conceitualmente, não se pode deixar de distinguir formas diversas de participação. Será reconhecer que, além da causalidade, é necessário tomar em consideração, para fixar a responsabilidade penal os outros aspectos do fato punível, como ato típico, antijurídico e culpável. Não é só do nexo causal que deriva a responsabilidade penal do agente pelo fato punível, mas ainda da culpabilidade, e se a força causal da atividade do agente, no rigor da teoria da equivalência das condições, não pode variar, pode fazê-lo a culpabilidade, apresentando-se com intensidade maior ou menor nesta ou naquela forma de participação, o que, aliás, pode ser sistematicamente estabelecido para certas categorias de partícipes, e, por fim, é na culpabilidade, sobretudo, que se fundamenta a força da punição” (BRUNO, Aníbal, Direito Penal, pp. 259-260). De modo que, para Bruno, “uma atitude mais conforme a realidade e com os elementos que integram conceitualmente a ação punível conduz naturalmente a distinguir pelo menos (...) autoria e participação” (Idem, p. 263). Concretamente, Bruno se valia do critério formal-objetivo, pois considerava autor aquele que realiza a ação típica, e partícipe aquele que, de qualquer modo, serve à atuação do autor (Ibidem, p. 263).

[13]    Considerando que hoje a pena da tentativa é reduzida de um a dois terços (CPb, Art. 14, Parágrafo único. Salvo disposição em contrário, pune-se a tentativa com a pena correspondente ao crime consumado, diminuída de um a dois terços), entendemos que a causa especial de redução de pena da participação de menor importância também deveria ter sido fixada neste patamar, dada a similitude de tratamento que sempre existiu em nosso ordenamento, não se justificando que tenha ficado no pequeno patamar reducionista de um sexto a um terço apenas.

[14]    No ponto, a lição de Paulino Neto retrata, com fidedignidade, tal linha de raciocínio: “É do princípio da causalidade que decorre o conceito do concurso de agentes: todos os que empregam, de qualquer forma, suas atividades para um crime, cooperam com uma causa para a sua produção e assim, à indivisibilidade do fato criminoso, decorre a responsabilidade de todos os agentes. Se o resultado de que depende a existência do crime é imputável a quem lhe deu causa e se o crime, como qualquer outro fenômeno, é produto da reunião de causas que o determinam, responsável por ele é todo aquele que concorreu com uma ação ou omissão sem a qual o evento não teria ocorrido” (NETO, Paulino, Conceito de co-autoria segundo o Código Penal Brasileiro, p. 422).

[15]    Para Greco e Teixeira o atual CPb “transforma a questão da forma de contribuição do agente no delito em um mero problema de dosimetria da pena, especialmente em razão de dois dispositivos. O primeiro é o art. 29, caput, que diz que: Quem, de qualquer modo, concorre para o crime incide nas penas a este cominadas, na medida de sua culpabilidade. O problema central que se coloca é determinar o que significa concorrer para o crime. Em geral, concorrer é interpretado com referência ao art. 13, caput, que diz que o resultado, de que depende a existência do crime, somente é imputável a quem lhe deu causa. Considera-se causa a ação ou omissão sem a qual o resultado não teria ocorrido. A combinação dos dois dispositivos nos remete, portanto, à concepção causal de autoria” (GRECO, Luís, TEIXEIRA, Adriano, Autoria como realização do tipo: uma introdução à idéia de domínio do fato como o fundamento central da autoria no Direito Penal brasileiro, p. 51).

[16]    De fato, a redação do art. 29 da Nova Parte Geral só não se pode dizer idêntica ao do antigo art. 25 do CP de 1940 porque agora há uma expressão final (“na medida da sua culpabilidade”), mas que, contudo, vem sendo considerada desnecessária por parte da doutrina. Nesse sentido é o magistério de Cunha Luna (LUNA, Everardo da Cunha, Capítulos de Direito Penal, p. 255), para quem a doutrina “dispensa a presença na lei, da cláusula referida”, e também o de Beatriz Vargas (RAMOS, Beatriz Vargas, Do concurso de pessoas, p. 179), para quem tal expressão “poderia ser suprimida, sem prejuízo para a individualização da pena”.

[17]    Nesse sentido é o magistério de Nilo Batista: “o código penal de 1940 – e isso não foi modificado pela reforma de 1984 – adotou uma visão indiferenciada de autores e partícipes, baseada numa concepção extensiva da autoria de base causal” (BATISTA, Nilo, Concurso de Agentes, p. 37).

[18]    De modo que, segundo Heleno Fragoso, “a lei penal brasileira resolveu em termos simples a questão da co-delinquência, partindo da teoria da equivalência dos antecedentes, adotada quanto à relação de causalidade” (FRAGOSO, Heleno Cláudio, Lições de Direito Penal, p. 251).

[19]    Nesse sentido, Zaffaroni e Pierangeli asseveram que “o código não se ocupa em definir o autor, o cúmplice e o instigador, e apenas estabelece regras de fixação de penas para todos” (ZAFFATONI, Eugenio Rául e PIERANGELI, José Henrique, Manual de Direito Penal brasileiro, p. 665).

[20]    Pode-se dizer que a distinção é pré-jurídica, como, por exemplo, Fragoso: “Se a lei não distingue entre autor e partícipe (em sentido estrito), considerando co-autores todos quantos concorrem para a ação delituosa, tal distinção, no entanto, está na natureza das coisas e não pode ser desconhecida pela doutrina, pois dela resultam consequências jurídicas” (FRAGOSO, Heleno Cláudio, Lições de Direito Penal, p. 252).

