A Lei de Planejamento Familiar do Brasil e a Perspectiva da Dignidade Feminina
DOI: 10.19135/revista.consinter.00010.13
Recebido/Received 28.02.2019 – Aprovado/Approved 16.05.2019
Saul Tourinho Leal[1] – https://orcid.org/0000-0002-8816-4514
E-mail: stourinho@ayresbritto.com.br
Nara Pinheiro Reis Ayres de Britto[2] – https://orcid.org/0000-0002-0106-1062
E-mail: nara@ayresbritto.com.br
Resumo: A Constituição brasileira traz o § 7º do art. 226 que diz: “Fundado nos princípios da dignidade da pessoa humana e da paternidade responsável, o planejamento familiar é livre decisão do casal, competindo ao Estado propiciar recursos educacionais e científicos para o exercício desse direito, vedada qualquer forma coercitiva por parte de instituições oficiais ou privadas”. Regulamentando o dispositivo acima, foi promulgada, em 1996, a Lei Nacional n. 9.263, que, no inc. I do seu art. 10, permite a esterilização voluntária apenas nas seguintes situações: “I – em homens e mulheres com capacidade civil plena e maiores de 25 anos de idade ou, pelo menos, com dois filhos vivos, desde que observado o prazo mínimo de 60 dias entre a manifestação da vontade e o ato cirúrgico, período no qual será propiciado à pessoa interessada acesso a serviço de regulação da fecundidade, incluindo aconselhamento por equipe multidisciplinar, visando desencorajar a esterilização precoce”. O § 5º do mesmo dispositivo diz: “Na vigência de sociedade conjugal, a esterilização depende do consentimento expresso de ambos os cônjuges”.
Palavras-chave: Lei de Planejamento Familiar. Direito Constitucional. Dignidade Feminina.
Abstract: The article 226, paragraph 7º of Brazilian Constitution says: “Based on the principles of human dignity and responsible parenthood, family planning is a free choice of the couple, it being within the competence of the State to provide educational and scientific resources for the exercise of this right, any coercion by official or private agencies being forbidden.” Regulating the device above, the National Law n. 9.263, promulgated in 1996, allows, according to article 10 subsection I, voluntary sterilization only in the following situations: “I – in men and women with full civil capacity and older than 25 years or, at least, with two living children, provided a minimum period of 60 days between the manifestation of intent and the surgical act, during which time it will be provided to the concerned person access to fertility regulation services, including multidisciplinary team counseling, in order to discourage early sterilization”. The 5º paragraph of the same device says: “In a common-law marriage, sterilization depends on express consent of both spouses”.
Keywords: Family Planning Act. Constitutional Law. Women Dignity.
Sumário: Introdução. 1. O caso sob análise na suprema corte brasileira. 2. A construção, pelo stf, do conceito constitucional de “planejamento familiar”. 3. A inconstitucionalidade da idade de 25 anos como critério definidor do gozo da autonomia da vontade individual para fins de esterilização. 4. Inconstitucionalidade da exigência de que o reconhecimento da individualidade se condicione à vontade de terceiros, mesmo que do cônjuge, e a dimensão feminina da dignidade da pessoa humana. 5. Uma hermenêutica que confira ganhos de funcionalidade sistêmica à constituição. 6. A violação a direitos fundamentais decorrente da construção pela via legal de obstáculos estatais que impedem pessoas livres e autônomas de conduzirem os seus próprios projetos de vida: a falta de proporcionalidade. Conclusão. Referências.
INTRODUÇÃO
O presente artigo científico tem por objeto a Lei do Planejamento Familiar, Lei 9.263/1996, bem como as suas consequências constitucionais e jurisprudenciais a serem construídas pelo Supremo Tribunal Federal em matéria de direitos e impactos que recaem majoritariamente sobre as mulheres brasileiras, haja vista que a lei estabelece uma idade mínima de 25 anos de idade para a esterilização voluntária, ou, alternativamente, a existência de dois filhos vivos. A lei prevê, ainda, a outorga do cônjuge para realização da esterilização.
As Ações de Diretas de Inconstitucionalidade n. 5.097/DF e 5.911/DF, movidas perante o Supremo Tribunal Federal, demonstram que as mulheres de baixa renda familiar e baixo grau de escolaridade têm sofrido com essas condicionantes legislativas, pois elas têm se submetido a sucessivas gravidezes devido a uma restrição legal que as priva de exercer o direito de usufruir plenamente a sua autonomia da vontade, de modo a terem a sua dignidade da pessoa humana violada. A relevância temática do presente trabalho é, portanto, teórica e social.
A metodologia do presente artigo científico é de revisão bibliográfica, em obras literárias, publicações físicas e virtuais e de estudo de caso a ser apreciado pelo Supremo Tribunal Federal a partir de uma análise normativa constitucional do julgamento da Lei de Biossegurança cujo fundamento se deu a partir da autonomia individual. Em decorrência do estudo sobre a liberdade feminina, o marco teórico desenvolvido é do autor Stuart Mill em sua obra A sujeição das mulheres.
A hipótese que se levanta no presente estudo é se a Lei Nacional n. 9.263/1996, ao ser implementada poderia, na prática, violar, à luz da Constituição Federal, a eficácia dos direitos fundamentais nela previstos, principalmente para as mulheres pobres e de baixa escolaridade.
Assim, este artigo tem por objetivo analisar, à luz da Constituição brasileira, a constitucionalidade da Lei do Planejamento Familiar, além de situar a questão da esterilização voluntária de adultos na teoria constitucional contemporânea, abrindo, nessa análise, uma perspectiva que se entende útil ao adensamento das discussões contemporâneas acerca da dignidade da pessoa humana, que é uma dimensão essencialmente feminina da dignidade, com nuances próprias que merecem investigação, compreensão, análise e submissão ao escrutínio acadêmico.
Tem-se como resultado parcial que os dispositivos da referida legislação familiar, impugnados perante o Supremo Tribunal Federal nas Ações de Diretas de Inconstitucionalidade 5.097/DF e 5.911/DF, resultam em uma violação à dignidade da pessoa humana da mulher, bem como comprometem os avanços normativos em termos de proteção à autonomia da vontade individual e liberdade sexual feminina.
