DOI: 10.19135/revista.consinter.00021.13

Recebido/Received 31/08/2024 – Aprovado/Approved 14/05/2025

Roberta Ferme Sivolella[1] – https://orcid.org/0000-0002-9866-9225

Resumo

O presente trabalho busca analisar o papel do Judiciário no enfrentamento da violência contra a mulher, sob o enfoque de sua responsabilidade social frente à proteção de vulneráveis. Analisando os dados alarmantes e o caráter multifacetário deste grave problema social, que ainda cresce anualmente em índices superiores a 1,5% ao ano no caso do feminicídio, o estudo explora as ações recentes do Poder Judiciário que utilizam abordagem estrutural para tratar da violência contra a mulher,  e que são realizadas no âmbito do Conselho Nacional de Justiça. Utilizando-se de pesquisa descritiva e exploratória, sob a análise quantitativa e qualitativa, em método hipotético dedutivo, são identificados os fatores de justificação criados em torno do tema. Em conclusão, apura-se o êxito das seguintes medidas em contribuição à construção de políticas públicas e com o fomento ao acesso à justiça: aplicação da Resolução CNJ 492/2023 em processos administrativos; inclusão de diretrizes estratégicas voltadas às Corregedorias na temática da violência contra a mulher; identificação dos processos administrativos disciplinares envolvendo a temática da violência contra a mulher; implementação de medidas voltadas ao diálogo com setores e órgãos envolvidos na temática da violência contra a mulher; inclusão da verificação de protocolos voltados ao enfrentamento da violência contra a mulher no cotidiano das inspeções; criação do canal de representação voltado a denúncias de violência contra a mulher praticada por integrantes do Poder Judiciário; integração e diálogo com a Ouvidoria Nacional da Mulher, e aplicação de medidas voltadas ao combate de violência de gênero praticada por integrantes do Poder Judiciário (violência institucional).

Palavras-Chave: Violência Contra a Mulher; Poder Judiciário; Conselho Nacional de Justiça; Acesso à Justiça; Processo Estrutural.

Abstract

This paper seeks to analyze the role of the Judiciary in confronting violence against women, from the perspective of its social responsibility in protecting vulnerabilities. Analyzing the alarming data and the multifaceted nature of this serious social problem, which continues to grow annually at rates above 1.5% per year in the case of feminicide, the study explores the recent actions of the Judiciary that use a structural approach to address violence against women, and which are carried out within the scope of the National Council of Justice. Using descriptive and exploratory research, under a quantitative and qualitative analysis, in a hypothetical deductive method, the justification factors created around the theme are identified. Finally, it is concluded that the following measures were successful in contributing to the construction of public policies and promoting access to justice: application of CNJ Resolution 492/2023 in administrative proceedings; inclusion of strategic guidelines aimed at the Internal Affairs Departments on the issue of violence against women; identification of disciplinary administrative processes involving the theme of violence against women; implementation of measures aimed at dialogue with sectors and agencies involved in the issue of violence against women; inclusion of the verification of protocols aimed at confronting violence against women in the daily inspections; creation of the representation channel aimed at complaints of violence against women practiced by members of the Judiciary; integration and dialogue with the National Women's Ombudsman's Office, and application of measures aimed at combating gender violence practiced by members of the Judiciary (institutional violence).

Keywords: Violence Against Women – Judiciary – National Council of Justice – Acess to Justice- Estructural Action.

Sumário: 1. Introdução; 2. A visão multifacetária da violência contra a mulher e abordagem estrutural; 3. O papel do poder judiciário: responsa-bilidade e desafios frente à violência contra a mulher; 4. Ações específicas do conselho nacional de justiça no enfrenta-mento da violência contra a mulher de competência da corre-gedoria: achados e contribuições; 5. Conclusão; 6. Referências.

1  INTRODUÇÃO

As mulheres são vítimas de discriminação e violência, independente da cultura, classe social, etnia e orientação sexual. Fenômeno considerado culturalmente reproduzido, a violência de gênero vem se perpetuando perversamente através de gerações, e pode se revestir de características específicas segundo as intersseccionalidades envolvidas, inobstante presente potencialmente em todas as sociedades humanas.

