O Direito ao Esquecimento Sob a Perspectiva da Saúde Individual

DOI: 10.19135/revista.consinter.00006.04

Júlia Gomes Pereira Maurmo[1] – ORCID: https://orcid.org/0000-0003-1051-3304

Resumo: Este trabalho tem por objetivo apontar um novo e imprescindível olhar quando se trata do Direito ao Esquecimento: a perspectiva da saúde individual. Isto porque, a utilização dos mecanismos de ponderação com vistas à solução de um suposto conflito entre liberdade de expressão e direitos da personalidade não é suficiente para alcançar decisões justas. Assim, optou-se, através da revisão bibliográfica e do estudo de casos, por uma pesquisa interdisciplinar, cujo marco teórico é o neurocientista Iván Izquierdo, posto que os trabalhos por ele desenvolvidos acerca da memória, mais especificamente, de suas formas de extinção e repressão, demonstram que a impossibilidade de transcender ao trauma leva, para além de quadros depressivos, à relações sociais deficitárias e estas, por sua vez, influenciam diretamente em um considerável aumento da incidência de doenças coronarianas e de acidentes vasculares cerebrais, maculando a saúde individual e, consequentemente, a vida digna do cidadão. Com vistas a demonstrar a teoria proposta, qual seja, a imprescindibilidade da análise do Direito ao Esquecimento sob a perspectiva da saúde individual, foi analisado o caso “Aída Curi”, já julgado pelo Superior Tribunal de Justiça brasileiro, de maneira incompleta, posto que analisou, apenas, o conflito entre a liberdade de expressão e os direitos da personalidade, e que hoje se encontra sob a apreciação da Suprema Corte.

Palavras-chave: Direito ao esquecimento; Saúde; Memória; Liberdade de expressão; Privacidade.

Abstract: TThis study aims to point out a new and indispensable look concerning the Right to be Forgotten: the perspective of individual health. The usage of weighting mechanisms in order to resolve a potential conflict between freedom of expression and the rights of personality is not sufficient to achieve fair decisions. Thus, through a bibliographical review and case study, an interdisciplinary research was chosen, whose theoretical framework is the neuroscientist Ivan Izquierdo, since the studies he has developed about memory, and more specifically about its extinction and repression, demonstrate that the impossibility of transcending trauma leads, in addition to depressive disorders, to poor social relationships and these, in turn, directly influence a considerable increase in the incidence of coronary diseases and strokes, which damages individual health and, consequently, the dignified life of the citizen. In order to demonstrate the proposed theory, namely, the indispensability of the analysis of the Right to be Forgotten from the perspective of individual health, the “Aída Curi” case, already judged by the Brazilian Superior Court of Justice, has been analyzed in an incomplete way, since the judgment only scrutinized the conflict between freedom of expression and the rights of the personality, which is now under the jurisdiction of the Supreme Court.

Keywords: Right to be forgotten; Health; Memory; Freedom of expression; Privacy.

INTRODUÇÃO

A busca por compreender as questões envolvendo a privacidade, os seus conceitos, as suas espécies e as suas distinções em face de outros institutos tais como a honra e a imagem, bem como a tutela conferida a este direito pelo ordenamento jurídico pátrio, suscitou, dentre outros, um questionamento: em que medida a privacidade, no âmbito da sociedade de informação, é tutelada de maneira eficaz e satisfatória por meio do instituto da responsabilidade civil?

Seria suficiente indenizar se não se pudesse transcender àquilo que gera dano, sobretudo, sem poder se desvencilhar daquilo que afronta à personalidade, seja no aspecto dos direitos da personalidade e, de forma muito mais gravosa, da saúde?

A (re)descoberta de memórias já extintas, falsificadas ou reprimidas, causadoras de lesões à saúde física e mental do indivíduo, ensejaria a responsabilização por danos morais e materiais ou, como se afirmou outrora “o tempo apaga a dor”?

Neste contexto surge a questão do Direito ao Esquecimento e, antes de mais nada, é preciso compreender que esquecer não significa apagar. Esquecer é tão somente utilizar mecanismos naturais à dinâmica cerebral para ser possível seguir adiante. Esquecer algo não faz cessar a existência desse algo. Poder esquecer não significa fazer desaparecer, mas poder deixar à margem da consciência e, por conseguinte, da vida cotidiana, aquilo que gera efetivo prejuízo à saúde individual e à vida digna.

O Direito ao Esquecimento nada mais é do que uma forma de garantir a saúde, seja pela transcendência do trauma, seja por impedir que o isolamento oriundo da vergonha, ou mesmo da superexposição na sociedade de informação, leve a relações sociais deficitárias – que, comprovadamente, aumentam a incidência de inúmeras outras comorbidades, tais como os acidentes vasculares cerebrais e as cardiopatias[2].

Desta feita, com o intuito de demonstrar que a apreciação do ponto de vista da saúde é imprescindível para se alcançar decisões justas, será analisada a decisão que o Superior Tribunal de Justiça proferiu no julgamento do Recurso Especial 1.335.153, demonstrando que a ponderação entre a liberdade de expressão e a privacidade é insuficiente para se alcançar este fim.

1 A FUNDAMENTALIDADE DO DIREITO AO ESQUECIMENTO E A CLÁSSICA DISCUSSÃO ENTRE LIBERDADE DE EXPRESSÃO E PRIVACIDADE

O direito ao esquecimento não busca reescrever nenhuma história que não a própria, não entrando em conflito nem com o Direito Fundamental à Memória, nem com a Liberdade de Expressão. É possível, tendo por base a dignidade humana, que todos estes direitos se realizem na máxima medida possível, pelo estabelecimento de circunscrições temporais bem definidas.

A natureza fundamental do Direito ao Esquecimento parte da premissa de que se enquadram nessa categoria aqueles direitos instituídos com a finalidade de proteger a Dignidade Humana, que busca resguardar o homem em sua liberdade, necessidade e em sua preservação.

Neste contexto, o Direito ao Esquecimento é indiscutivelmente fundamental, posto que, na sociedade de informação, torna-se praticamente inviável resguardar a privacidade sem se garantir o esquecimento. Ademais, não é possível desenvolver-se livremente quando se está marcado a ferro (ainda que virtualmente), preso aos grilhões do passado de forma perpétua, cruel, desumana e degradante. Por fim, esquecer, como se verá, é imprescindível à saúde humana, tanto física, quanto psíquica.