[21]    Nilo Batista leciona que “(...) o código penal de 1940 – e isso não foi modificado pela reforma de 1984 – adotou uma visão indiferenciada de autores e partícipes, baseada numa concepção extensiva da autoria de base causal” (BATISTA, Nilo, Concurso de Agentes, p. 37). Nada obstante, o autor reconhece que “a diferença entre autor e partícipe (...) subsiste nos dispositivos do Código Penal que regem o concurso de agentes” (Idem, p. 59). No ponto, é importante destacar que Nilo Batista chega a tal conclusão prescindindo expressamente “da perspectiva que situa na realidade objetiva a diferença entre autor e partícipe” (Ibidem).

[22]    Dentro do modelo conceitual unitário distinguem-se as construções formal e funcional, segundo tradicional classificação elaborada por Kienapfel (Cf. von Diethelm, Der Einheitstäter im Strafrecht. Frankfurt: Klostermann Verlag, 1971, pp. 22, 25-26, apud  BOLEA BARDON, Carolina, Autoría mediata en derecho penal, p. 76). A construção formal se caracteriza por considerar todo aquele que intervém no fato criminoso como autor dele, sem fazer qualquer tipo de distinção entre formas de autoria. Já a construção funcional, por sua vez, apesar de partir da mesma premissa de que todos os intervenientes são autores, admite distintas formas de autoria, se bem que com idêntica valoração jurídica sobre elas, e consequentemente também idêntica responsabilização penal.

[23]    TAVARES, Juarez, Fundamentos de Teoria do Delito. Florianópolis: Tirant lo Blanch, 2018, p. 79. O autor adverte que “essa é uma regra lógica da dogmática penal, pela qual condutas menos graves não podem receber pena maior do que condutas mais graves. Também, segue-se aqui preceito básico da ordem jurídica, pelo qual o acessório não pode ser mais relevante do que o principal. Nesse sentido, a pena da tentativa deve ser menor do que a pena do crime consumado. Nessa sequência, em legislações que punam atos preparatórios, essa punição não pode ser mais grave do que a punição da tentativa” (Idem, p. 80).

[24]    No ponto, vale mencionar o magistério de Adriano Teixeira, para quem “o principal argumento a favor de uma determinação da pena proporcional ao fato é a observância estrita do princípio da culpabilidade e de um princípio da legalidade forte” (TEIXEIRA, Adriano, Teoria da aplicação da pena: fundamentos de uma determinação judicial da pena proporcional ao fato. São Paulo: Marcial Pons, 2015, p. 71). Trata o autor, especificamente, do princípio da proporcionalidade aplicado à determinação judicial da pena, que constitui a “teoria da proporcionalidade pelo fato” (Tatproportionalitätstheorie). A tese defendida por ele, à qual aderimos, é a seguinte: “A teoria da proporcionalidade pelo fato apresenta-se como o modelo de aplicação da pena mais adequado aos princípios fundamentais que limitam o poder punitivo do Estado. A despeito de sua origem no retributivismo anglo—americano e sua famosa fundamentação baseada numa teoria expressivista, um modelo de aplicação da pena proporcional ao fato é plenamente compatível com uma concepção que justifica a existência da pena na finalidade de prevenir delitos através da ameaça sancionatória. Seu verdadeiro fundamento decorre da rígida observância dos limites jurídico-penais próprios de um Estado de direito: os princípios da culpabilidade e da legalidade” (Idem, pp. 179-180).

[25]    O caráter extrínseco do princípio da proporcionalidade, por exemplo, determina a punição mais branda do crime tentado frente ao crime consumado, por exemplo.

[26]    Individualização da pena significa “atendimento às singularidades da realização típica”, e não valorização do indivíduo (Cf. TEIXEIRA, Teoria da aplicação da pena, Op. Cit., p. 33).

[27]    No mesmo sentido, a Súmula n. 243 do STJ: “O benefício da suspensão do processo não é aplicável em relação às infrações penais cometidas em concurso material, concurso formal ou continuidade delitiva, quando a pena mínima cominada, seja pelo somatório, seja pela incidência da majorante, ultrapassar o limite de um (01) ano”

[28]    Superior Tribunal de Justiça, Sexta Turma, HC n. 505.156, Relator o Ministro Rogerio Schietti Cruz, julgado em 15/10/2019, DJe de 21/10/2019: “[...] 3. A suspensão condicional do processo, prevista no art. 89 da Lei 9.095/1995, requer que a pena mínima cominada ao delito seja igual ou inferior a 1 ano. O delito de contrabando, previsto no art. 334-A do CP, prevê sanção que varia de 2 a 5 anos de reclusão. Em sua forma consumada, portanto, é inviável a concessão do benefício. 4. Entretanto, em se tratando de crime tentado, deve ser considerada a menor pena cominada em abstrato para o delito, reduzida pela fração máxima prevista no art. 14, II, do Código Penal, isto é, de 2/3, o que possibilita a suspensão condicional do processo, na medida em que a pena mínima em abstrato, com a redução pela tentativa, é inferior a 1 ano. [...]”.

[29]    Assim, nas exatas palavras de Greco e Teixeira, temos que “os dispositivos em que o direito brasileiro regula o concurso de pessoas (arts. 29-31) parecem no mínimo ambíguos no que diz respeito à tomada de posição em favor de um conceito extensivo ou restritivo de autor” (GRECO, Luís, TEIXEIRA, Adriano, Autoria como realização do tipo: uma introdução à idéia de domínio do fato como o fundamento central da autoria no Direito Penal brasileiro, p. 68).

[30]    TAVARES, Juarez, Fundamentos de Teoria do Delito. Obra citada, p. 80.