1 O CASO SOB ANÁLISE NA SUPREMA CORTE BRASILEIRA
O Supremo Tribunal Federal – STF brasileiro se debruçará, por meio da Ação Direta de Inconstitucionalidade – ADI 5.911[3], de relatoria do Ministro Celso de Mello, sobre o inc. I e o § 5º do art. 10, da Lei 9.263/1996[4] (Lei de Planejamento Familiar), que, como já exposto, estabelecem o seguinte:
Art. 10. Somente é permitida a esterilização voluntária nas seguintes situações:
I – em homens e mulheres com capacidade civil plena e maiores de vinte e cinco anos de idade ou, pelo menos, com dois filhos vivos, desde que observado o prazo mínimo de sessenta dias entre a manifestação da vontade e o ato cirúrgico, período no qual será propiciado à pessoa interessada acesso a serviço de regulação da fecundidade, incluindo aconselhamento por equipe multidisciplinar, visando desencorajar a esterilização precoce;
(…)
§ 5º. Na vigência de sociedade conjugal, a esterilização depende do consentimento expresso de ambos os cônjuges.
O Partido Socialista Brasileiro – PSB, legitimado constitucional[5] a ajuizar esse tipo de ação direta perante a Suprema Corte, entende que as restrições impostas – idade mínima de 25 anos ou dois filhos vivos – representam uma interferência indevida do ente estatal no planejamento familiar. Ao tipificar como crime a realização da laqueadura sem o preenchimento desses requisitos (art. 15 da Lei 9.263/1996), malferida estaria a dignidade humana[6], a liberdade individual e o direito à autonomia privada[7]. Também aponta a inconstitucionalidade da exigência de consentimento do cônjuge como requisito para a esterilização. São os argumentos submetidos ao STF.
Este artigo pretende promover uma análise dogmática e teórica da Lei de Planejamento Familiar à luz de acepções contemporâneas dos direitos fundamentais.
2 A CONSTRUÇÃO, PELO STF, DO CONCEITO CONSTITUCIONAL DE “PLANEJAMENTO FAMILIAR”
A discussão que o STF travará na Ação Direta de Inconstitucionalidade 5.911, passará pela interpretação do § 7º do art. 226 da Constituição, cuja redação diz:
“Fundado nos princípios da dignidade da pessoa humana e da paternidade responsável, o planejamento familiar é livre decisão do casal, competindo ao Estado propiciar recursos educacionais e científicos para o exercício desse direito, vedada qualquer forma coercitiva por parte de instituições oficiais ou privadas”.
A Corte já definiu, em julgamento emblemático, que o planejamento familiar revela uma dimensão da dignidade da pessoa humana que traz consigo muitos consectários, a exemplo da liberdade e da autonomia da vontade.
Segundo consta do acórdão prolatado pelo Supremo por ocasião do julgamento da Ação Direta de Inconstitucionalidade n. 3.510, “a dignidade da pessoa humana também se manifesta na liberdade decisório-familiar”. Isso porque, “planejar o número de filhos, a quantidade de filhos, a possibilidade de assisti-los afetiva e materialmente, tudo isso é matéria regrada pela Constituição com este emblemático nome de ‘paternidade responsável’”. O planejamento familiar responsável é liberdade, direito fundamental do casal, visto como uma unidade formada por duas individualidades que precisam ser respeitadas. “Competindo ao Estado propiciar recursos educacionais e científicos”[8], nas palavras do então relator, ministro Carlos Ayres Britto.
Essa parte final, que exorta o Estado a propiciar recursos educacionais e científicos para concretizar a liberdade de planejamento familiar, amplia as luzes intensificadas pela Constituição, que também prevê, no inc. V do art. 23, ser competência comum da União, dos Estados, do Distrito Federal e dos Municípios “proporcionar os meios de acesso à ciência”. Ou seja, recursos educacionais e científicos, além de proporcionar os meios de acesso à ciência, para tornar o ser humano mais e mais livre, senhor e senhora de si, de sua alma e de seu corpo, tornando viva a sua autonomia, sem a qual ninguém gozará de dignidade.
O item V da ementa do acórdão traz outro raciocínio vinculante:
“A decisão por uma descendência ou filiação exprime um tipo de autonomia de vontade individual que a própria Constituição rotula como ‘direito ao planejamento familiar’, fundamentado este nos princípios igualmente constitucionais da ‘dignidade da pessoa humana’ e da ‘paternidade responsável’. A conjugação constitucional da laicidade do Estado e do primado da autonomia da vontade privada, nas palavras do Ministro Joaquim Barbosa. (…) De uma parte, para aquinhoar o casal com o direito público subjetivo à ‘liberdade’ (preâmbulo da Constituição e seu art. 5º), aqui entendida como autonomia de vontade. De outra banda, para contemplar os porvindouros componentes da unidade familiar, se por eles optar o casal, com planejadas condições de bem-estar e assistência físico-afetiva (art. 226 da CF). (…)”[9].
Inicialmente, o valor da dignidade da pessoa humana, compreendida como o reconhecimento de que o ser humano é um fim em si mesmo, dotado de valor intrínseco, que não deve ser enxergado como um meio para algo ou como rito de passagem para a consecução dos desejos estatais. Essa é a essência do pensamento kantiano imortalizado na Constituição brasileira quando coloca a dignidade da pessoa humana como um dos fundamentos da República[10].
Nessa linha, trilhando um caminho teórico, João Costa Neto recorda as lições de Karl Larenz e Manfred Wolf, para quem o ser humano deve ter, em regra, o direito de perseguir seus próprios fins e objetivos e de não ter sua ação ‘heterodeterminada’. A dignidade humana traz um conteúdo antipaternalista[11]. Isso porque, “ela implica que os seres humanos sejam, no mínimo em regra, a última instância de decisão quanto a seus propósitos, intenções e ações, o que está associado à ideia kantiana de fim em si mesmo. A par disso, a dignidade humana funda uma proibição de instrumentalização ou reificação, o que significa que se veda, por via de regra, a heterodeterminação do sujeito”, anota o autor.
Costa Neto prossegue recordando que, “ao lado da autonomia e do antipaternalismo, é possível enxergar a dignidade humana, na sua dimensão de direito de defesa, como um ‘trunfo contra a maioria’”. Garante-se ao indivíduo uma esfera de não importunação.
“A coletividade não poderá ainda que para promover o bem comum, ingerir como bem entender nessa esfera mínima previamente determinada. Quando muito, poderá efetuar intervenções submetidas a toda a dogmática restritiva dos direitos fundamentais, cujas leis limitadoras são submetidas a um regramento todo próprio”[12].