Assim, a clássica discussão liberdade de expressão vs. privacidade, pode e deve ser acrescida de um viés relacionado à saúde individual, até porque não pode haver uma sociedade saudável com pessoas doentes, pois não há corpo saudável com órgãos falindo.

O Direito ao Esquecimento não pretende censurar a informação por meio do reconhecimento da prevalência do direito de personalidade; antes pelo contrário, busca-se a máxima realização de todos, concomitantemente. A informação – direito fundamental e pilar da democracia – deverá ser realizada na máxima medida possível, tendo, ao tempo do fato, sua veracidade subjetiva respeitada, de modo a contemplar o interesse público, cuidando apenas de se preservarem os direitos fundamentais do retratado (como exposição vexatória desnecessária, por exemplo), através de um exercício ético e responsável da liberdade de informação.

O Direito ao Esquecimento insurge-se somente contra a eternização da informação e de sua acessibilidade pelos mais variados mecanismos de busca, posto que as lesões oriundas de tal perpetuação leva a lesões, quase sempre irreparáveis, à saúde, à personalidade humana e, consequentemente, à vida digna.

Se as penas provenientes de uma condenação penal não podem ser perpétuas, cruéis, desumanas e degradantes, a exploração de determinadas informações atinentes à privacidade necessita de limites, justamente para se evitar que a perpetuação de uma situação que, embora à margem do direito, viola a privacidade das pessoas, impondo-lhes uma verdadeira pena perpétua. Assim, há que se estabelecer uma vida útil para a informação, para que a sua imortalização não se transforme, justamente, em uma pena – perpétua, cruel, desumana e degradante – e, portanto, violadora da dignidade da pessoa humana.

Não se trata de “não sofrer consequências negativas de fatos recuados no tempo[3], apenas de limitar, externamente, as implicações dos fatos ocorridos e dos atos cometidos às suas decorrências legais, porque, internamente, cabe a cada um mensurar a dor e o peso que irá carregar.

A alegada dificuldade do reconhecimento de um direito subjetivo ao esquecimento, que poderia ser utilizada como pretexto para as pessoas “indevidamente requererem indenização por danos materiais e morais, bastando afirmar que as obras nas quais foram retratadas lhes causaram lembranças penosas, para requerer indenização, por vezes de maneira caprichosa, cobiçosa e injustificada[4], não deve prosperar tendo em vista que, embora exista a má-fé “caprichosa, cobiçosa e injustificada”, não pode ela ser presumida – como, aliás, é corolário milenar do Direito: bona fides semper praesumitur nisi mala adesse probetur. Assim, verificada a lesão à personalidade ou mesmo à saúde individual, poderá haver o dever de indenizar.

Isto posto, em apertada síntese, na seara da discussão entre liberdade de expressão vs. privacidade, podemos colacionar três situações, apontando as respectivas soluções, não há, necessariamente, uma colisão, mas tão somente a realização máxima de direitos igualmente fundamentais, em tempos distintos:

i. Ao tempo do fato, deve prevalecer a liberdade de informação, em respeito ao interesse público e mesmo à publicidade do processo, não havendo possibilidade de indenização por danos morais, salvo em virtude de eventuais excessos cometidos, que configurem, pois, atos ilícitos;

ii. Estabelecido um prazo razoável que denotaria a “vida útil” de uma determinada informação – e que, nos casos que envolvem consequências penais, coincidiria com o lapso temporal da reincidência –, deve prevalecer a tutela da privacidade para que seja possível a transcendência do trauma, a ressocialização e a reconstrução da própria vida digna e saudável, na medida em que o direito à informação foi exercido;

iii. A seu turno, situações que envolvem a vida privada de pessoas, voluntária ou involuntariamente públicas, o decurso do tempo não poderia impedir a retratação dos fatos, conforme decidiu o Supremo Tribunal Federal ao julgar procedente a Ação Direta de Inconstitucionalidade (ADI) 4815 e declarar inexigibilidade da autorização prévia para a publicação de biografias, sendo possível, apenas, a reparação civil “a posteriori”.

A análise pormenorizada dos institutos da Liberdade de Expressão, da Privacidade e do Direito Fundamental à Memória, bem com a análise dos pareceres do Dr. Daniel Sarmento e do excelentíssimo Procurador-Geral da República, Rodrigo Janot, encontra-se em tese de Doutorado[5], defendida em fevereiro de 2017 junto à Pontifícia Universidade Católica de São Paulo.

2 O DIREITO AO ESQUECIMENTO COMO DIREITO À SAÚDE E AS QUESTÕES RELATIVAS ÀS FORMAS DE EXTINÇÃO E REPRESSÃO DE MEMÓRIAS

Passadas estas considerações preliminares, o que se propõe é acrescentar (e não suplantar) à discussão clássica sobre o direito ao esquecimento, uma outra e imprescindível visão: a saúde individual.

Neste ponto, em face da já mencionada primazia conferida pelo constituinte à dignidade, temos, pela primeira vez num texto constitucional brasileiro, o reconhecimento do direito fundamental (formal e materialmente) à saúde, que atribui ao Estado e à sociedade deveres para que o direito seja efetivamente desfrutado.

Saliente-se que, para além de um dever do Estado, a saúde incumbe também os particulares em geral, que deverão pautar suas condutas à não intromissão e, consequente, lesão à saúde do outro, seja fisicamente (para as quais, em grande parte das vezes, há punição na esfera penal), seja moralmente (para as quais, além de alguma sanção penal, há sanções civis no âmbito da responsabilidade civil), razões pelas quais não se deve reduzir a saúde à situação de mero direito público subjetivo[6].

Conceitualmente[7], para a Organização Mundial da Saúde (OMS), estar saudável é mais do que estar livre de doenças, uma vez que “a saúde é um estado de completo bem-estar físico, mental e social e não apenas a ausência de doença ou enfermidade”. Esta definição encontra guarida também na legislação brasileira, nos termos da Lei 8.080/1990.

Se de um lado, as doenças “visíveis” são objeto de inúmeras pesquisas realizadas por cientistas, em grandes centros de ensino e laboratórios, em busca de seus agentes etiológicos, medicamentos, tratamentos, vacinas, ou mesmo cura, de outro, algumas doenças não se exteriorizam de forma “clássica”: tratam-se das doenças da alma.

O difícil diagnóstico, o não reconhecimento pelas pessoas mais próximas ou mesmo pelo próprio paciente, a incredulidade, a pouca importância, a exposição, a impossibilidade de se manter em (res)guardo, provocam a atroz desconsideração das consequências desse tipo de enfermidade.