[31]    De acordo com o princípio da autorresponsabilidade, “cada pessoa é responsável apenas pelo seu próprio comportamento e nunca pelo comportamento livre e responsável de terceiros” (OTTO, Harro, Grundkurs Strafrecht: Allgemeine Strafrechtslehre, 7ª. Ed., 2004, § 6, nm. 49 apud GRECO, Luís, Domínio da organização e o chamado princípio da autorresponsabilidade, p. 204). De acordo com Greco, “o princípio da autorresponsabilidade pode ser compreendido com alcances diversos. Ele pode ser entendido ou como um princípio geral do Direito, que irradia efeitos por todo o Direito Penal, ou como um princípio setorial, relevante apenas para determinados institutos jurídicos. O alcance do princípio não é fruto de uma mera estipulação. Ele não é fixado por uma opinião, mas sim pelo nível em que se encontram os argumentos trazidos à baila como justificação do princípio. Caso sejam aduzidas como justificação reflexões e ideias de caráter geral, como o conceito de Estado de Direito ou a imagem de ser humano (Menschenbild) que lhe subjaz, ou ainda o princípio da culpabilidade, então ter-se-á um princípio da autorresponsabilidade com pretensão de viger como um princípio geral do Direito. Caso se fundamente o princípio da autorresponsabilidade na ideia de domínio do fato, o princípio possuirá validade na dogmática da autoria de todos aqueles delitos que se baseiem naquela ideia, ou seja, na dogmática de todos os chamados delitos de domínio. Caso se vincule o princípio ao conceito de domínio da vontade, então ele terá relevância apenas na autoria mediata” (GRECO, Luís, Domínio da organização e o chamado princípio da autorresponsabilidade, p. 204). Nesta investigação, adotamos a segunda concepção mencionada.

[32]    Cf. BOLEA BARDON, Carolina, Autoría mediata en derecho penal, p. 139.

[33]    Nesse sentido é o magistério de Beatriz Vargas, para quem a regra do caput do art. 29 do CPb apenas determina que “todo aquele que dá causa ao resultado, pelo menos objetivamente falando, responderá pelo mesmo, mas, nem sempre na condição de autor, senão, às vezes, na de partícipe” (RAMOS, Beatriz Vargas, Concurso de Pessoas, p. 115).

[34]    LEITE, Alaor, Domínio do fato, domínio da organização e responsabilidade penal por fatos de terceiros: os conceitos de autor e partícipe na AP 470 do Supremo Tribunal Federal, p. 138.

[35]    Cf. BATISTA, Nilo, Concurso de Agentes, p. 45.

[36]    A nosso ver, o art. 13 do CPb, na melhor interpretação que se lhe pode ser dada, determina apenas e tão somente que, em se tratando de um crime de resultado, impõe-se a relação causal. Ou seja, o nexo de causalidade de que trata o art. 13 do CPB somente é aplicável nos casos em que há efetiva modificação da realidade (crimes materiais, ou de resultado naturalístico), não sendo adequado para tratar da simples valoração normativa do atuar (crimes formais, ou de mera conduta). Diante desse cenário, sobreleva reduzir drasticamente a importância que se dá ao art. 13 do CPb, e ceifar toda a influência que a teoria da conditio sine qua non possa exercer fora dos seus estritos limites. Vale dizer: cumpre execrar a ideia de que autor é todo aquele que põe uma causa para o resultado, a partir de uma releitura do art. 13 do CPb. Desse modo, lançam-se as bases para se afastar, no nosso sistema, a causalidade da autoria e das demais formas de intervenção no crime.

[37]    BATISTA, Nilo. Concurso de Agentes, p. 43.

[38]    Conforme lecionam Greco e Teixeira, “à primeira vista, tomando por base o caput do art. 29, lido juntamente com o art. 13, parece que estamos diante de um dispositivo característico de um sistema unitário formal, baseado em um conceito extensivo de autor, de base causal (...) Parece, ainda assim, haver espaço para uma interpretação alternativa. Segundo essa interpretação, o art. 29, caput, teria natureza dúplice, abarcando, numa formulação vaga (concorrer de qualquer modo) tanto os autores, quanto os partícipes. No que respeita ao primeiro aspecto, à autoria, o dispositivo teria caráter declaratório. A rigor, ele repetiria o que já dizem os tipos da parte especial: quem mata, lesiona, subtrai é autor, uma vez que autoria é realização do tipo. A importância do dispositivo estaria, assim, na sua segunda dimensão, referida aos partícipes, aos que não matam, lesionam ou subtraem, e que por isso só podem ser punidos se seu comportamento for compreendido por uma norma de extensão da punibilidade. O art. 29, caput, do CP seria essa norma, que teria, nesse aspecto, natureza constitutiva. Como essa interpretação restringe o sentido literal do termo concorrer de qualquer modo, que tradicionalmente é interpretado em conjunto com o art. 13, caput, CP, não há qualquer óbice fundado no princípio nullum crimen sine lege” (GRECO, Luís, TEIXEIRA, Adriano, Autoria como realização do tipo: uma introdução à idéia de domínio do fato como o fundamento central da autoria no Direito Penal brasileiro, pp. 69-70).

[39]    No ponto, vale relembrar que o conceito extensivo de autoria equipara, no âmbito da imputação da responsabilidade penal, todos os concorrentes na infração. Por sua vez, o conceito restritivo limita a imputação direta da responsabilidade penal apenas a um grupo desses concorrentes, chamados autores e coautores, e por isso exige a existência de uma norma que estenda a punibilidade também aos partícipes.

[40]    No ponto, vale citar o importante magistério de Bolea Bardon: “La distinción entre autor y partícipe, punto de partida del concepto restrictivo, tiende a asegurar que cada uno responda por su propia contribución al hecho y, en este sentido, favorece la realización del principio de propia responsabilidad y el desarrollo de una teoria de la autoria acorde con una concepción personal del injusto” (BOLEA BARDON, Carolina, Autoría mediata en derecho penal, p. 139).

[41]    Nesse sentido é o magisterio de Bolea Bardon: “Ante un fenómeno como el de la codelincuencia, el Derecho penal puede optar, en líneas generales, entre dos modelos: el que niega toda distinción entre los que intervienen en el hecho y el que reconoce distintas formas de intervención en el mismo” (BOLEA BARDON, Carolina, Autoría mediata en derecho penal, p. 35).