Uma vida cotidiana de discriminação e violência produz consequências traumáticas e efeitos devastadores, não só para a mulher e seu grupo familiar, mas para toda a sociedade. Os números ainda são alarmantes: segundo o Fórum Brasileiro de Segurança Pública, o feminicídio ainda cresce anualmente, em índices superiores a 1,5% ao ano, computando, desde a edição da Lei 13.104/15 (Lei Maria da Penha), ao menos 10.655 mulheres vítimas desta que é somente uma das inúmeras facetas por meio da qual se exterioriza a violência contra a mulher[2]. Ainda segundo o FBSP, no ano de 2023, 1.463 mulheres foram vítimas de feminicídio no Brasil, taxa de 1,4 mulheres mortas para cada grupo de 100 mil, crescimento de 1,6% comparado ao mesmo período do ano anterior, e o maior número já registrado desde a tipificação da lei[3].

Além da subnotificação que camufla a verdadeira amplitude do problema, há diversos fatores, nem sempre tão explícitos, que propagam uma cultura violenta em relação às mulheres em todos os nichos da sociedade. São múltiplas facetas que envolvem, dentre outros fatores, raízes históricas, culturais, políticas e sociais de franca desigualdade, oculta em padrões normalizados de imposição brutal de antinomias de oportunidades, inclusão, reconhecimento e em relação à sobrevivência da mulher na sociedade[4]. Não se trata, como já dito, de causa única calcada em fatores históricos e sociais, mas, como indica o cerne do estudo, fenômeno calcado em causas multifacetárias, de múltiplas contornos.

Acabam, portanto, por se traduzir como conflitos sociais que se generalizaram para além do interesse individual. Ganham natureza coletiva a partir da resistência a tais incoerências, de modo a suscitar a atuação do Poder Judiciário em sua função pacificadora.

Contudo, sob a visão de que a expansão da judicialização das relações sociais não é fenômeno exclusivamente jurídico, mas social, o sistema de Justiça não consegue resolver a questão se conformando com a solução formalista do processo, no tratamento dos conflitos individualmente considerados. Uma vez que não se trata de fenômeno conjuntural, mas ligado à própria dinâmica das sociedades democráticas (GARAPON, 1999), a atividade do sistema de justiça, ao analisar conflitos que envolvam, seja de maneira clara ou subjacente, a violência contra a mulher, tem por desafio identificar qual é o problema estrutural envolvido e quais os fatores que colaboram com a sua propagação.

Paralelamente, é necessário identificar, de maneira efetiva e contundente, quais as formas de violências existentes com suas nuances dentro e fora do sistema de justiça, inclusive no âmbito do processo.

Com base em tais premissas, o presente artigo traz os resultados obtidos por meio da execução de projetos criados e implementados pelo Conselho Nacional de Justiça na temática do combate da violência contra a mulher. Em pesquisa descritiva e exploratória, sob a análise quantitativa e qualitativa das demandas instauradas na matéria e método hipotético-dedutivo de pesquisa, são identificadas as características da violência contra a mulher e como ela tem se exteriorizado sob a forma de conflitos sociais, bem como qual o papel do Poder Judiciário na resolução de tais conflitos, de forma estrutural.

Identificando os fatores de justificação criados em torno do tema, conclui-se pelo êxito das seguintes medidas em contribuição à construção de políticas públicas e com o fomento ao acesso à justiça: aplicação da Resolução CNJ 492/2023 em processos administrativos; inclusão de diretrizes estratégicas voltadas às Corregedorias na temática da violência contra a mulher; identificação dos processos administrativos disciplinares envolvendo a temática da violência contra a mulher; implementação de medidas voltadas ao diálogo com setores e órgãos envolvidos na temática da violência contra a mulher; inclusão da verificação de protocolos voltados ao enfrentamento da violência contra a mulher no cotidiano das inspeções; criação do canal de representação voltado a denúncias de violência contra a mulher praticada por integrantes do Poder Judiciário; e aplicação de medidas voltadas ao combate de violência de gênero praticada por integrantes do Poder Judiciário (violência institucional).

2  A VISÃO MULTIFACETÁRIA DA VIOLÊNCIA CONTRA A MULHER E ABORDAGEM ESTRUTURAL

A violência contra a mulher se exterioriza de diversas formas. Ela é o resultado de um fenômeno mais amplo, complexo e arraigado através do tempo no que se denomina de opressão do feminino.