A posição do STF na Ação Direta de Inconstitucionalidade n. 3.510 deixa claro ainda o caráter laico do Estado, no sentido de não ingressar no indevassável domínio da mais íntima das intimidades. Desejos personalíssimos de engravidar ou não. Ter filhos ou não. Ter um, dois ou três filhos. Decisões que adultos hão de tomar livremente sem que o façam premidos por ameaças estatais. O Estado Democrático de Direito[13], especialmente em sociedades abertas e inclusivas, não foi erguido para ingressar nesse tipo de esfera da intimidade humana. É preciso que o Supremo, à luz da interpretação que há de fazer do inc. I e do § 5º do art. 10, da Lei 9.263/1996, reconheça que ventres femininos não são propriedades estatais cujas conduções dos destinos há de vir coercitivamente impostas pelas leis[14].
A história mostra mulheres estéreis sendo perseguidas, humilhadas e marginalizadas. Entendia-se que, por não serem dotadas de dignidade, sua missão na existência era procriar. Se estéreis, não tinham qualquer valor. Acontece que a democracia constitucional brasileira não subscreve tal compreensão da existência.
Por isso, o trecho transcrito de lavra do Ministro Carlos Ayres Britto também exalta a autonomia da vontade individual. Uma vontade que, como dito, é individual, não coletiva, nem grupal. A vontade quanto ao seu próprio corpo, algo tão íntimo, é da pessoa, não do cônjuge. A Constituição reconheceu a essencialidade da dignidade da pessoa humana. Um casal, à luz da Constituição brasileira, não é, nem jamais será, “uma só carne”. Ele forma, sim, “duas carnes”, duas pessoas com duas vontades, trazendo universos distintos e merecedores de reconhecimento, consideração e respeito.
Além da autonomia da vontade individual, há a liberdade[15]. Liberdade para ter ou não ter filhos biológicos. Para entender como melhor caminho de vida um corpo voluntário, livre e conscientemente esterilizado.
Uma mulher pode voluntariamente entender pela esterilização. É uma decisão relevante em sua vida e o Estado deve participar incrementando os elementos informativos para que a decisão seja cada vez mais livre. Falar em “desencorajar”[16] já estigmatiza. O estigma de que a mulher tem o dever de procriar. Não tem. Ela tem o dever de gozar dos seus direitos, o que inclui o direito de ser livre, de ter a autonomia da sua vontade respeitada, de ver sua dignidade reconhecida e de viver numa nação onde o Estado não fará planos com o seu próprio ventre.
Esses são os elementos que integram a ratio decidendi do julgamento do pleno do STF em tudo compatível com a aferição de constitucionalidade do art. 10, I e § 5º, da Lei 9.263/1996[17] submetida a esta Suprema Corte por meio da Ação Direta de Inconstitucionalidade 5.911.
Na citada ação direta de inconstitucionalidade n. 3.510, o Ministro Carlos Ayres Britto anotou ainda:
O que agora se tem, por conseguinte, já é o Poder Público tão proibido de se contrapor à autonomia de vontade decisória do casal quanto obrigado a se postar como aparelho de suprimento dos meios educacionais e científicos para o mais desembaraçado e eficaz desfrute daquela situação jurídica ativa ou direito público subjetivo a um planejamento familiar que se volte para a concreta assunção da mais responsável paternidade.
Para o Supremo, esse planejamento familiar:
Só pode significar a projeção de um número de filhos pari passu com as possibilidades econômico-financeiras do casal e sua disponibilidade de tempo e afeto para educá-los na senda do que a Constituição mesma sintetiza com esta enfática proclamação axiológica: ‘A educação, direito de todos e dever do Estado e da família, será promovida e incentivada com a colaboração da sociedade, visando ao pleno desenvolvimento da pessoa, seu preparo para o exercício da cidadania e sua qualificação para o trabalho’[18].
Portanto, considerando o texto que dá base para a norma do § 7º do art. 226 da Constituição, com a ratio decidendi que o pleno do Supremo adotou no julgamento da Ação Direta de Inconstitucionalidade 3.510, é inconstitucional o inc. I e do § 5º do art. 10, da Lei 9.263/1996, por promover uma leitura do referido comando constitucional que reconstrói destrutivamente o conceito de planejamento familiar, deixando de lado a liberdade, a autonomia da vontade individual[19] e a dignidade da pessoa humana[20].
3 A INCONSTITUCIONALIDADE DA IDADE DE 25 ANOS COMO CRITÉRIO DEFINIDOR DO GOZO DA AUTONOMIA DA VONTADE INDIVIDUAL PARA FINS DE ESTERILIZAÇÃO
Segundo o inc. I do art. 10 da Lei 9.623/1996:
“somente é permitida a esterilização voluntária nas seguintes situações: I – em homens e mulheres com capacidade civil plena e maiores de 25 anos de idade ou, pelo menos, com dois filhos vivos, desde que observado o prazo mínimo de sessenta dias entre a manifestação da vontade e o ato cirúrgico, período no qual será propiciado à pessoa interessada acesso a serviço de regulação da fecundidade, incluindo aconselhamento por equipe multidisciplinar, visando desencorajar a esterilização precoce”.
Coloca-se a pessoa num dilema degradante. Caso se trate de um adulto que ainda não completou 25 anos, a única forma que o Estado permite a esterilização é se a pessoa tiver dois filhos, quando o que a pessoa reclama perante o Estado é, exatamente, o direito de não procriar. É um convite à procriação compulsória. O Estado Democrático de Direito[21] não foi estabelecido para colocar o seu próprio povo diante desse tipo de dilema. Que tipo de política é essa que pede a uma pessoa adulta dois filhos para que ela possa desfrutar de algo que integra a sua autonomia da vontade?
Mesmo o prazo mínimo de 60 dias entre a manifestação da vontade pelo exercício do direito e o efetivo gozo de tal direito (o ato cirúrgico) é arbitrário. Quem reclama tal direito exerce a sua liberdade voltada para a consecução de um legítimo projeto de vida que passa pelo reconhecimento da sua autonomia individual, o que realiza o fundamento da República que é a dignidade da pessoa humana. Como se exigir um prazo de 60 dias para que esse direito público subjetivo, irrenunciável, possa ser desfrutado?