[42]    No ponto, vale ressaltar o magistério de Bolea Bardon: “Las teorías sobre la autoría surgen cuando se intenta averiguar quién (quiénes) de entre varias personas que intervienen en un hecho es (son) autor (autores) del mismo. Intentan contestar a la pregunta: quién ha realizado el tipo? Tratándose de un sujeto individual que ejecuta por sí mismo un hecho, se le imputa la conducta típica, siempre que se den los presupuestos de imputación objetiva y subjetiva. En otras palabras, al que actúa solo, en general, nadie le disputa el título de autor. En cuanto son varios los que intervienen en un hecho, empiezan a ponerse de manifesto los múltiples problemas dogmáticos que se plantean en sede de autoría. De hecho, ni siquiera la necessidad de establecer una delimitación entre autoría y participación está fuera de cuestión. Hasta el momento, dos han sido los modelos básicamente propuestos en la construcción de la teoria sobre la autoría: el modelo diferenciado y el modelo unitario de autor” (BOLEA BARDON, Carolina, Autoría mediata en derecho penal, p 29).

[43]    Autores como Otto (Cf. OTTO, Harro, Täterschaft, Mittäterschaft, mittelbare Täterschaft, em: Juristische Ausbildung, 1987, p. 246, apud BOLEA BARDON, Carolina, Autoría mediata en derecho penal, pp. 110-111, nota 10) e Miguel Conlledo (DÍAZ Y GARCÍA CONLLEDO, Miguel, La autoría en Derecho penal, 1991, p. 268, apud BOLEA BARDON, Carolina, Autoría mediata en derecho penal, pp. 110-111, nota 10) ressaltam que, ainda em se reconhecendo a diferença entre autoria e participação no plano naturalístico, não se pode exigir que essa realidade dada vincule a sua apreciação jurídica. Ou seja, ainda que se considere que a autoria e a participação são objetivamente formas distintas de intervenção no crime, não se pode impor ao legislador que reconheça essas diferenças para fim de estabelecer o marco penal, sendo-lhe portanto lícito tratar igualmente realidades desiguais. Em outras palavras, temos que a existência de diferenças objetivas na distinção entre autoria e participação, sob uma base ontológica, não vincula o legislador a tratar essas formas de intervenção de maneira diversa, sendo-lhe permitido tanto levá-las em conta de algum modo como também prescindir de considerá-las e tratar as duas espécies de maneira idêntica, sem qualquer tipo de diferenciação.

[44]    Note-se que dentro desse primeiro marco penal existem diferentes níveis de apenação concreta em razão da incidência das circunstâncias agravantes no caso de concurso de pessoas, previstas no art. 62 do CPb. Esse dispositivo permite assim um ajustamento da pena dentro do primeiro marco, em decorrência do reconhecimento da existência de circunstâncias que aumentam a reprovabilidade da conduta do concorrente.

[45]    Ainda dentro desse primeiro marco, entendemos que o cooperador necessário deve, em regra, ser beneficiado com a circunstância atenuante geral inominada do art. 66 do CPb. Essa circunstância, a nosso ver, também permite o ajustamento da reprimenda dentro do marco penal, só que agora em decorrência do reconhecimento de que, a princípio, embora sujeito ao mesmo marco penal, a reprovabilidade do cooperador sempre será menor do que a reprovabilidade do autor.

[46]    No ponto, o magistério de Beatriz Vargas mostra-se, em certa medida, coincidente com o nosso entendimento, senão vejamos: “Uma leitura do § 1º do art. 29 não deixa dúvida de que o direito brasileiro recomenda, para efeito de punição, que seja apreciada a maior ou menor importância da participação. Esta apreciação relaciona-se, é evidente, com o debate sobre a cumplicidade primária e secundária. Assim, não exitamos em responder que a discussão assume importância em face do nosso direito positivo (RAMOS, Beatriz Vargas, Do concurso de pessoas, pp. 86-87).

[47]    Vale ressaltar que esse marco penal privilegiado do § 1º do art. 29, CPB, somente tem aplicação nos casos de participação, “não se aplicando às hipóteses de coautoria. Não se poderá falar, portanto, em coautoria de menor importância, a fim de atribuir a redução de pena a um dos co-autores. Isto porque, de acordo com a posição adotada pela teoria do domínio funcional do fato, observando-se o critério de distribuição de tarefas, co-autor é aquele que tem o domínio funcional do fato que lhe fora atribuído pelo grupo, sendo a sua atuação, assim, relevante para o sucesso da empreitada criminosa. Dessa forma, toda atuação daquele que é considerado co-autor é importante para a prática da infração penal” (GRECO, Rogério, Concurso de pessoas, pp. 70-71).