Para tanto, os atos que se corporificam tanto na vida em sociedade quanto na intimidade se apresentam de forma enviesada, a partir de um sistema complexo de transmissão e repetição irrefletida de valores particulares. Tais atos ocultam uma finalidade que, em sua forma mais geral, não é explicitada ou facilmente verificável[5].

Por tal motivo, a violência contra a mulher deve ser conceituada como fenômeno multifacetado e geralmente camuflado sob diversos vieses ideológicos e justificativas criadas para legitimar os atos de opressão. Essas justificativas acabam atuando como ferramentas de banalização de tais atos de violência, os quais, muitas vezes, são decorrências da ausência dos denominados juízos reflexivos por seus agentes[6]. Tal ausência de juízo reflexivo por parte do agente propagador da violência é, muitas vezes, resultado de valores passados como algo imutável e natural, estimulando a manutenção de um “esquema inconsciente da ordem masculina”[7], e incutindo a falsa crença de que tais atos, já banalizados, são naturais ou não perniciosos socialmente.

As formas de disseminação de tal violência de caráter sistêmico são diversas e decorrem de estigmas de papeis sociais impostos. Se espraiam desde a sua exteriorização por pré-conceitos supostamente morais, jubilação familiar, exclusão socioeconômica, diferenças concretas de oportunidades em todos os nichos, e, em último nível exclusão da participação em processos decisórios. Geram, nesse último caso, perverso mecanismo de retroalimentação social que afasta a participação feminina de importantes decisões políticas.

As múltiplas facetas da violência vêm frequentemente acompanhadas de- também múltiplos- fatores de justificação, que contribuem para tornar ainda mais nebulosa a identificação de suas formas, travestidas, não raro, de valores considerados moralmente inegociáveis ou discutíveis. Tal característica acaba incutindo à vítima maior temor, de ordem psicológica, para que se reconheça imbuída do papel de vulnerabilidade e se identifique como alvo do ato violento. Ao mesmo tempo, traz grande dificuldade para que a mulher se sinta merecedora de apoio por parte do Estado e da sociedade, em grande instrumento propagador da subnotificação de casos de violência e estimulador da sua negação.

O binômio formado pela ausência de reconhecimento da situação de vítima, e pela ausência do sentimento de merecimento de proteçãom alimenta uma realidade de afastamento da política de reconhecimento (identificação do problema e pertencimento) necessária a viabilizar a distribuição (amparo igualitário), aumentando ainda mais o abismo de desigualdade de gênero existente[8]. As políticas de reconhecimento e distribuição indicam pilares de forte embasamento para identificar as inúmeras causas à violência contra a mulher, que não se restringem apenas a construções históricas e sociais.   

O caráter multifacetário citado estimula, de certo modo, que aqui se dê preferência ao termo violência contra a mulher em sentido amplo, muito embora comumente a referida denominação se confunda, ou seja usada, como sinônimo da violência de gênero. A condição de mulher, para a finalidade da identificação da violência aqui referida, deve ser encarada como inerente a toda a forma de vulnerabilidade de gênero que a ele se assemelhe[9].

O caráter multifacetário da violência contra a mulher afasta, ainda, a dependência de uma identificação com formas tradicionais de exteriorização de poder. Por ser muitas vezes velada ou camuflada por justificativas que falseiam objetivos anti-isonômicos, a relação de poder que lhe dá forma existe de per si. Em verdade, toda aquela que esteja na posição de mulher em relação à sociedade ou a outro indivíduo que assim não se compreenda, possui vulnerabilidade intrínseca[10].

Ainda sob o prisma multifacetário- e considerando-se a noção de poder existente em sua concretude, multifacetado, e cotidiano[11] –, a percepção da problemática da violência contra a mulher vai além da noção clássica de patriarcado. A denominada dominação masculina estrutura a percepção e a organização concreta e simbólica de toda a vida social, refletindo uma “dominação simbólica” sobre todo o tecido social, corpos e mentes, discursos e práticas sociais e institucionais; (des)historicizando diferenças e naturalizando desigualdades entre homens e mulheres. Esse conceito, contudo, deve ser compreendido sem que seja universalizado, já que, com a evolução das relações sociais, há muitas variações na forma como o poder patriarcal- expressão da chamada dominação masculina- se institui e se legitima, assim como também são variadas as formas de resistência desenvolvidas pelas mulheres nos diferentes contextos[12]. A visão relacional veio a agregar elementos a essa vertente multifacetária, na medida em que compreende como as relações de poder e opressão se manifestam e são reproduzidas nas interações sociais e nas estruturas sociais e institucionais[13].