Mas o que marca essa norma é o descompasso explícito da idade para a esterilização. Por que 25 anos? Qual o racional por trás dessa escolha legislativa?
A maioridade é o requisito para tornar brasileiros natos os nascidos no estrangeiro de pai brasileiro ou de mãe brasileira, desde que sejam registrados em repartição brasileira competente ou venham a aqui residir e optem, em qualquer tempo, depois da maioridade, pela nacionalidade brasileira[22].
O alistamento eleitoral e o voto são obrigatórios para os maiores de 18 anos; facultativos para os maiores de 16 e menores de 18 anos[23]. O § 3º do art. 14 da Constituição traz como condições de elegibilidade, na forma da lei: VI – a idade mínima de: c) 21 anos para Deputado Federal, Deputado Estadual ou Distrital, Prefeito, Vice-Prefeito e juiz de paz; d) 18 anos para Vereador.
Não é diferente na legislação infraconstitucional. Segundo o Estatuto da Criança e do Adolescente – ECA[24], em seu art. 42, caput, a idade mínima para adotar é de 18 anos, independente do estado civil, semelhante ao disposto no art. 1.618, do Código Civil, que também estabeleceu a idade mínima de 18 anos para o adotante.
Logo, é preciso fazer o raciocínio inverso. Se pelo ECA o indivíduo tem uma opção formal por ser pai ou mãe a partir dos 18 anos, no mínimo ele também pode optar por ser estéril, por não ser biologicamente pai ou mãe, nessa mesma idade.
A “biologicidade” paternal não é matéria tabu para o Estado. Tabu no sentido de que este não tem o que interferir na esfera individual da pessoa maior e capaz e de ter uma idade mínima para realizar o procedimento de esterilização.
Ademais, é importante se atentar para o fato de que o ECA é de 1990, de modo que a Lei do Planejamento Familiar, de 1996, não pode vir com teor restritivo dessa evolução de direitos, pois seria uma afronta ao princípio da proibição do retrocesso estabelecer idade mínima para a pessoa maior e capaz se ver privada da decisão de não assumir uma maternidade/paternidade biológica.
Quando a Constituição dispôs sobre planejamento familiar, foi para obrigar o Estado a ficar a serviço dos planejadores, não para restringir a autonomia da sua vontade privada. O “planejar” é um direito, porque a paternidade responsável pressupõe o planejamento familiar. Então, é um direito planejar o número de seus filhos e o Estado está a serviço desse planejamento. Não pode a lei se aproveitar de um artigo para restringir esse direito. A norma só comporta reforço, não comporta restrição, diminuição de sua carga tutelar, promocional e protetiva.
Então, quando a Constituição trata sobre o planejamento familiar, é no sentido de que deve o casal, pela autonomia individual da vontade de cada cônjuge, planejar o número de seus filhos. Se o projeto de vida é ter um, dois, três ou quatro filhos, a matéria foi regrada como dever do Estado de se colocar a serviço do planejamento. Não pode uma lei estabelecer que só é possível planejar a partir dos 25 anos.
Em um caso extremo, o Estado só poderia permitir que nas instituições públicas de saúde a assistência se desse a partir de determinada idade para reforçar a proteção constitucional, não para restringir. E por quê? Porque ao Estado é proibido se imiscuir na autonomia de vontade para planejar o número dos filhos.
No entanto, se um casal faz um pedido perante as autoridades estatais relativo ao número de filhos, cabe ao Estado se colocar a serviço desse desejo legítimo. Como uma norma favorece o planejamento, não exigindo idade mínima para esterilização, se norma posterior passar a exigir, viola-se a proibição do retrocesso.
A Lei 9.263/1996, norma posterior, fere a liberdade da pessoa adulta e capaz. O plano da liberdade para se autodeterminar foi amesquinhado. Se já existe norma constitucional favorecedora do planejamento, o Estado “pagou uma dívida” humanista e não pode estornar o pagamento dela e voltar a ser devedor. Com mais razão para as mulheres, que são historicamente o ponto frágil das relações conjugais.
Nessa linha, Robert Alexy lembra que “o contraponto à competência do cidadão é a competência do Estado ou de seus órgãos”. Isso porque “as normas de direitos fundamentais entram em jogo como normas negativas de competência”. Alexy explica que “uma norma negativa de competência é uma norma que restringe uma norma positiva de competência”. A Lei é obstada por uma norma negativa de competência, in casu, a autonomia da vontade individual compreendida também como liberdade. Para Alexy, “normas negativas de competência introduzem cláusulas de exceção nas normas positivas de competência. Dessa forma, elas colocam o Estado em uma posição de não-competência, e o cidadãos em uma posição de não-sujeição”. Aos legisladores é imposta uma “não-competência” quanto a ingressar nesse espaço das liberdades e da autonomia da privada. As pessoas, maiores de 18 anos, ocupam a posição de “não-sujeição”[25].
Logo, não há qualquer parâmetro dogmático aceitável a fundamentar o requisito de 25 anos estipulado pelo inc. I do art. 10 da Lei 9.263/1996 como necessário a ser ultrapassado caso um adulto queira, livre e conscientemente, optar pela esterilização.
4 INCONSTITUCIONALIDADE DA EXIGÊNCIA DE QUE O RECONHECIMENTO DA INDIVIDUALIDADE SE CONDICIONE À VONTADE DE TERCEIROS, MESMO QUE DO CÔNJUGE, E A DIMENSÃO FEMININA DA DIGNIDADE DA PESSOA HUMANA
O § 5º do art. 10 da Lei 9.263/1996 diz: “Na vigência de sociedade conjugal, a esterilização depende do consentimento expresso de ambos os cônjuges”.
Partindo de um reconhecimento que não emana da Constituição, o dispositivo derruba a base do conceito de dignidade da pessoa humana. A pessoa deixa de ter autonomia. Passa a se conduzir segundo a vontade de uma outra pessoa, que, quanto ao corpo alheio, se coloca na posição de soberana, autorizando ou proibindo o exercício de um direito personalíssimo, algo cuja essência reside no elemento mais intrínseco da liberdade. É um comando que faz desmoronar as individualidades, o respeito à vontade do outro, o espaço necessário da diversidade e do pluralismo.