[48]    PIRES, Ariosvaldo de Campos, Compêndio de Direito Penal, pp. 212-213. Como diz o autor (Idem), “seria um desconchavo lógico e jurídico entender uma decisão, por exemplo, que a participação foi de menor importância, e, não obstante, deixar de conceder a redução”. Em igual sentido é a lição de Dotti (DOTTI, René Ariel, Curso de Direito Penal, p. 358), para quem “trata-se de uma causa especial de redução obrigatória da pena e não de mera faculdade judicial. A redução de pena em tal caso é obrigatória”. Também nessa linha está o magistério de Bitencourt (BITENCOURT, Cezar Roberto, Tratado de Direito Penal, p. 455) e de Prado (PRADO, Luiz Regis, Curso de Direito Penal Brasileiro, p. 401), e de Damásio (JESUS, Damásio E. de, Direito Penal, p. 426), o qual anota que “a faculdade, indicada pela expressão pode, diz respeito ao quantum da diminuição”. Em sentido contrário leciona Noronha (NORONHA, E. Magalhães, Direito Penal, p. 214): “a redução da reprimenda é facultativa e não obrigatória. O verbo, da forma usada – pode ser – indica uma faculdade judicial a ser usada com prudência e não arbítrio. Ou, se desejarem, o consagrado e tão mencionado prudente arbítrio do juiz”. Também em sentido contrário se orienta o magistério de Mirabete (MIRABETE, Julio Fabbrini, Manual de Direito Penal, p. 238): “trata-se de uma redução facultativa da pena, podendo o juiz deixar de aplicá-la, mesmo convencido da apoucada importância da contribuição causal para o delito. Assim, poderá ocorrer em relação ao sujeito que, embora emprestando um modesto e desnescessário auxílio, revele uma vontade dirigida ao delito em intensidade semelhante à dos demais sujeitos, circunstância que pode autorizar um juízo de equiparação no plano da culpabilidade”. No ponto, é ainda oportuno citar a opinião de Beatriz Vargas, para quem a redução é facultativa justamente por considerar a autora ser o nosso sistema unitário: “No regime diferenciador, a menor apenação do cúmplice, em relação ao autor, é obrigatória. (...) O mesmo não ocorre no regime unitário, como o brasileiro, onde a redução da pena para o partícipe é facultativa” (RAMOS, Beatriz Vargas, Do concurso de pessoas, pp. 22-23).

[49]    No ponto, Greco e Teixeira levantam a questão, ainda que somente para refutá-la, da possibilidade de que a participação de menor importância (CPB, art. 29, § 1°.) fosse equivalente à participação em sentido estrito. Em suas palavras: “Não cremos que a figura da participação de menor importância seja equivalente à participação em sentido estrito, que engloba a instigação e a cumplicidade” (GRECO, Luís, TEIXEIRA, Adriano, Autoria como domínio do fato, p. 70). A discussão levantada, e imediatamente refutada, se mostra absolutamente dispensável. É que não se pode negar a obviedade da conclusão. Entender de outra forma seria verdadeiro absurdo. Contudo, a par de levantar essa questão inócua, a óbvia conclusão dos autores infelizmente os leva a um desdobramento inusitado: “Assim, nada obsta, em princípio, a que a figura seja afirmada também no caso de um autor. Conforme uma concepção restritiva, o autor pode, em tese, praticar ações de menor importância (...)” (Idem). Esse desdobramento, apresentado como uma decorrência natural da conclusão anterior, em verdade não é nada natural, pois a norma legal é literal em afirmar que regula apenas os casos de participação. Então, se “participação de menor importância” não é sinônimo de “participação em sentido estrito”, porque seria de “participação em sentido amplo”? A verdade, no caso, é óbvia: “participação de menor importância” é, apenas e tão somente, “participação de menor importância”. Dessa forma, a causa de redução do art. 29, § 1°., somente se aplica aos casos de participação de menor importância. E não se aplica a todos os casos de participação, e muito menos aos casos de autoria.

[50]    Tal sistema, repita-se, é em todo semelhante aos dos Códigos de 1830 e 1890: neles havia a autoria e as figuras a ela equiparadas quanto ao marco penal, e também havia a participação secundária (constituída pela cumplicidade), que se caracterizava primordialmente por corresponder a um marco penal próprio, equivalente à pena dos autores reduzida de um terço (semelhante à redução correspondente ao crime não consumado, ou seja, à chamada tentativa).

[51]    No ponto, veja-se que Greco e Teixeira também fazem esse esforço interpretativo e igualmente propõem a releitura do CPB como um sistema restritivo e diferenciador, senão vejamos: “(...) Os dispositivos do CP, se bem que em seu conjunto apontem para um modelo extensivo e unitário, não são refratários a uma reinterpretação baseada em um modelo restritivo e diferenciador. E, tomados individualmente, alguns permanecem de todo neutros diante dos dois sistemas (na medida de sua culpabilidade, art. 29, caput; participação de menor importância, art. 29, § 1°.; participação dolosamente distinta, art. 29, § 2°.); outros são, é verdade, mais próprios de um sistema extensivo e unitário, mas permitem uma reinterpretação progressista fundada na ideia de legalidade, de que os tipos não podem ser dissolvidos (quem, de todo modo, concorre, art. 29, caput). O único dispositivo que realmente aponta em sentido contrário ao modelo aqui defendido é o da comunicabilidade de circunstâncias (art. 30), que, contudo, é problemático por igualar extraneus e intraneus de maneira não mais condizente com o princípio da culpabilidade. Por outro lado, o dispositivo que declara impune a participação em crime que sequer chega a ser tentado (art. 31) e, principalmente, a própria distinção entre lesionar outrem e participar em uma autolesão, que é pressuposta por todos os tipos da parte especial, demonstram a necessidade de um modelo como o que aqui se propõe” (GRECO, Luís, TEIXEIRA, Adriano, Autoria como realização do tipo: uma introdução à idéia de domínio do fato como o fundamento central da autoria no Direito Penal brasileiro, p. 78).

[52]    “Se o crime consiste em uma ação humana, positiva ou negativa (nullum crimen sine actione), o destinatário da norma penal é todo aquele que realiza a ação proibida ou omite a ação determinada, desde que, em face das circunstâncias, lhe incumba o dever de participar o ato ou abster-se de fazê-lo” (ABI-ACKEL, Exposição de Motivos da Nova Parte Geral do Código Penal: Ítem nº 12, Em: Lei nº. 7.209: de 11 de julho de 1984. Brasília: Diário Oficial da União, de 13 de juho de 1984, p. 10.217).

[53]    Costa e Silva leciona que essa distinção entre partícipes é adotada pelo Direito desde os práticos italianos da idade média, que faziam a divisão entre auxiliator delicto causam dans e auxiliator simplex (COSTA E SILVA, Antônio José da, Código Penal dos Estados Unidos do Brasil, pp. 97-98).

[54]    A expressão tomamos de empréstimo a Hungria: HUNGRIA, Nélson, Comentários ao Código Penal, p. 408.