Vale dizer, a presença da disputa de poder não pode ser analisada de maneira exterior à própria relação, ou decorrente necessariamente de relações hierárquicas ou tradicionalmente indicadoras de vulnerabilidade social.

A existência do poder nas interações não diminui o problema da violência contra a mulher, nem pode ser considerada como sua única causa. Ao contrário, ela potencializa os conflitos- dado que os interesses são divergentes[14] – e se afasta do escopo de pacificação social. Assim, chega ao poder público sob a forma de conflito, chamando-o à responsabilidade de enfrentamento do problema, e, em especial, chega ao Poder Judiciário, sob múltiplas formas de demandas.

Trata-se, portanto, de verdadeiro problema estrutural. Este, segundo a doutrina, se define pela existência de um estado de desconformidade estruturada, representando uma situação de ilicitude contínua e permanente, ou uma situação de desconformidade, ainda que não considerada propriamente ilícita, no sentido de ser uma situação que não corresponde ao estado de coisas considerado ideal[15].

O problema estrutural reflete um estado de coisas que necessita de reorganização (ou de reestruturação), e, via de consequências, exige uma intervenção (re)estruturante. Demanda, assim, um novo olhar sobre as instituições e organizações sociais, que transborda a mera resolução individual do conflito.

As soluções estruturais, por sua vez, sob enfoque e abordagem de mesma denominação que aqui são utilizados, se referem a conceito decorrente do problema estrutural citado, e se identifica com o viés do processo estrutural[16]. Este se veicula ao litígio estrutural, pautado num problema estrutural, e em que se pretende alterar o estado de desconformidade existente, substituindo-o por um estado de coisas ideal[17].

O enfrentamento do problema sob o viés estrutural se identifica com o acesso à justiça efetivo, sob a visão de que a resolução de disputas pressupõe também a criação de mecanismos para a sua prevenção e resolução a nível macro. Portanto, o enfrentamento da violência contra a mulher sob o enfoque estrutural, no que toca aos conflitos que chegam ao Poder Judiciário, acaba se identificando com a acepção de acesso à justiça sob a finalidade da pacificação social[18].

Aqui reside, portanto, a responsabilidade do Poder Judiciário sob a acepção de seu novel papel na sociedade.

3  O PAPEL DO PODER JUDICIÁRIO: RESPONSABILIDADE E DESAFIOS FRENTE À VIOLÊNCIA CONTRA A MULHER

A percepção contemporânea do processo se alinha à estruturação do Estado Democrático de Direito sob o viés inclusivo e integrado: tal como o redimensionamento de tempo e espaço que caracterizam a denominada sociedade 4.0, já não é mais possível pensar em soluções isoladas para alcançar a efetividade de resultados na resolução de conflitos, sob pena de fragmentação e obstacularização da criação de estruturas sociais fundamentais estáveis, e com capacidade de integração política e social[19].

Tal visão, desvinculada do individualismo casuístico ou da mera gestão quantitativa da litigiosidade, se amolda ao novo enfoque da responsabilidade e do papel do Judiciário moderno, que passa assumir o protagonismo no impulsionamento de projetos e ações de grande impacto social, aqui indicados na conclusão do presente estudo. Longe de se identificar com qualquer ingerência abusiva entre os Poderes, a participação na construção de políticas públicas por meio de tais iniciativas não só é desejável, como necessária, sob a perspectiva de que o Direito deve conceder respostas às necessidades sociais de seu tempo e espaço[20].