Destarte, as doenças que acometem a alma apesar de não deixarem marcas visíveis ou mesmo de não possuírem, muitas das vezes, sintomas classicamente aferíveis por exames laboratoriais e de imagem, podem incapacitar o indivíduo para uma vida digna, na medida em que retiram dele a possibilidade de conviver, de transcender e de se reconstruir.

Não por outra razão, a fisiologia humana coloca à disposição mecanismos que buscam reorganizar as memórias individuais, a fim de que o homem, mesmo após ser submetido a alguma situação traumática, possa reconstruir a própria vida de maneira digna.

Se o esquecimento suscita, à primeira vista, uma alusão a doenças neurodegenerativas, como Alzheimer ou demais demenciações que levam, entre outras comorbidades, à perda de memória, em outro torna-se nítido que “esquecer” é essencial ao exercício do direito individual à saúde, garantido como direito fundamental.

Na sociedade de informação, experimenta-se a imortalidade decorrente da perenidade dos dados lançados na internet, o que marca a ferro (ainda que, hoje, virtualmente) a alma de muitas pessoas que não conseguem transcender traumas e reconstruir suas vidas. Os mortos, não raro, seguem insepultos, e as pessoas não retomam uma vida digna – e útil – na sociedade.

Falar em memória é, muitas vezes, falar sobre o esquecimento, posto que, em inúmeros casos, este se encontra relacionado aos mecanismos de formação daquela. Sendo assim, quando se pretende falar sobre um Direito ao Esquecimento é preciso, aprioristicamente, compreender sua dimensão e seu alcance para a saúde humana.

Etimologicamente do latim memorĭa, entre os vários significados apontados no Dicionário Michaelis[8], destaca-se a faculdade de conservar ou readquirir ideias ou imagens, lembrança, reminiscência. Para Izquierdo[9], “memória é a aquisição, conservação e evocação de informações. A aquisição se denomina aprendizado. A evocação também se denomina recordação ou lembrança”.

O cérebro humano dispõe de cerca de 10 bilhões de neurônios que interagem de diversas formas, de modo que cada célula, cada componente bioquímico é responsável por um comportamento, uma atividade mental e, consequentemente, pelo desenvolvimento de uma memória. Desde a década de 1950, chama a atenção dos pesquisadores o quanto as emoções influenciam não só na formação da memória, mas, sobretudo, em sua recordação, já que “a lembrança às vezes pode ser disfarçada, aparentemente para proteger o sujeito da angústia do medo, vergonha ou dor[10].

De modo geral, as memórias podem ser divididas conforme sua duração e sua função em três tipos: i) memória trabalho ou operacional (persiste apenas por alguns segundos ou minutos para além do fato do qual se originou); ii) memória de curta duração (de uma a seis horas); iii) memória de longa duração (cuja permanência se estende por dias, meses e até anos).

Para além de suas especificidades, importa, neste momento, ressaltar a importância que as emoções (boas ou ruins) têm no mecanismo de formação de memória e os mecanismos que o cérebro humano tem para lidar com aquelas memórias insalubres.

Descobriu-se que memórias surgem da associação de estímulos inicialmente neutros – como o soar de uma campainha – com outros biologicamente significativos – a fome. Segundo Pavlov[11], memórias[12] “biologicamente significativas” são mais resistentes ao olvidamento.

Cada estado emocional corresponde a um aguadeiro de substâncias neuromoduladoras que aumentam ou diminuem a capacidade de resposta de diversas áreas cerebrais, inclusive as que produzem ou evocam memórias. As memórias adquiridas sob um determinado estado neuro-humoral (dopaminérgico, noradrenérgico, serotonérgico ou betaendorfínico) e hormonal paralelo são melhor evocadas quando o tônus vigente, à época de sua aquisição, repete-se: quanto maior a similaridade bioquímica, mais precisa a evocação[13]. Ou seja, se o indivíduo é submetido a circunstâncias semelhantes ou que, de alguma forma, remontam à situação já vivida, o organismo reage bioquimicamente da mesma forma, de modo que a memória construída outrora é retomada, em condições semelhantes.

Este fenômeno, denominado dependência de estado, é de extrema utilidade, posto que propicia uma reação imediata, de maneira mais ágil, “cortando caminhos” (fugir, pular, se proteger, se esconder, lutar), como nos casos da habituação/automatização de reflexos do piloto. Por outro lado, a constante exposição a essas situações (de evocação de memórias emocionalmente desgastantes) pode inviabilizar o curso de uma vida minimamente saudável e equilibrada, tanto do ponto de vista físico, quanto mental e emocional.

Como dependem de uma determinada conjuntura bioquímica, essas memórias permanecem num estado latente, o que não significa que tenham sido esquecidas, pois o estímulo adequado pode trazê-las à tona, muito rapidamente, a qualquer momento; elas apenas são colocadas fora do alcance dos mecanismos de evocação para que a vida transcorra de maneira regular, sem que o indivíduo viva num constante estado de agressividade, fora de contexto.

Nesse sentido, temos não a arte de esquecer, mas a arte de “não lembrar”, como forma de se resguardar uma vida digna e saudável.

Considerando que a memória formada em um contexto emocionalmente relevante pode inviabilizar a vida em sociedade, é preciso compreender como o cérebro humano lida com estas situações, a fim de retirar da consciência aquilo que impede a realização das pessoas como fins em si mesmas.

Etimologicamente do latim excadescere, relacionado a excadere (“cair para fora”), o vocábulo esquecimento denota que esquecer é retirar algo de nossos registros mentais. Se a produção de memórias e suas evocações estão diretamente ligadas às condições bioquímicas do indivíduo, o mesmo não ocorre com o esquecimento, posto que este, na maioria das vezes, decorre da falta de uso das conexões entre as células nervosas, ocasionando sua atrofia e a consequente perda de suas funções ou mesmo a decorrente morte de células nervosas.

Se, por um lado, o desuso leva à perda de memória, por outro, quanto mais se usa determinada sinapse, melhor a sua função, ou seja, a repetição de uma determinada combinação de estímulos culmina numa melhora daquela memória. Quanto mais repetitiva uma situação, mais indelével será.

A supressão de memórias desnecessárias ou indesejadas, por sua vez, segundo Izquierdo[14], cumpre várias funções fisiológicas e necessárias à sobrevivência. Memórias desagradáveis, por exemplo, são construídas com forte conteúdo emocional e, por conseguinte, armazenadas de maneira mais perene. Com efeito, se, por um lado, a vida seria insuportável se essas memórias estivessem sempre à flor da pele, de forma constante na consciência do indivíduo, por outro lado, seu afastamento permite a vida cotidiana, como, sob determinadas condições, trazê-las à mente pode agilizar estratégias para livrar-se de situações perigosas.