[55]    Nilo Batista adota uma posição de todo semelhante a esta, senão vejamos: “Tradicionalmente se distingue entre cumplicidade necessária e cumplicidade desnecessária, porque inúmeros sistemas legislativos propunham punição mais severa para o cúmplice sem cuja colaboração o crime não se teria realizado. Hungria supôs ter expurgado de nossa lei este problema, que segundo ele só servia para dar dor de cabeça aos juízes; para fazê-lo, todavia, seria preciso revogar o art. 29, § 1º, CP, que minora a pena da cumplicidade desnecessária (também chamada de auxílio secundário)” (BATISTA, Nilo, Concurso de Agentes, p. 187).

[56]    No extremo oposto temos os requisitos de punibilidade da participação, que se referem à linha divisória entre a intervenção que configura uma forma punível de contribuição ao crime e as demais intervenções que não alcançam a esfera da punibilidade.

[57]    Diz-se que o modelo conceitual unitário traz uma grande simplificação à teoria da codelinquência porque nele não se conhece qualquer distinção entre autor e partícipe. Nesse sentido é a lição de Graco e Leite: “O sistema unitário torna dispensável todo o esforço analítico e dogmático de distinção entre as formas de autoria e de participação. Os diferentes graus de contribuição são relegados ao plano individualizador da determinação judicial da pena. (....) Esse sistema simplifica, assim, sobremaneira a aplicação do direito” (GRECO, Luís, LEITE, Alaor, A distinção entre autor e partícipe como problema do legislador. Autoria e participação no projeto de Código Penal (PLS 236/2012), p. 175). “Se a simplicidade já é um valor até para ciências puras, com muito maior razão ela importa para a ciência prática ou aplicada que é o direito. O argumento da simplicidade, da facilitação na aplicação do direito, sempre foi, assim, um dos carros-chefe dos defensores do sistema unitário. Todas as contribuições causais são igualmente relevantes, em sintonia com a teoria da conditio sine qua non codificada no art. 13, caput, CP, e todos são autores em sentido amplo, ou concorrentes, na língua do art. 29, caput: o motorista contratado para conduzir até o local do homicídio, o homicida, mas também o dono do carro, que sabia de tudo e sem o qual não seria possível conduzir o homicida até o local do crime. Todas as contribuições causais são consideradas equivalentes” (Idem, p. 176). Além disso, como no modelo em foco “toda contribuição causal para o resultado típico significa autoria, então não existem lacunas de punibilidade” (SANTOS, Juarez Cirino dos, A moderna teoria do fato punível, p. 273), de modo que o modelo causal-unitário realmente se mostra bastante prático em seu manejo cotidiano: “Entre todas as concepções sobre as formas de intervir no delito que se oferecem ao legislador, no entanto, nenhuma parece responder, num primeiro momento, aos anseios mais pragmáticos da prática judiciária do que o chamado sistema unitário de autor, que, grosso modo, determina que todos que contribuem causalmente para o delito são autores em sentido amplo (ou concorrentes), e estão submetidos, em princípio, aos mesmos marcos penais” (GRECO, Luís, LEITE, Alaor, A distinção entre autor e partícipe como problema do legislador. Autoria e participação no projeto de Código Penal (PLS 236/2012), p. 172). Ademais, como “as diferenças de contribuição subjetiva e objetiva são consideradas na pena como expressão da culpabilidade pessoal, então a sanção penal aparece em íntima correlação com a personalidade do autor” (SANTOS, Juarez Cirino dos, A moderna teoria do fato punível, p. 273), o que se mostra também um ponto elogiável do modelo.

[58]    A questão é muito bem sintetizada na seguinte passagem de Greco e Leite: “Por que discutir a distinção entre autor e partícipe diante do Código Penal brasileiro, que dispõe que todo aquele que concorrer para o crime incide nas penas a ele cominadas (art. 29, caput)? (...) Em outras palavras, adotado o sistema unitário de autor e inexistente previsão de diferentes marcos penais para determinadas formas de intervenção no delito, seria inútil articular conceitos teóricos sobre a distinção entre autor e partícipe, e toda a complexidade dos casos concretos seria remetida ao plano individualizador da determinação judicial da pena” (GRECO, Luís, LEITE, Alaor, A distinção entre autor e partícipe como problema do legislador. Autoria e participação no projeto de Código Penal (PLS 236/2012), p. 170).

[59]    No ponto, note-se que para Jakobs a distinção entre autoria e participação seria de suma importância para os marcos penais, implicando consequências intra-sistêmicas, não se podendo prescindir de um sistema diferenciado (Cf. JAKOBS, Günther, Derecho Penal, pp. 730-731).

[60]    Nesse sentido é o magistério de Miguel Conlledo, para quem, em primeiro lugar, este formato se aproxima mais à realidade dos fenômenos sociais participativos, ao conceito “vulgar” de autor e partícipe. Em segundo lugar, ele defende que a acessoriedade produz um recorte no âmbito da tipicidade que faz com que o sistema se ajuste melhor aos postulados do Direito Penal de um Estado de Direito, não apenas pela redução quantitativa das figuras puníveis, mas também por establecer um perfil claro dessas figuras em razão da tipicidade. Em terceiro lugar, o autor invoca razões de segurança jurídica e o caráter de ultima ratio do Direito Penal para dizer ser preferível partir de um conceito restritivo de autor e formas acessórias de participação (Cf. DÍAZ Y GARCÍA CONLLEDO, Miguel, La autoría en Derecho penal, 1991, pp. 201-203, 251 e 589, apud BOLEA BARDON, Carolina, Autoría mediata en derecho penal, p. 109, nota 7).