No Brasil, a “Lei Maria da Penha” estabeleceu que aquele que impede a utilização de método contraceptivo pratica violência doméstica e familiar contra a mulher[26]. Tentou-se resguardar a autonomia e a liberdade da mulher no que toca aos seus direitos reprodutivos. O dispositivo da Lei Maria da Penha, de 2006, vem para revogar §5º do art. 10 da Lei do Planejamento Familiar, de 1996. Novamente, uma violação à vedação do retrocesso às conquistas benfazejas desfrutadas pelas presentes gerações em termos de acesso à liberdade, respeito à autonomia da vontade individual e reconhecimento da dignidade humana.
O § 5º do art. 10 da Lei 9.263/1996 tem pelo menos três séculos de déficit teórico emancipador. John Stuart Mill, no século XVIII, anotou: “Todas as mulheres são, desde a mais tenra infância, criadas na crença de que o seu ideal de carácter é diametralmente oposto ao dos homens: não vontade própria e capacidade de se governarem autonomamente, mas submissão e rendição ao controlo dos outros”[27].
As lições de Mill abrem espaço teórico para a construção, agora dogmática, de uma perspectiva feminina da dignidade da pessoa humana.
O caput do art. 5º da Constituição assegura a todos, além da igualdade perante a lei, a inviolabilidade do direito à liberdade. O inc. I dispõe que “homens e mulheres são iguais em direitos e obrigações, nos termos desta Constituição.”
Essa igualdade se desdobra em outros comandos. O art. 226, § 5º, dispõe que “os direitos e deveres referentes à sociedade conjugal são exercidos igualmente pelo homem e pela mulher”. Segundo o art. 183, § 1º, “o título de domínio e a concessão de uso serão conferidos ao homem ou à mulher, ou a ambos, independentemente do estado civil”. O título de domínio e a concessão de uso serão conferidos ao homem ou à mulher, ou a ambos, independentemente do estado civil, nos termos e condições previstos em lei[28].
A igualdade entre homens e mulheres pretendida pela Constituição não é meramente formal. É material. Cuida, pois, da concretização do direito à isonomia que equilibra desigualdades intrínsecas de modo a promover uma igualdade verdadeira que muitas vezes reclama ações distintas entre homens e mulheres.
Tanto que a própria Constituição reconhece a necessidade de uma interpretação construtiva. Segundo o art. 7º, XX, são direitos dos trabalhadores urbanos e rurais, além de outros que visem à melhoria de sua condição social, “proteção do mercado de trabalho da mulher, mediante incentivos específicos, nos termos da lei”. Percebe-se que a dogmática constitucional brasileira se abre para o reconhecimento das intrínsecas distinções do universo feminino. Esse reconhecimento passa a internalizar na Constituição comandos que hão de compor a interpretação da dignidade da pessoa humana quando o caso concreto alvo da atenção do hermeneuta trouxer, como parte essencial afetada por uma violação de direitos, as mulheres.
Novas demonstrações constitucionais de respeito à necessidade de igualdade material e, portanto, de isonomia, vem do art. 40, § 1º, segundo o qual os servidores abrangidos pelo regime de previdência de que trata este artigo serão aposentados, calculados os seus proventos a partir dos valores fixados na forma dos §§ 3º e 17: III – voluntariamente, desde que cumprido tempo mínimo de 10 anos de efetivo exercício no serviço público e cinco anos no cargo efetivo em que se dará a aposentadoria, observadas as seguintes condições: a) 60 anos de idade e 35 de contribuição, se homem, e 55 anos de idade e 30 de contribuição, se mulher; b) 65 anos de idade, se homem, e 60 anos de idade, se mulher, com proventos proporcionais ao tempo de contribuição.
Não é diverso o art. 201, § 7º, segundo o qual é assegurada aposentadoria no regime geral de previdência social, nos termos da lei, obedecidas as seguintes condições: I – 35 anos de contribuição, se homem, e 30 anos de contribuição, se mulher; II – 65 anos de idade, se homem, e 60 anos de idade, se mulher, reduzido em 5 anos o limite para os trabalhadores rurais de ambos os sexos e para os que exerçam suas atividades em regime de economia familiar, nestes incluídos o produtor rural, o garimpeiro e o pescador artesanal.
São dispositivos constitucionais que apresentam um tratamento diferenciado às mulheres exatamente para concretizar o ideal de isonomia, ou seja, de igualdade material, reconhecendo desigualdades intrínsecas. É essa igualdade material que precisa servir de norte para a análise do § 5º do art. 10 da Lei 9.263/1996.
Essa discussão já encontrou aconchego no Supremo Tribunal, que anotou:
45. Imposição, além do mais, que implicaria tratar o gênero feminino por modo desumano ou degradante, em contrapasso ao direito fundamental que se lê no inc. II do art. 5º da Constituição, literis: ‘ninguém será submetido a tortura nem a tratamento desumano ou degradante’. Sem meias palavras, tal nidação compulsória corresponderia a impor às mulheres a tirania patriarcal de ter que gerar filhos para os seus maridos ou companheiros, na contramão do notável avanço cultural que se contém na máxima de que ‘o grau de civilização de um povo se mede pelo grau de liberdade da mulher’ (Charles Fourier)[29].
Portanto, segundo a Constituição, dois cônjuges serão sempre dois cônjuges, dois corpos, duas individualidades, duas dignidades diversas a serem respeitadas, duas pessoas humanas merecedoras de reconhecimento, consideração e respeito. A relação não é de propriedade. A mulher não pertence ao homem. Ela pertence a si mesma. O homem não pertence à mulher. Ele pertence a si mesmo. Em caso de casais homoafetivos, a lógica se repete. A ninguém é dado o direito de renunciar a sua própria dignidade, a sua própria autonomia. Daí a inconstitucionalidade.
5 UMA HERMENÊUTICA QUE CONFIRA GANHOS DE FUNCIONALIDADE SISTÊMICA À CONSTITUIÇÃO
Discute-se neste artigo a constitucionalidade do inc. I e do § 5º do art. 10, da Lei 9.263/1996. O § 7º do art. 226 da Constituição já seria suficiente a atestar a inconstitucionalidade dos dispositivos. Todavia, entendendo-se que a hermenêutica reclama uma leitura sistemática, conclui-se que o texto constitucional promove sinalizações adicionais à discussão da Ação Direta de Inconstitucionalidade 5.911.