Com relação às memórias de curta e longa duração, o esquecimento consiste, basicamente, na repressão, na extinção e, em certa medida, na falsificação. Quando uma memória é sediciosa, tende também a ser duradoura, por ter sido gerada, muito provavelmente, sob o influxo de grande emoção: uma vergonha, uma dor, uma humilhação – e isso pode tornar insuportável viver.

Assim sendo, automática ou deliberadamente, o cérebro busca mecanismos para não sucumbir, e o faz por meio da repressão e da extinção, cujos “parentes próximos” são a habituação e a discriminação. Já a falsificação não seria propriamente um esquecimento, mas uma contrafação mental de alguns fatos, para que estes se tornem mais palatáveis. Izquierdo considera que “um certo grau de repressão ou negação é necessário para que possamos viver. Sem ele, muitas crianças não frequentariam mais a escola, porque se lembrariam da humilhação a que foram submetidas alguma vez por um professor desavisado ou por um colega mais forte[15].

É, pois, imprescindível esquecer, de alguma forma, aquilo que impede o pleno desenvolvimento de uma vida digna ou o que não é mais útil nem adequado às necessidades cotidianas.

No que se refere à compreensão do mecanismo da extinção de memórias, a memória se dá pela associação de um estímulo inicialmente neutro (campainha) a outro biologicamente significativo (fome). Adquirida esta memória (o toque da campainha lembra que a comida está chegando), a forma de extingui-la é sobrepor ao estímulo aprendido outro, só que agora separado do valor biologicamente significativo, ou seja, um novo aprendizado que superpõe o anterior.

Se a campainha começar a soar e nada for oferecido ao cão, haverá uma aposição da memória anterior pela atual. Ocorre que essa justaposição não tem o condão, em princípio, de apagar efetivamente o que foi anteriormente aprendido, já que a recuperação espontânea é característica da extinção, ou seja, se novamente se oferece carne ao animal, depois de soar a campainha, a memória anterior é recuperada, como se nunca houvesse sido extinta.

A extinção é um aprendizado novo que se sobrepõe ao anterior e, de certa forma, até o substitui, através de um processo ativo que envolve fenômenos biológicos ligados, principalmente, ao hipocampo e às amídalas localizados nos lóbulos temporais[16].

A extinção pode ainda ser utilizada de forma terapêutica para o tratamento de doenças psiquiátricas que tem como arcabouço principal o medo condicionado (fobias, síndrome do pânico e estresse pós-traumático, por exemplo). Segundo Izquierdo, “o paciente é exposto reiterada e cuidadosamente à experiência traumática que origina a doença, acompanhando a exposição de comentários apropriados e tendentes a desvalorizar o elemento acusador do medo (psicoterapia)”.

Atente-se a três fatores assaz importantes: a exposição cuidadosa ao agente causador do trauma; a intervenção do responsável com comentários apropriados à superação do mesmo; possível recuperação espontânea por se tratar de um aprendizado novo sobre o anterior, quando retomado o estímulo anterior[17].

Importante considerar atentamente esses aspectos, posto que o tratamento pode não se concretizar, ou mesmo ser destruído por rememorações ou vivências desacompanhadas do trauma, por exemplo, através da exposição do fato causador na rede mundial de computadores. Nesse sentido, o esquecimento tem um viés piedoso para com aqueles que precisam reconstruir a própria vida.

A extinção e suas derivações (habituação e diferenciação), portanto, são mecanismos utilizados pelo cérebro humano, com pouca ou nenhuma participação externa, para reduzir ou inibir comportamentos a fim de coexistir da melhor forma possível com o meio em que se vive.

O mecanismo de repressão de memórias, proposto por Freud, há mais de 100 anos, é mais um engenho, voluntário ou não, de que se vale o cérebro humano (mais especificamente, determinadas regiões do córtex pré-frontal e dorso-lateral[18]) para reduzir ou suprimir da consciência memórias que se preferem olvidar, acontecimentos desagradáveis que remetem a uma dor, uma humilhação ou uma vergonha.

Desse modo, fatos que não se desejam manter na consciência são suprimidos e ficam de certa forma impedidos de regressarem à evocação voluntária. Com isso, memórias indesejáveis são mantidas à distância, ainda que não sejam apagadas completamente. Por não estarem mortas, as informações reprimidas podem voltar não sob a forma de lembranças, mas, inconscientemente, através de algum mal-estar (pessoas fortemente oprimidas na infância podem ter um comportamento hostil em face de um chefe, por ter ojeriza à sujeição à autoridade de alguém).

Se assim não fosse, todavia, mães não voltariam a ter filhos por medo da dor do parto; crianças vítimas de bullying não voltariam ao clube ou à escola; mulheres vítimas de violência doméstica e familiar jamais reconstruiriam a própria vida ao lado de outro companheiro; pessoas em geral não voltariam a dirigir caso fossem vítimas de algum acidente de trânsito; egressos do sistema prisional ou torturados, não conseguiriam ressocializar-se e voltar ao convívio da sociedade. Ao contrário da extinção, não se trata de um novo aprendizado sobreposto ao anterior, mas uma forma de escamotear aquilo impede a continuação da vida saudável.

Esquecer é, pois, uma necessidade capital para o ser humano. Em primeiro lugar, porque a própria formação da memória depende da arte de esquecer. A seleção de quais informações são úteis, necessárias e significativas é imprescindível ao bom funcionamento, por exemplo, da memória-trabalho, e o seu não gerenciamento adequado leva ao colapso do sistema e a patologias, como a esquizofrenia.

Em segundo lugar, porque, para além de uma necessidade fisiológica, é um imperativo emocional e social do homem, sobretudo, por constituir um instinto de sobrevivência: é demasiadamente humana a incessante busca da reconstrução de si mesmo, da própria dignidade e da própria vida, através do livre desenvolvimento da personalidade, por meio de uma segunda chance, um recomeço, um perdão e uma conciliação consigo e com o outro.