[61]    Por sua vez, Bolea Bardon também defende a adoção do formato diferenciado restritivo. Para esta autora, com a distinção entre formas de autoria e participação se consegue uma melhor precisão destes institutos enquanto “tipos de garantia” e, com isso, ao princípio da legalidade. Ademais, segundo Bardon, se obtém um sistema mais distintivo, o que contribui para a realização do princípio da igualdade na construção da teoria do delito. Ressalta a autora que, em um sistema restritivo, as regras sobre participação assumem uma clara função “constitutiva” porque castigam formas de intervenção não previstas diretamente nos tipos da parte especial. As condutas foram descritas nos diferentes tipos da parte espcialfazem referência ao autor, sendo que para se castigar todos os participantes é necessário que o legislador assim estabeleça expressamente. Por outro lado, afirma Bardon que partir de um modelo diferenciado também é aconselhável desde um ponto de vista da segurança jurídica. Com efeito, a tipificação das distintas formas de participação proporciona ao julgador um esquema no qual cada forma de intervenção resta previamente delimitada a nível conceitual e estrutural. Desta forma, tem-se um panorama mais adequado do que deixar nas mãos dos juizes a tarefa de delimitação, sem fornecer-lhe os critérios para orientar esta tarefa, o que acarreta, na opinião da autora, uma margem de "direito judicial" demasiado elevada. Por último, Bardon assevera que a opção de distinguir entre autoria e participação oferece a vantagem de permitir uma maior aproximação de uma série de fenômenos que aparecem na realidade social, e que, em última análise, são aqueles que a lei procura regular (Cf. BOLEA BARDON, Carolina, Autoría mediata en derecho penal, pp. 109-110).

[62]    Por isso é que o modelo conceitual unitário sofre amplo rechaço, mesmo a despeito da citada simplificação que traz à teoria da codelinquência. Como leciona Bolea Bardon, “el rechazo que experimenta este modelo es prácticamente mayoritario en todos los países donde no ha sido impuesto por vía legislativa” (BOLEA ARDON, Carolina, Autoría mediata en derecho penal, p. 76). Em igual sentido é a lição de Juarez Cirino: “(...) a natureza grosseira do critério original utilizado pela teoria unitária de autor explica (...) sua rejeição na dogmática moderna, mesmo naquelas legislações (...) que, por inércia ou comodismo, ainda a adotam” (SANTOS, Juarez Cirino dos, A moderna teoria do fato punível, p. 273). Uma das objeções ao modelo está no fato de que partindo do pressuposto segundo o qual “qualquer contribuição causal significa autoria, então todos os sujeitos envolvidos na ação típica são nivelados, desaparecendo diferenças específicas de contribuições objetivas e subjetivas para a lesão do bem jurídico” (Idem), o que torna a concepção inaceitável “desde un punto de vista de justicia material, porque no todos los que ponen una conditio sine qua non son igualmente responsables del delito” (LANDECHO VELASCO, Carlos María, MOLINA BLÁSQUEZ, Concepción, Derecho Penal español, p. 446). Ou seja: diz-se que o sistema unitário promove a unificação do tratamento de contribuições material e qualitativamente diferentes, o que ofende o princípio da igualdade e o princípio da culpabilidade. Além disso, também se pode dizer que “um tal concepto encuentra dificultades insalvables al tratar los delitos de simple actividad (...), pues está pensado para los delitos de resultado” (Idem). Nesse sentido é o magistério de Nilo Batista: “A simplicidade da questão dispensa maior desenvolvimento. A causalidade não pode ser a base referencial do concurso de agentes nos crimes de mera conduta pela simples razão intransponível de que em tais figuras não existe o modelo físico ao qual tem aplicabilidade aquele princípio” (BATISTA, Nilo. Concurso de Agentes, pp. 46-47). Por igual motivo se diz que “quanto aos crimes de perigo abstrato, nenhuma contribuição pode trazer a relação de causalidade” (Idem, p. 48). Para Beatriz Vargas, essa teoria então “significa uma porta aberta para a violação do nullum crimen sine lege” (RAMOS, Beatriz Vargas, Concurso de Pessoas, p. 114). Idêntico raciocínio se extrai da lição de Roxin: “La tipicidad no se basa solo en lesiones causales de bienes jurídicos, sino que en la mayoría de delitos se limita a determinadas clases de ataque. La igualación, que también afecta a las contribuciones más alejadas, suprime estos límites jurídicos del tipo” (ROXIN, Claus, Em: Leipziger Kommentar Strafgesetzbuch, 11ª. Ed., 1993, preâmbulo ao § 25, n. 6, p. 6, apud BOLEA BARDON, Carolina, Autoría mediata en derecho penal, p. 77). Segundo Bolea Bardon, tal situação configura uma intolerável extensão dos tipos penais (BOLEA BARDON, Carolina, Autoría mediata en derecho penal, pp. 43-44). Ocorre que há, nitidamente, um certo exagero nesta crítica. Ora, a se dar tal extensão e conteúdo à função de garantia do tipo penal, seria ilegítima então a punição de qualquer contribuição antecedente que não se adequasse exatamente à descrição legal, seja a título de autoria (como no sistema unitário) seja a título de participação (em sistemas diferenciadores). É lógico que o caminho não é este. Contudo, a mais contundente crítica é no sentido de que o modelo conceitual causal-unitário não diferencia o desvalor da ação de cada interveniente, já que, sob o estrito ponto de vista da causalidade, iguala o marco penal de todas as contribuições ao delito. Por outro lado, este modelo também dificulta sobremaneira a constituição da penalidade no âmbito das ações preparatórias que não seguem adiante (Vide JAKOBS, Günther, Derecho Penal, pp. 730-731). Ademais, em seu âmbito é impossível distinguir entre atos preparatórios e tentativa punível, já que todas as contribuições são consideradas, de maneira equivalente, como típicas. Ainda se afirma, contra o conceito causal-unitário, que ele chega a considerar autores, nos crimes especiais, pessoas que não reúnem as qualificações exigidas pelo tipo, e nos crimes de própria mão, quem não realiza concretamente a conduta de própria mão, simplesmente pela causalidade da cooperação desses intervenientes (Cf. BOLEA BARDON, Carolina, Autoría mediata en derecho penal, pp. 76-77). De modo que, afinal, “a simplificação obtida pelo sistema unitário tem um preço que um direito penal respeitador de princípios indisponíveis não estaria disposto a pagar” (GRECO, Luís, LEITE, Alaor, A distinção entre autor e partícipe como problema do legislador. Autoria e participação no projeto de Código Penal (PLS 236/2012), p. 178).