O Preâmbulo da Constituição instituiu um Estado Democrático, destinado a assegurar, também, o desenvolvimento, a igualdade e a justiça como valores supremos de uma sociedade fraterna, pluralista e sem preconceitos.
Desenvolvimento que não é apenas o econômico ou o nacional, mas o pleno desenvolvimento humano. Igualdade que precisa ser material, não apenas formal. Isonomia, portanto. Justiça como elemento que tem habitado o coração dos povos desde a aurora dos tempos. Segundo Hans Kelsen, “a aspiração à justiça está tão profundamente enraizada nos corações dos homens porque, no fundo, emana da sua indestrutível aspiração à felicidade”[30].
Tudo porque o Preâmbulo nos reconhece como uma sociedade fraterna, pluralista e sem preconceitos. Daí não haver mais espaço para se caçar mulheres nas ruas ao argumento de que são bruxas inférteis. Fraternidade imortalizada pelos franceses com a sua Revolução que resultou na Declaração de Direitos do Homem e do Cidadão (1789). Mas uma sociedade que não é meramente fraterna é pluralista e sem preconceitos. Pluralista, porque reconhece a proteção e o respeito das individualidades como a nossa maior riqueza. Sem preconceitos, porque tem a mente aberta para entender o diferente, o que escapa aos padrões, aquilo que não é majoritário. Por isso, se um homem ou uma mulher, adulto, livre e conscientemente, olha para si e, diante dos desafios de uma vida que não costuma ser fácil, entende que a esterilização voluntária contribuirá para o seu projeto de vida, não pode o Estado, mesmo que por lei, operar qualquer resistência a esse projeto, seja por obstruções explícitas, seja pelas veladas.
Essa disposição constitucional de conclamação coletiva à fraternidade, à justiça e à vedação ao preconceito se repete. Três dos objetivos fundamentais da República são: I – construir uma sociedade livre, justa e solidária; (…) III – erradicar a pobreza e a marginalização e reduzir as desigualdades sociais e regionais; IV – promover o bem de todos, sem preconceitos de origem, raça, sexo, cor, idade e quaisquer outras formas de discriminação (art. 3º). A Constituição é insistente nesse propósito.
O respeito à autonomia da vontade individual não é sinal de atraso civilizatório, mas de avanço. No Século das Luzes, o Iluminista John Stuart Mill anotou:
A teoria antiga era a de que se devia deixar o mínimo possível à escolha do agente individual; que tudo o que ele tinha de fazer lhe deveria ser, tanto quanto possível, ditado por uma mente superior. Entregue a si próprio, iria certamente fazer asneira. Ora, a convicção moderna, fruto de mil anos de experiência, assenta na ideia de que as coisas em que o indivíduo é a pessoa diretamente interessada só correm bem quando são deixadas ao seu próprio critério; e que qualquer regulação por uma autoridade, salvo quando se trate de proteger os direitos de outros, será seguramente nociva[31].
Mill arrematou: “a liberdade de escolha individual é a única coisa que conduz à adopção dos melhores processos e que coloca cada operação nas mãos daqueles que estão mais habilitados a executá-la”[32]. O teórico encarna o que contemporaneamente a dogmática constitucional brasileira contemplou como liberdade, autonomia da vontade individual[33] e dignidade da pessoa humana como fundamento da República[34].
O fato é que quando a Constituição tratou sobre planejamento familiar[35], ela o fez de forma meramente expletiva. Ela poderia silenciar quanto ao planejamento familiar que ainda assim o direito ao planejamento existiria. Não houve inovação. Daí a sua redação ter apenas relançado o tema do planejamento familiar para obrigar ao Estado, no plano da assistência, mais explicitamente.
No campo da liberdade individual, o direito ao planejamento familiar já estava consagrado como liberdade de se autodeterminar familiarmente quanto ao número de filhos. É um direito associado ao da liberdade sexual. O direito de exercer sua liberdade sexual sem o risco de uma procriação indesejada. O ser humano opta por não procriar. É um direito. E a laqueadura na mulher ou a esterilização no homem significa o exercício mais garantido da liberdade sexual, sem risco da procriação.
O art. 5º, §2º da Constituição diz que os direitos e garantias nela previstos não excluem outros[36] decorrentes do regime e princípios por ela adotados. O mesmo comando dispõe que:
Todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza, garantindo-se aos brasileiros e aos estrangeiros residentes no País a inviolabilidade do direito à vida, à liberdade, à igualdade, à segurança e à propriedade, nos termos seguintes (…)[37].
São termos não exemplificativos, não taxativos.
A liberdade de escolher um parceiro e, indo além, de exercer o direito de constituir uma família, um núcleo doméstico, autônomo e independente de qualquer outro, traz para o debate o direito de intercurso de relação sexual entre os membros dessa sociedade doméstica na busca da felicidade pela via da sexualidade, e, em paralelo, também sobe à ribalta sempre o direito ao planejamento familiar.
Os dados trazidos na inicial da Ação Direta de Inconstitucionalidade 5.911 mostram que a sabotagem legal ao legítimo projeto de vida de não procriar – uma decisão inteiramente protegida pela autonomia da vontade individual – por meio do estabelecimento de obstáculos que transformam essa decisão em algo coberto pelo estigma, implica ônus maiores sobre as mulheres e o pior, sobre as mulheres que vivem a vida mergulhadas nas mais intensas privações materiais. Essa implicação, fruto direto e imediato da art. 10, I e § 5º, da Lei 9.263/1996, desmerece o objetivo de “erradicar a pobreza e a marginalização e reduzir as desigualdades sociais e regionais”.
As consequências geradas pela aplicação da Lei 9.263/1996, especialmente sobre mulheres desamparadas, também é hostil ao objetivo fundamental da República de promover o bem de todos, sem preconceitos de origem, raça, sexo, cor, idade e quaisquer outras formas de discriminação (art. 3º). Essa vedação ao preconceito se repete no inc. XLI do art. 5º, que diz: “a lei punirá qualquer discriminação atentatória dos direitos e liberdades fundamentais”.
Há, pois, mais sinalizações na Constituição brasileira no sentido da inconstitucionalidade do art. 10, I e § 5º da Lei 9.263/1996.