Corrobora essa teoria um estudo[19] desenvolvido na Universidade de York, no Reino Unido, liderado por Dr. Nicole K. Valtorta: a investigação mostrou que existe uma ligação entre as relações sociais deficientes e a mortalidade prematura. Em uma nova meta-análise, sugeriu também que pode haver uma associação significativa dessas relações sociais deficientes com o aumento do risco de doença cardíaca coronária (CHD) e acidente vascular cerebral. A revisão de 23 artigos e a análise de um total de 181.006 pacientes apontaram um risco aumentado de 29% para CHD para aqueles que tinham conexões sociais pobres, em comparação com aqueles com melhores conexões.

Os pacientes solitários e isolados também tinham um risco aumentado de 32% para o acidente vascular cerebral. Os pesquisadores observaram “que a solidão muitas vezes contribui para métodos de enfrentamento com deficiência, o isolamento afeta a autoeficácia, e ambos têm sido associados com diminuição da atividade física e aumento do tabagismo”.

Se, conforme o exposto, pessoas impedidas de reconstruírem sua vida são acometidas por uma vergonha e por um isolamento que tornam suas relações sociais altamente deficitárias, aumentando o risco não só de um quadro depressivo, mas também de altos índices de acidentes vasculares cerebrais e doenças cardíacas e coronarianas, o esquecimento é imprescindível. Ou seja, o esquecimento é essencial não só à manutenção da saúde individual, mas também é útil ao Sistema Único de Saúde e ao Instituto Nacional de Seguridade Social, na medida em que pessoas enfermas precisam de tratamento e, não raro, precisam afastar-se de suas atividades laborais.

3 O DIREITO AO ESQUECIMENTO NO CASO AÍDA CURI

No Recurso Especial 1.335.153/RJ, o direito ao esquecimento é abordado sob a perspectiva da família da vítima, que, em regra, acaba sendo exposta, mormente em crimes de grande repercussão. Trata-se de uma perspectiva que envolve a sublimação da dor pela perda de um ente querido em virtude de um crime.

O caso, ocorrido em 1958, referente a Aída Jacob Curi, chocou a sociedade brasileira da época, e foi explorado em 2004, no programa “Linha Direta – Justiça”. Os irmãos da vítima, então, ingressaram com ação ordinária contra a “TV Globo”, pleiteando indenização por danos materiais e morais. Os autores alegaram que a veiculação de um documentário em rede nacional, sem o consentimento dos familiares, expondo nome, imagem e circunstâncias do fato, “reabriu antigas feridas já superadas quanto à morte de sua irmã[20]. Dessa feita, buscaram a proclamação do seu direito ao esquecimento, a fim de não reviverem a dor experimentada por ocasião da morte da irmã, reabrindo feridas emocionais que foram exploradas, economicamente, em favor da emissora.

A questão está na possibilidade de se ver reconhecido um direito ao esquecimento acerca de fatos que se tornaram históricos em virtude da grande repercussão social, por uma razão de cunho pessoal. O acórdão, todavia, limitou-se a desenvolver o tema sob a perspectiva da na ponderação de valores igualmente constitucionais “liberdade de informação” e “direitos da personalidade”, buscando decidir sobre qual deve prevalecer, no caso concreto.

Nesse sentido, decidiu o Superior Tribunal de Justiça que, para além de todas as discussões que podem aparecer sobre o sensacionalismo e a excessiva exploração midiática de alguns tipos de programas televisivos, acredita-se que, com relação aos fatos históricos, sob a perspectiva das vítimas indiretas (irmãos de A. C.), o interesse público (expressão reconhecidamente perigosa no que tange à delimitação de seu conteúdo) e a liberdade de expressão deveriam prevalecer, tendo em vista que, apesar do inegável abalo aos familiares, não haveria no caso concreto uma injusta agressão a direito da personalidade, nem mesmo abuso de direito capazes de ensejar a responsabilidade civil, conforme salientou o julgado.

Para o STJ, a dor da perda da irmã sempre existirá e tudo que remeta ao fato, trará um mero dissabor. Ocorre que a mera narração histórica do incidente, para além desse incômodo, não violou direitos e não constituiu uma injusta agressão, na medida em que não houve superexposição midiática da figura da vítima nem mesmo de seus familiares, versando o documentário sobre o fato que envolvia a pessoa e não sobre a pessoa envolvida no fato.

É imperioso perceber, entrementes, que casos assim precisam ser analisados de maneira mais ampla, transcendendo a clássica discussão acerca dos direitos de personalidade e da liberdade de expressão. Há que se buscar outro ponto de vista para se resguardar a dignidade humana, qual seja, a saúde. Embora, nitidamente, esteja posto o confronto entre a liberdade de expressão vs. direitos da personalidade e a necessidade de preservação do direito fundamental à memória, há algo a acrescentar. É de considerável subjetividade e absolutamente carente de respaldo científico o argumento de que

(…) na medida em que o tempo passa e vai se adquirindo um ‘direito ao esquecimento’, na contramão, a dor vai diminuindo, de modo que, relembrar o fato trágico da vida, a depender do tempo transcorrido, embora possa gerar desconforto, não causa o mesmo abalo de antes[21].

Isso porque, conforme visto anteriormente, apesar de ser possível, por meio de acompanhamento terapêutico, conduzir o cérebro humano ao mecanismo de extinção ou repressão de memórias, o tratamento pode não se concretizar, ou mesmo ser destruído por rememorações ou vivências desacompanhadas do trauma, o que pode comprometer severamente o direito à saúde do(s) integrante(s) da família.

Ainda que não tenha sido reconhecida a “artificiosidade ou o abuso antecedente na cobertura do crime, inserindo-se, portanto, nas exceções decorrentes da ampla publicidade a que podem se sujeitar alguns delitos” e que a censura prévia seja absolutamente repudiada pelo ordenamento jurídico brasileiro, isso não significa que não haja possibilidade de reparação civil, não como efeito de um reconhecimento ao direito ao esquecimento, mas como eventual perturbação da saúde física e emocional dos envolvidos.

A “circunstância de ser exibida a foto da vítima, morta, ensanguentada e abraçada com um dos autores[22] pode fazer ressurgirem memórias que haviam sido extintas ou mesmo reprimidas pelo cérebro humano, na medida em que, como já foi visto, ainda que estes fatos fiquem impossibilitados de emergirem à consciência pela evocação voluntária, não são completamente apagados, podendo voltar através de algum mal-estar a que o indivíduo é exposto.