A experiência brasileira demonstra que a opção por essa nova visão do papel do Judiciário foi realizada. A Emenda Constitucional 45/2004, por exemplo, teve como mote o aperfeiçoamento do trabalho do Judiciário brasileiro, sob uma visão inclusiva e democrática que envolve, como missão, promover o desenvolvimento do Poder Judiciário em benefício da sociedade, e como visão de futuro, garantir a eficiência, transparência e responsabilidade social da Justiça brasileira. O próprio modelo do Conselho Nacional de Justiça no Brasil espelha tais objetivos, sendo pioneiro em sua estrutura e espectro de atuação, a qual vai muito além do viés fiscalizatório ou punitivo-regulador do Poder Judiciário.

Não por acaso, o Conselho Nacional de Justiça adotou como Meta Nacional 9 do Poder Judiciário Brasileiro a integração da Agenda 2030 (agenda de Direitos Humanos das Nações Unidas, aprovada em Assembleia Geral das Nações Unidas em 2018), sob o enfoque da efetividade da jurisdição. Afinal, “quando há lesão ou ameaça de violação de direitos humanos, milhares de demandas são judicializadas, cabendo ao Poder Judiciário assegurar a razoável duração do processo e os meios que garantam sua celeridade”[21]. O Poder Judiciário Brasileiro, aliás, foi pioneiro, no mundo, na institucionalização da Agenda 2030 e indexação de sua base de dados com 80 milhões de processos a cada um dos 17 Objetivos de Desenvolvimento Sustentável.

A inclusão de ações de igualdade de gênero e empoderamento de mulheres e meninas, por sua vez, está no centro das propostas dos objetivos e metas do desenvolvimento sustentável da Agenda 2030. Além de possuir um capítulo próprio ao tema gênero (ODS5), a agenda contempla outros objetivos e metas sensíveis a pauta, tais como a erradicação da pobreza e fome em todas as dimensões (ODS1/ODS2), o bem-estar e saúde de qualidade (ODS3), a igualdade no acesso a educação de qualidade (ODS5), o crescimento econômico, a oportunidades de emprego (ODS8), a redução das desigualdades (ODS10), a paz, justiça e instituições eficazes (ODS16) e nas parcerias para a implementação dos objetivos (ODS17).

Ainda sob o enfoque da Organização das Nações Unidas, a ONU Mulheres editou, no mesmo ano da institucionalização da Agenda 2030 no Poder Judiciário brasileiro (2018), o Marco Normativo da Democracia Paritária. Em seu capítulo II, ao tratar da “articulação da responsabilidade do Estado inclusivo com a Democracia Paritária”, o referido marco ratificou o que aqui se expõe como responsabilidade e comparticipação do Judiciário no tema da desigualdade de gênero, cuja problemática gera a grave chaga da violência contra a mulher. No ponto, seus artigos 8º e 14 indicam, respectivamente, que:

Artigo 8. O compromisso do Estado inclusivo com a Democracia Paritária configura-se como uma política de Estado, que obriga os poderes executivo, legislativo, judiciário e eleitoral a sua aplicação em toda a estrutura territorial.

Artigo 14. O poder judiciário deveria: a. Promover o acesso à Justiça desde o respeito e garantia da igualdade de gênero. (...)[22].

Não há dúvidas, portanto, de que o Poder Judiciário, por meio de todos os seus órgãos e políticas de gestão, não só detém legitimidade, como tem o dever de garantir um ambiente e um resultado que possam promover o respeito e a garantia à igualdade de gênero.

Sob o aspecto do acesso à justiça, uma vez que não mais está restrito à possibilidade de impulsionar o Judiciário, mas principalmente à possibilidade de obter desse mesmo Poder uma resposta célere, justa e eficaz, seu meio de aferição sob o índice específico (Índice de Acesso à Justiça) perpassa também a questão da vulnerabilidade, e o enfrentamento da violência contra a mulher, ambos incluídos na acepção do denominado Capital Cidadania[23].

Atualmente, segundo dados do Relatório Justiça em números[24], a tramitação de processos no Judiciário brasileiro ultrapassou a marca de 80 milhões. O número, que chama atenção por sua vultuosidade, revela também a necessidade premente da criação de mecanismos, dentro das Políticas Judiciárias projetadas, de tratamento adequado a esses litígios.  Por tratamento adequado aos litígios também deve ser entendido fornecer condições adequadas de trabalho, dentro do que se considera a distribuição equânime de força de trabalho.