[63]    Cf. ROXIN, Claus, Sobre la autoría y participación en el Derecho Penal, p. 59.

[64]    Nesse sentido, Greco e Teixeira fundamentam a necessidade da adoção de um conceito restritivo de autor na defesa da tipicidade: “Em última análise, ainda mais importante do que a exegese dos diversos dispositivos do CP, são as razões materiais para uma diferenciação entre autor e partícipe (...): o principal argumento está na ideia de legalidade, de que os tipos não podem dissolver-se” (GRECO, Luís, TEIXEIRA, Adriano, Autoria como realização do tipo: uma introdução à idéia de domínio do fato como o fundamento central da autoria no Direito Penal brasileiro, p. 79). Contudo, entendemos que essa posição é um tanto míope, pois em qualquer dos dois modelos a punição do partícipe (em sentido estrito) sempre estará, de certo modo, dissociada da descrição típica.

[65]    Cf. BOLEA BARDON, Carolina, Autoría mediata en derecho penal, p. 139. Ainda no ponto, em outra passagem de sua obra, a autora leciona que o conceito unitário de autor não facilita a tarefa de delimitar a atribuição de responsabilidades entre os participantes em um ato punível, a única coisa que faz é transferir o problema da delimitação para o escopo da determinação da pena (teoria das consequências legais). Enquanto o modelo diferenciado, além de resolver a questão na sede da teoria do crime (no sentido estrito), apresenta-se como o mais axiologicamente ajustado, principalmente, se levarmos em conta os princípios que informam o ordenamento jurídico, dentre os quais o princípio da responsabilidade individual deve ser destacado (BOLEA BARDON, Carolina, Autoría mediata en derecho penal, pp. 110-111).

[66]    No ponto, vale ressaltar que “a quase totalidade da doutrina brasileira de forma irrestrita, e pequena fração com ligeiras reservas, faz a teoria do concurso de pessoas repousar sobre a contribuição causal para o delito” (BATISTA, Nilo, Concurso de Agentes, p. 39).

[67]    Registre-se, aqui, a advertência que faz Nilo Batista: “O estudo do concurso de agentes não pode ser desenvolvido, portanto, sem que se tenha permanentemente a atenção posta na ressonância derivada de sua colocação sistemática” (BATISTA, Nilo, Concurso de Agentes, p. 30).

[68]    No ponto, veja-se a seguinte lição de Greco e Leite: “Assim, por um momento, devemos esquecer as normas da parte geral (...) e voltar-nos aos requisitos de tipicidade dos delitos da parte especial. Defender um conceito restritivo de autor nada mais é que interpretar os tipos em espécie de forma restritiva. Não se trata, portanto, de somente determinar o alcance do art. 29, mas antes o alcance, por exemplo, do art. 121, do art. 129, do art. 155, de cada tipo da parte especial como um todo. (...) A partir dessa perspectiva, o art. 121 descreve apenas a conduta daquele que executou o crime de mão própria (autoria direta); por meio de outrem, o chamado instrumento (autoria mediata); ou em conjunto, contribuindo de forma relevante para um plano delitivo comum (coautoria). Para punir aquele que apenas auxilia ou determina (instiga) a ação do autor, é preciso recorrer ao art. 29, que seria, assim, uma norma de extensão da punibilidade” (GRECO, Luís, TEIXEIRA, Adriano, Autoria como realização do tipo: uma introdução à idéia de domínio do fato como o fundamento central da autoria no Direito Penal brasileiro, p. 79.

[69]    Nesse sentido, veja-se a lição de Greco e Teixeira: “A distinção entre autoria e participação é um problema de tipo; ela não pode ser vista, portanto, como um conjunto de regras de aplicação da pena” (GRECO, Luís, TEIXEIRA, Adriano, Autoria como realização do tipo: uma introdução à idéia de domínio do fato como o fundamento central da autoria no Direito Penal brasileiro, p. 72).

[70]    Como lecionam Greco e Leite: “Não faz mal repetir que não é o merecimento de uma maior e menor pena que determina se o sujeito é autor ou partícipe. Relegar a aplicação dos conceitos de autor e partícipe ao momento de medição da pena faz com que essa distinção perca seus contornos, fique em boa parte entregue à discricionariedade do juiz; significa dissolver uma distinção que, em última análise, diz respeito aos limites entre uma conduta que realiza o tipo e outra que não o faz sem uma norma de extensão, nos controvertidos e heterogêneos critérios de aplicação da pena concreta” (GRECO, Luís, TEIXEIRA, Adriano, Autoria como realização do tipo: uma introdução à idéia de domínio do fato como o fundamento central da autoria no Direito Penal brasileiro, p. 72).

[71]    Note-se, no ponto, que Nilo Batista já advertiu sobre a necessidade de que essa distinção seja feita nas sentenças penais condenatórias, senão vejamos: “Supomos que um desenvolvimento da matéria entre nós deveria conduzir à obrigatoriedade de ser fixada nas sentenças condenatórias que se refiram a crimes praticados em concurso de agentes o título da responsabilidade: autoria direta, coautoria, autoria mediata, instigação ou cumplicidade” (BATISTA, Nilo, Concurso de Agentes, p. 189). A nosso ver, contudo, essa exigência deve se dar num momento bem anterior, qual seja na própria peça acusatória, e logicamente deve também atingir um eventual decreto condenatório.