Parece que o tratamento que deve ser dispensado a casos como este é o mesmo dispensado às biografias não autorizadas, pelo Supremo Tribunal Federal, quando do julgamento da Ação Direta de Inconstitucionalidade (ADI) 4815[23]: não é lícito impedir a exposição do caso, quer por meio de programas televisivos, quer mesmo por obras literárias, mas eventuais lesões à dignidade, seja por agressão aos direitos da personalidade, seja por prejuízos, comprovados através de perícia médica, causados à saúde individual, devem levar à reparação civil.

Partindo do princípio de que a própria Constituição Federal, no art. 220, § 1º, limita a liberdade de expressão, ao respeito à privacidade, há que se estabelecer um tempo no qual ambos os direitos são realizados, tanto o de informar e ser informado, quanto o de ter a privacidade protegida pelo esquecimento por parte dos motores de busca da internet, sob pena de o interesse social objetificar o indivíduo. O organismo não prescinde da saúde de suas partes para viver de forma saudável.

Ainda que os fatos tenham sido amplamente divulgados pela imprensa à época dos fatos – realizando assim o direito à liberdade de expressão e de informação, o interesse público não pode ter um reinado soberano e ilimitado, sob pena de se devassar não só os direitos da personalidade, mas também de se prejudicar a saúde das pessoas. A linha entre o real interesse público pela informação e a injustificada curiosidade coletiva costuma ser muito tênue.

Diante disso, deve-se salientar que não se trata de impedir os atos comunicativos, mas de se lhes estabelecer limites, pautados em critérios que, a um só tempo, garantam a liberdade de expressão e de informação, mas também a intangibilidade da dignidade das pessoas. Noticiar um fato quando da sua ocorrência, sem qualquer impedimento, significa o exercício da liberdade de expressão em todos os seus aspectos. Com o passar do tempo, em casos de fatos não históricos, o interesse público pela notícia, já satisfeito no primeiro momento, passa a ceder espaço para os interesses do terceiro em ter resguardada sua privacidade ou mesmo sua saúde. Ou seja, para que se compatibilize com os direitos do outro, a informação precisa ter uma vida útil.

Não se trata de esquecer o passado, mas de se reconstruir o presente através de mecanismos fisiológicos, retirando da consciência aquelas memórias que impedem a vida digna e saudável. A questão não é apagar as informações de suas fontes originais, mas de não trazê-las em rede nacional descobrindo memórias já reprimidas, lesionando a saúde individual, para além dos direitos da personalidade. Ter de conviver com uma realidade (a morte de um familiar), não pode se tornar ainda mais penoso pela exposição desnecessária e deletéria de um programa de televisão exposto em rede nacional. Antes fosse feito um livro, sobre o caso, porque inegavelmente a exibição em canal aberto, onde as imagens falam e chocam por si, impede que a própria fisiologia humana opere para reestabelecer a saúde.

Diversos são os exemplos da literatura que demonstram quão saudável é esquecer. Jorge Luís Borges, em sua obra Funes, o memorioso[24], retratou a impossibilidade de esquecer, do personagem Irineu Funes, que teria tido uma vida comum, não fosse um acidente, que mudou definitivamente o rumo da sua vida, dando-lhe a capacidade de tudo lembrar ou, em outras palavras, a incapacidade de esquecer. Nada, nenhum minucioso detalhe escapava à sua implacável memória: “sabia as formas das nuvens austrais do amanhecer do trinta de abril de mil oitocentos e oitenta e dois e podia compará-las na lembrança aos veios de um livro encadernando em couro que vira somente uma vez e às linhas da espuma que um remo levantou no rio Negro às vésperas da batalha do Quebracho”.

Funes morreu jovem e não conseguia mais pensar, porque, nas palavras do narrador, refletir seria esquecer diferenças, generalizar e abstrair. Assim, quem tudo lembra nada pensa. Desse modo, a infinita memória (hipermnésia ou memória absoluta) tornou-se sua letal doença.

Para Milan Kundera[25], “se alguém pudesse reter na memória tudo aquilo que vivenciou, se pudesse num dado momento recuperar qualquer fragmento do seu passado, esse alguém não seria absolutamente humano”, tanto é verdade que o próprio cérebro humano tem mecanismos para realizar essa tarefa – seja pela extinção, repressão ou mesmo falsificação de memórias.

Se, por um lado, somos aquilo que lembramos[26], somos também o que escolhemos esquecer. A memória ajuda a conservar a própria história: a identidade é, ao mesmo tempo, o que individualiza as pessoas – cada um tem a sua própria história –, e o que o insere na vida social como membro de um grupo. O esquecimento também é fundamental para a regeneração da vida: só esquecendo o passado pode-se dedicar a planejar o futuro, como defende Leandro Karnal[27]:

Esta é uma grande lição. Para viver temos de lembrar de algumas coisas e esquecer de outras coisas. Funes e Luís XVIII são exemplos bons: é impossível viver bem sem esquecer. O erro de nada lembrar é a amnésia, vestíbulo de uma morte. O erro de nada esquecer é o divórcio, a perda dos amigos e a dor permanente… Viver é selecionar memórias, como fazemos com as fotos do aparador: aquelas são as imagens da família que eu desejaria ter.

Também ocupam um espaço fantasmagórico as fotos que não estão ali: os momentos que desejo obliterar para sempre. Felicidade está no equilíbrio do binômio lembrar/esquecer.

A necessidade de esquecer aquilo que traz dor, que envergonha ou que, de qualquer modo, faz sofrer relaciona-se com o sentimento de liberdade. Livres, ainda que não possam alterar o passado, os homens podem escrever uma nova história. A quem seria legítimo impedir que alguém engendrasse todos os esforços necessários para superar uma dor ou qualquer coisa que o mortifique, aprisione, humilhe, enfim, que o impeça de viver uma vida digna?

Ocorre que os sucessores da chamada geração X, nascidos após a década de 1970, trazem consigo a experimentação de sofrimentos que eram desconhecidos das gerações anteriores, em virtude do inexpugnável avanço tecnológico. Não se trata de avaliar se a exposição da sociedade de informação traz dores maiores ou menores, mais ou menos intensas do que em outros períodos da história. Os males e aflições “líquido-modernos[28], em muito se referem às proporções que determinados fatos, antes circunscritos a um limitado número de pessoas, hoje, ganham proporções mundiais, impondo, muitas vezes, verdadeiras “tatuagens eletrônicas”.

Mesmo sob o enfoque dos condenados por crimes, por mais que algo tenha sido provocado pelo próprio indivíduo, por mais que se trate de consequências dos próprios atos, não se lhes retira a oportunidade de se reconstruir – daí o sentido de existência do chamado “período depurador”. Se todas as vezes em que uma pessoa constrói algo, empurrando a pedra da sua existência para o topo da colina, um fato do passado for capaz de jogar por terra o esforço empreendido, tal não só aniquilaria a sua dignidade, mas também a impediria de efetivamente se reconstruir de forma diferente.