6 A VIOLAÇÃO A DIREITOS FUNDAMENTAIS DECORRENTE DA CONSTRUÇÃO PELA VIA LEGAL DE OBSTÁCULOS ESTATAIS QUE IMPEDEM PESSOAS LIVRES E AUTÔNOMAS DE CONDUZIREM OS SEUS PRÓPRIOS PROJETOS DE VIDA: A FALTA DE PROPORCIONALIDADE
O art. 10, I e § 5º, da Lei 9.263/1996 construiu um modelo que dificulta o exercício de um direito fundamental consubstanciado tanto pela autonomia da vontade individual como pela liberdade[38], ambos necessários ao reconhecimento da dignidade da pessoa humana. Também deturpa por inteiro o conceito de planejamento familiar, prosseguindo com uma visão sombria de mundo.
Steven Pinker, falando sobre “uma mentalidade humanista que baseia a moralidade no sofrimento e no florescimento dos indivíduos conscientes, mais do que no poder, na tradição ou na prática religiosa”, destaca que a mentalidade atual do ocidente “foi confirmada segundo o princípio da autonomia: de que as pessoas têm direitos absolutos sobre seus corpos, que não podem ser tratados como um recurso a ser negociado com as outras partes interessadas”. Ele anota: “o princípio da autonomia, lembremos, também foi uma chave na abolição da escravidão, do despotismo, da escravidão por dívida e dos castigos cruéis durante o Iluminismo”[39].
Todavia, o art. 10, I e § 5º, da Lei 9.263/1996 estabelece obstáculos que sabotam o desejo livre de um adulto consciente de optar voluntariamente pela sua esterilização numa decisão que integra o seu legítimo projeto de vida[40] joga abaixo qualquer propósito de uma sociedade livre, justa e solidária. Isso inegavelmente se agrava quando a decisão vem de uma mulher. O fardo pesado de uma política que enxergue a mulher como um meio para se alcançar um fim macula a Constituição.
O estabelecimento de dificuldades infundadas e invasivas para a tomada de uma decisão que deveria ser livre é uma forma de degradar a autonomia da vontade individual, degradar a pulsão legítima pela liberdade e, especialmente, degradar o reconhecimento da dignidade da pessoa humana que não é do casal, nem de quem já tenha dois filhos, muito menos apenas de quem tenha mais de 25 anos. É da pessoa humana, compreendida, nesse particular, como um adulto consciente de suas próprias necessidades e intenções para a consecução do seu particular e indevassável projeto de vida. A mulher não pode ser estigmatizada por não poder procriar, muito menos por desejar não procriar. Não podem, as forças do Estado, mesmo que por lei em vigor, enxergar o ventre como meio para se atingir um fim distante da autonomia da vontade individual, um fim que não é da pessoa, mas estatal. Segundo o inc. III do art. 5º da Constituição, “ninguém será submetido a tortura nem a tratamento desumano ou degradante”. Tornar, pelas obstruções legais que promove, compulsória a procriação é uma forma de degradar o outro, uma degradação que alcança aquelas mulheres que vivem uma vida marcada pelas cicatrizes da privação material.
A Constituição prevê, no inc. II do art. 5º que “ninguém será obrigado a fazer ou deixar de fazer alguma coisa senão em virtude de lei”. Acontece que o art. 10, I e § 5º da Lei 9.263/1996 promove uma intervenção estatal desproporcional na autonomia da vontade individual, na liberdade e na dignidade da pessoa humana. Não se sabe as razões de necessidade e adequação à submissão da autonomia da vontade individual à regra dos 25 anos de idade ou dois filhos, ou, ainda, da autorização de outra pessoa que não a proprietária do seu próprio corpo, ainda que estejamos falando de um cônjuge ou companheiro. Aliás, nem mesmo se sabe quais são as finalidades teoricamente buscadas com a medida.
A limitação da liberdade das pessoas pressupõe um exercício analítico minudente, pautado por juízos de adequação das medidas em relação às finalidades públicas pretendidas, bem como de proporcionalidade em relação à intensidade das prescrições. Sempre com o fito de que os benefícios ao menos equivalham aos prejuízos impostos à liberdade individual. Considerado o direito fundamental a não procriar – por não poder haver procriações compulsórias – , nenhuma razão pública foi oferecida à sociedade com o intuito de demonstrar a insuficiência da liberdade. O que estrangula a dignidade da pessoa humana compreendida como respeito à autonomia da vontade individual e da liberdade desejada por todos.
CONCLUSÃO
O inc. I e o § 5º do art. 10, da Lei 9.263/1996 são inconstitucionais. Violam não apenas o § 7º do art. 226 da Constituição brasileira, mas reconstroem destrutivamente um conjunto exitoso de avanços normativos promovidos em proveito da dignidade da pessoa humana compreendida especialmente como autonomia da vontade individual e, no caso, como liberdade sexual. Também vem à tona uma dimensão feminina da dignidade da pessoa humana reconhecida por uma hermenêutica sistêmica empregada na análise dos dispositivos constitucionais brasileiros.
Partindo de um reconhecimento que não emana da Constituição, os dispositivos derrubam a base do conceito de dignidade da pessoa humana. A pessoa deixa de ter autonomia. Passa a se conduzir segundo a vontade de uma outra pessoa, que, quanto ao corpo alheio, se coloca na posição de soberana, autorizando ou proibindo o exercício de um direito personalíssimo, algo cuja essência reside no elemento mais intrínseco da liberdade. Desmoronam-se as individualidades, o respeito à vontade do outro, o espaço necessário da diversidade e do pluralismo.
Por isso, o presente artigo conclui que a Lei 9.263/1996 introduz grave retrocesso em termos de critério para gozo da liberdade, da autonomia da vontade individual e da própria realização da dignidade da pessoa humana.
REFERÊNCIAS
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Notas de Rodapé
[1] Doutor em Direito Constitucional pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo.
[2] Mestranda em Ciências Jurídicas pela Universidade Autónoma de Lisboa.
[3] BRASIL. Supremo Tribunal Federal. Ação Direta de Inconstitucionalidade n. 5.911. Rel. Min. Celso de Mello. 2018. Disponível em: <http://portal.stf.jus.br/processos/detalhe.asp?incidente=5368307>. Acesso em: 22 fev. 2019.
[4] BRASIL. Lei 9.263, de 12.01.1996. Disponível em: <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/LEIS/L9263.htm>. Acesso em: 22 fev. 2019.
[5] Constituição, art. 103. Podem propor a ação direta de inconstitucionalidade e a ação declaratória de constitucionalidade, VIII – partido político com representação no Congresso Nacional.
[6] Art. 1º, III, da Constituição Federal
[7] Art. 5º, caput, da Constituição Federal.
[8] BRASIL. Supremo Tribunal Federal, Ação Direta de Inconstitucionalidade n. 3.510. Rel. Min. Ayres Britto. Pleno, 2010. Acórdão, p. 185. Disponível em: <http://portal.stf.jus.br/processos/detalhe.asp?incidente=2299631>. Acesso em: 22 fev. 2019.
[9] Ação Direta de Inconstitucionalidade n. 3.510. Rel. Min. Ayres Britto. Pleno, 2010. Acórdão, p. 189. “(…) em matéria de saúde, em matéria de ciência, em matéria de dignidade da pessoa humana e liberdade do casal para procriar a seu modo e tempo, a nossa Constituição homenageou dois luminares do pensamento ocidental. O primeiro foi Goethe, que morreu dizendo, ‘luz, mais luz ainda’; e o segundo foi Victor Hugo, dizendo o seguinte: ‘nada é tão irresistível quanto a força de uma ideia cujo tempo chegou’”, anotou o Relator.
[10] Art. 1º, III, da Constituição Federal.
[11] NETO, João Costa, Dignidade humana, Visão do Tribunal Constitucional Federal Alemão, do STF e do Tribunal Europeu, São Paulo, Saraiva, 2014, p. 35.
[12] Ibidem, p. 36.
[13] Art. 1º, caput, da Constituição Federal.
[14] O procedimento de esterilização no Brasil, que possui expressa autorização legal, é regulamentado pela Portaria 48/1999 do Ministério da Saúde, podendo ser realizado na rede pública com cobertura pelo Sistema Único de Saúde – SUS.
[15] Art. 5º, caput, da Constituição Federal.
[16] Parte final do inc. I, do art. 10, da Lei 9.263/1996.
[17] Consta do acórdão da ADI n. 3.510: “dispor sobre o tamanho de sua família e possibilidade de sustentá-la materialmente, tanto quanto de assisti-la física e amorosamente, é modalidade de decisão a ser tomada pelo casal. Mas decisão tão voluntária quanto responsavelmente tomada, tendo como primeiro e explícito suporte o princípio fundamental da ‘dignidade da pessoa humana’ (inc. III do art. 5º)”. Isso, “de uma parte, para aquinhoar o casal com o direito público subjetivo à ‘liberdade’ (preâmbulo da Constituição e seu art. 5º), aqui entendida como autonomia de vontade ou esfera de privacidade decisória. De outra banda, para contemplar os porvindouros componentes da unidade familiar, se por eles optar o casal, com planejadas condições de bem-estar e assistência físico-afetiva”.
[18] Ação Direta de Inconstitucionalidade n. 3.510. Rel. Min. Ayres Britto. Pleno, 2010. Acórdão, p. 53.
[19] Art. 5º, caput, da Constituição Federal.
[20] Art. 1º, III, da Constituição Federal.
[21] Art. 1º, caput, da Constituição Federal.
[22] Art. 12, I, “c”, da Constituição Federal.
[23] Art. 14, § 1º, I e II, da Constituição Federal.
[24] Lei 8.069, de 13.07.1990. Dispõe sobre o Estatuto da Criança e do Adolescente e dá outras providências.
[25] ALEXY, Robert, Teoria dos Direitos Fundamentais, Trad. Virgílio Afonso da Silva, São Paulo, Malheiros, 2008, p. 248.
[26] Art. 7º, III, da Lei 11.340/2006.
[27] MILL, John Stuart, A sujeição das mulheres, Trad. Benedita Bettencourt, Lisboa, Almedina, 2006, p. 59-60.
[28] Art. 189, parágrafo único, da Constituição Federal.
[29] Ação Direta de Inconstitucionalidade n. 3.510. Rel. Min. Ayres Britto. Pleno, 2010. Acórdão, p. 55.
[30] KELSEN, Hans, O que é justiça?, a justiça, o direito e a política no espelho da ciência, Trad. Luís Carlos Borges, São Paulo, Martins Fontes, 2001, p. 2.
[31] MILL, John Stuart, A sujeição das mulheres, Trad. Benedita Bettencourt, Lisboa, Almedina, 2006, p. 64.
[32] Ibidem, p. 87-88.
[33] Art. 5º, caput, da Constituição Federal.
[34] Art. 1º, III, da Constituição Federal.
[35] § 7º, do art. 226, da Constituição Federal.
[36] Art. 5º, § 2º, da Constituição Federal, Os direitos e garantias expressos nesta Constituição não excluem outros decorrentes do regime e dos princípios por ela adotados, ou dos tratados internacionais em que a República Federativa do Brasil seja parte.
[37] Art. 5º da Constituição Federal.
[38] Art. 5º, caput, da Constituição Federal.
[39] PINKER, Steven, Os anjos bons da nossa natureza, Por que a violência diminuiu, Trad. Bernardo Joffily e Laura Teixeira Motta, São Paulo, Companhia das Letras, 2013, p. 542.
[40] “No fim da década de 1990, a Corte Interamericana de Direitos Humanos proferiu duas sentenças nas quais consignou a existência de um direito de todo ser humano a criar e a desenvolver um projeto de vida. Tendo como ponto de partida a autonomia pessoal, entendeu a Corte que, quando um Estado priva gravemente o indivíduo da liberdade de traçar as metas pessoais que pretende alcançar, impedindo-o de desenvolver plenamente a sua personalidade e destruindo suas oportunidades de perseguir os seus objetivos de vida, tal situação suscita ‘danos ao projeto de vida’, ensejadores do dever de reparação. Os mais célebres são os casos Loayza Tamayo versus Peru e o caso Villagran Morales versus Guatemala. Neles, a Corte Interamericana entendeu que aos Estados é proibido praticar condutas tendentes a obstaculizar as liberdades de cada indivíduo de estabelecer um projeto de vida e buscar sua plena realização existencial”, anotaram Daniel Wunder Hachem e Alan Bonat em O Direito ao Desenvolvimento de um Projeto de Vida na Jurisprudência da Corte Interamericana de Direitos Humanos e a Educação como Elemento Indispensável. Disponível em: <file:///C:/Users/usuario/Downloads/1787-6381-1-PB.pdf>. Acesso em: 12 maio 2018.