Assim, se o próprio condenado por um crime possui o direito de reconstruir sua vida por meio do “esquecimento” de tal fato, que dizer, então, das vítimas diretas e indiretas do fato criminoso?

O Direito ao Esquecimento contempla, pois, mais do que uma adequada tutela da privacidade, mas, sobretudo, a proteção à saúde em nome de uma vida digna, logo, não é possível a resolução de casos concretos tomando por base, exclusivamente, a ponderação entre liberdade de expressão e privacidade. É, pois, imperioso, que se analise os fatos sob a perspectiva prejuízos, oriundos de uma exposição demasiada, à saúde individual dos envolvidos, direta ou indiretamente, com os fatos.

Dúvidas, portanto, não há que é imprescindível esquecer algumas coisas, para que outras, verdadeiramente inesquecíveis, possam ser guardadas no relicário da nossa existência.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

A presente pesquisa propôs-se a analisar o Direito ao Esquecimento sob uma nova perspectiva – a da saúde –, não com o objetivo de suplantar a clássica discussão privacidade versus liberdade de expressão, mas de acrescentar uma cogente análise dos danos provocados à saúde individual quando, em determinados casos, não é assegurado o Direito ao Esquecimento, a exemplo do Recurso Especial 1.335.153.

Nesse contexto, o baldrame de tudo que se pretendeu apresentar consiste no respeito máximo ao valor dignidade, fundamento do Estado Democrático de Direito e princípio norteador de todo o nosso sistema jurídico. Num mundo de diluição dos liames entre o espaço público e o privado, provocada pelo avanço tecnológico, é imperioso enfatizar alguns limites. Embora a informação seja, incontestavelmente, um direito fundamental do homem e alicerce da própria democracia, esse mesmo direito não pode transformar o indivíduo em mero objeto do dito interesse público. Não por outra razão, a sociedade de informação carece, cada vez mais, de adequada tutela dos direitos da personalidade.

Se, por um lado, a expansão da tecnologia, em especial da rede mundial de computadores, trouxe notáveis benefícios aos seres humanos, com ferramentas que não só relativizam a percepção de espaço e tempo, mas também simplificam o cotidiano, proporcionando imensurável capacidade de acesso, acúmulo e divulgação de informações, por outro lado, essa mesma expansão, por meio da eternização de informações, escraviza indivíduos, numa completa erosão da privacidade e da própria saúde. Ressalta-se que, mais grave que a quantidade de informações circulando em tempo real na internet sobre os indivíduos, é a perenidade dessas informações.

É preciso observar os fins éticos da informação, não só pela veracidade dos fatos, mas para pôr limite à exploração da tragédia alheia. Como é um fim em si mesmo, o homem não pode ser tratado como mero objeto da notícia. O liame está no fato de que a veracidade da informação não confere a ela inquestionável licitude, nem transforma a liberdade de imprensa em um direito absoluto e ilimitado.

Não se pretende negar às gerações futuras o direito de conhecer e aprender com os erros do passado, principalmente para que eles não se repitam. Embora a análise da sociedade possa e deva ser feita com base nos fatos e nas respostas judiciais aos mesmos, é imperioso não só que se discuta sobre a excessiva e desnecessária exposição, após a vida útil da informação pelos motores de busca da internet ou mesmo por programas televisivos, mas também que se busquem soluções. Desse modo, perpetuam-se as experiências, e não as punições ou estigmas.

Sabe-se que, após uma situação de trauma, a fisiologia do cérebro humano aciona mecanismos – falsificação, extinção e repressão de memórias –, alguns de modo inconsciente, outros conduzidos por processo terapêutico, para reestabelecer a saúde psíquica do indivíduo e permitir, inclusive, a vida em sociedade. Sucede que, apesar da imprescindibilidade do direito ao esquecimento como tutela do direito à saúde, a imortalidade da informação, com a constante exposição ao fato traumático, impede o adequado funcionamento desses mecanismos fisiológicos que permitem a regeneração da saúde.

Não há possibilidade de analisar o Direito ao Esquecimento sem o auxílio das ciências da saúde, uma vez que o Direito não possui meios para aferir a partir de qual momento o “tempo apaga a dor” e nem mesmo se isto é possível. Se a própria fisiologia do cérebro afasta memórias traumáticas para preservar a saúde do indivíduo, somente perícias multidisciplinares poderão aferir se há dano à saúde ou não.

Por assim ser, os julgadores, que almejam proferir decisões justas, precisam afastar-se da zona de conforto que permeia a clássica discussão entre liberdade de expressão e privacidade, para compreender, tecnicamente, os danos que a perpetuação dos fatos e o seu asfixiante rememoramento podem gerar à saúde individual. Não se trata de ponderar qual direito deve prevalecer, posto que, antes disto, todos serão realizados, bastando o estabelecimento de uma “vida útil” para que a informação não se torne desumana e degradante.

Considerando-se que, sem libertar-se das amarras do passado, o homem jamais poderá recomeçar, entende-se que fatos traumáticos devem ser transcendidos, para que momentos realmente dignos de ser considerados inesquecíveis tenham espaço na construção de uma vida digna e repleta de esperanças no porvir.

REFERÊNCIAS

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SARMENTO, Daniel. Direitos Fundamentais e Relações Privadas. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2004.

Notas de Rodapé

[1] Mestra e Doutora em Direito Constitucional pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo – PUC-SP. Professora Adjunta da Universidade Federal Rural do Rio de Janeiro – UFRRJ. Advogada.

[2] O estudo foi desenvolvido na Universidade York, no Reino Unido e liderado por Dr. Nicole K. Valtorta: a investigação mostrou que existe uma ligação entre as relações sociais deficientes e a mortalidade prematura. Disponível em: <https://www.sciencedaily.com/releases/2016/04/160419214147.htm>. Acesso em: 25 set. 2016.

[3] Parecer 156.104/2016 PGR-RJMB de Rodrigo Janot. Disponível em: <http://politica.estadao.com.br/blogs/fausto-macedo/wp-content/uploads/sites/41/2016/07/pareceresquecimento.pdf>. Acesso em: 25 set. 2016.

[4] Idem.

[5] MAURMO, Julia Gomes Pereira. Direito ao esquecimento e condenações penais: outras perspectivas sobre o tema. 2017. 241f. Tese (Doutorado em Direito Constitucional) – Faculdade de Direito, Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, São Paulo, 2017.

[6] Sobre a eficácia horizontal de direitos fundamentais: SARMENTO, Daniel. Direitos fundamentais e relações privadas. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2004.

[7] Ainda que alguns médicos critiquem este conceito pelo seu caráter holístico, ele será aqui considerado, conforme preceito da Organização Mundial da Saude. Preâmbulo da Constituição da Organização Mundial da Saúde (OMS/WHO) – 1946: A saúde é um estado de completo bem-estar físico, mental e social, e não consiste apenas na ausência de doença ou de enfermidade. Gozar do melhor estado de saúde que é possível atingir constitui um dos direitos fundamentais de todo o ser humano, sem distinção de raça, de religião, de credo político, de condição econômica ou social. A saúde de todos os povos é essencial para conseguir a paz e a segurança e depende da mais estreita cooperação dos indivíduos e dos Estados. Os resultados conseguidos por cada Estado na promoção e proteção da saúde são de valor para todos. O desigual desenvolvimento em diferentes países no que respeita à promoção de saúde e combate às doenças, especialmente contagiosas, constitui um perigo comum. O desenvolvimento saudável da criança é de importância basilar; a aptidão para viver harmoniosamente num meio variável é essencial a tal desenvolvimento. A extensão a todos os povos dos benefícios dos conhecimentos médicos, psicológicos e afins é essencial para atingir o mais elevado grau de saúde. Uma opinião pública esclarecida e uma cooperação ativa da parte do público são de uma importância capital para o melhoramento da saúde dos povos. Os Governos têm responsabilidade pela saúde dos seus povos, a qual só pode ser assumida pelo estabelecimento de medidas sanitárias e sociais adequadas. Aceitando estes princípios com o fim de cooperar entre si e com os outros para promover e proteger a saúde de todos os povos, as partes contratantes concordam com a presente Constituição e estabelecem a Organização Mundial da Saúde como um organismo especializado, nos termos do art. 57 da Carta das Nações Unidas. Disponível em: <http://www.direitoshumanos.usp.br/index.php/OMS-Organiza %C3%A7%C3%A3o-Mundial-da-sa%C3%BAde/constituicao-da-organizacao-mundial-da-saude-omswho.html>. Acesso em: 01 maio 2016.

[8] Disponível em: <http://michaelis.uol.com.br/moderno/portugues/index.php?lingua=portugues-portugues&palavra=mem%F3ria>. Acesso em: 24 jan. 2016.

[9] IZQUIERDO, Iván. Questões sobre memória. In: Col. Aldus, 19. São Leopoldo: Unisinos, 2004. p. 15.

[10] GERARD, Ralph W. O que é memória? In: Scientific American (periódico): Psicobiologia: as bases biológicas do comportamento. Tradução de Lidia Aratangy. São Paulo: Editora Universidade de São Paulo e Polígono, 1970. p. 139.

[11] PAVLOV, Ivan Petrovich. Conditioned reflexes: an investigation of the physiological activity of the cerebral cortex. New York: DoverPublications, 2003.

[12] Ressalte-se que, mesmo sendo considerado o “pai” da atual biologia da memória, Pavlov praticamente não mencionava a palavra “memória”, já que se acreditava que o comportamento poderia ser explicado por simples sequência de reflexos, até, na época, porque a bioquímica era muito incipiente.

[13] IZQUIERDO, Iván. A arte de esquecer. 2. ed. Rio de Janeiro: Vieira & Lent, 2010. p. 46.

[14] IZQUIERDO, Iván. Questões sobre memória. Col. Aldus, 19. São Leopoldo: Unisinos, 2004. p. 46.

[15] IZQUIERDO, Iván. A arte de esquecer. 2. ed. Rio de Janeiro: Vieira & Lent, 2010. p. 69.

[16] IZQUIERDO, Iván. Questões sobre memória. Col. Aldus, 19. São Leopoldo: Unisinos, 2004. p. 41.

[17] Alguns médicos questionam se devem ou não usar ansiolíticos durante a cessão. Os que acreditam que sim defendem o uso para ajudar o paciente a manter-se controlado; os que desaprovam a medicação acreditam que ela influirá no processo de formação da memória que irá sobrepor-se àquela que se busca tratar. Izquierdo avalia que o uso ou não só deve ser avaliado em face da relação custo-benefício, analisando-se o caso concreto a que se encontra submetido cada paciente.

[18] IZQUIERDO, Iván. A arte de esquecer. 2. ed. Rio de Janeiro: Vieira & Lent, 2010. p. 118.

[19] Disponível em: <https://www.sciencedaily.com/releases/2016/04/160419214147.htm>. Acesso em: 25 set. 2016.

[20] BRASIL. Superior Tribunal de Justiça. Recurso Especial 1.335.153/RJ – Rel. Luís Felipe Salomão – DJe 10.09.2013. Disponível em: <http://www.stj.jus.br/SCON/jurisprudencia/doc.jsp?livre=1335153&b=ACOR&p=true&l=10&i=4>. Acesso em: 20 jan. 2014.

[21] Idem.

[22] BRASIL. Superior Tribunal de Justiça. Recurso Especial 1.335.153/RJ – Rel. Luís Felipe Salomão – DJe 10.09.2013. Disponível em: <http://www.stj.jus.br/SCON/jurisprudencia/doc.jsp?livre=1335153&b=ACOR&p=true&l=10&i=4>. Acesso em: 10 mar. 2016.

[23] Disponível em: <http://www.stf.jus.br/arquivo/cms/noticiaNoticiaStf/anexo/ADI4815relatora.pdf>. Acesso em: 12 out. 2016.

[24] BORGES, Jorge Luís. Ficções. Tradução de Carlos Nejar. São Paulo: Globo, 1999. v. I, p. 54.

[25] KUNDERA, Milan. Ignorance. London: Faber, 2002. p. 123-124.

[26] BOBBIO, Norberto. O tempo da memória. Rio de Janeiro: Campus, 1997.

[27] KARNAL, Leandro. Lembrar e esquecer ou a vida entre Dory e Funes. Disponível em: <http://cultura.estadao.com.br/noticias/geral,lembrar-e-esquecer-ou-a-vida-entre-dory-e-funes,10000065791>. Acesso em: 01 ago. 2016.

[28] BAUMAN, Zygmunt. Vidas Desperdiçadas. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2005. p. 18.