Nesse panorama de grande vulto e grandes disparidades, o enfrentamento da violência contra a mulher se traduz em ações voltadas a garantir tal igualdade dentro e fora do Judiciário. A instituição da Política Nacional de Incentivo à Participação Institucional Feminina no Poder Judiciário, por meio da Resolução Nº 255 de 04/09/2018, é um dos exemplos de tais ações, sendo um dos grandes marcos do reconhecimento da necessidade de espaços democráticos e de igualdade entre homens e mulheres.

A instituição de políticas internas de diminuição de desigualdade de gênero é importante exemplo de ferramenta do combate da violência contra a mulher. Afinal, não é possível pacificar conflitos externos de desigualdade intrínseca sem que parâmetros de isonomia sejam vivenciados pelo órgão responsável por sua resolução.

A visão se alinha ao novo aspecto do acesso à justiça, não mais restrito à possibilidade de impulsionar o Judiciário, mas principalmente à possibilidade de obter desse mesmo Poder uma resposta célere, justa e eficaz.

4  AÇÕES ESPECÍFICAS DO CONSELHO NACIONAL DE JUSTIÇA NO ENFRENTAMENTO DA VIOLÊNCIA CONTRA A MULHER DE COMPETÊNCIA DA CORREGEDORIA: ACHADOS E CONTRIBUIÇÕES

Tendo todo o exposto em mente, fizeram parte do recorte de pesquisa as ações da Corregedoria Nacional de Justiça divididas em dois os principais eixos de atuação, no particular:

4.1 Prevenção e Enfrentamento da Violência Praticada em Face de Magistradas e Servidoras

4.1.1              Incorporação da recomendação 102/2021 como uma das diretrizes estratégicas voltadas às corregedorias locais

Anualmente, são estabelecidas “Metas e Diretrizes das Corregedorias”, por meio de debates e deliberação no Fórum Nacional das Corregedorias- FONACOR-, voltadas a estimular as Corregedorias locais a replicarem boas práticas e as ações de impacto social capitaneadas pela Corregedoria Nacional de Justiça, aqui descritas. Desde 2023, tais boas práticas que se destaquem são premiadas por meio o “Prêmio Corregedoria Ética”[25].

Houve a incorporação da Recomendação 102/2021 como uma das Diretrizes Estratégicas voltadas às Corregedorias locais. Essa Recomendação orienta aos órgãos do Poder Judiciário a adoção do protocolo integrado de prevenção e medidas de segurança voltado ao enfrentamento à violência doméstica praticada em face de magistradas e servidoras. Trata-se de iniciativa capitaneada em 2021 pelo comitê Gestor do Sistema Nacional de Segurança do Poder Judiciário, e que revela que a violência contra a mulher pode assumir diversas nuances em relação às situações particularizadas de violência[26].

O referido protocolo tem por pilares medidas de proteção, acolhimento e prevenção, e se pauta em ampla pesquisa que indica especificidades relacionadas às vítimas em comento, como :

(i) maior dificuldade em denunciar o agressor,

(ii) descrédito em relação à situação de vulnerabilidade vivida, em decorrência do cargo;

(iii) vício de vontade por parte da vítima na percepção quanto ao risco efetivo existente; maior exposição em decorrência de cargo público; e

(iv) o stress decorrente da função exercida por magistradas.

Por meio da Diretriz Estratégica 8/2023 e 7/2024, estimula-se a todas as Corregedorias locais para que, em diálogo com a Presidência dos Tribunais, criem condições à implementação da Recomendação 102/21. Também são adotadas medidas e recomendações decorrentes da verificação da observância a tal protocolo nas inspeções realizadas.

Dos 90 tribunais que responderam, 68 haviam desenvolvido ações quanto à referida Diretriz Estratégica, dos quais se exemplificam alguns projetos:

1) Tribunal de Justiça do Estado de Santa Catarina – TJSC- Programa Indira: pelas mulheres do PJSC, por meio da Resolução n. 53, 08 de agosto de 2022, disponível no link: <https://www.tjsc.jus.br/web/violencia-contra-a-mulher/programa-indira>.

2) TJ/MT – Núcleo de atendimento a magistradas e servidoras vítimas de violência doméstica, “Espaço Thays Machado” em homenagem a servidora vítima de feminicídio em janeiro de 2023.

Atendimento e acolhimento específico à vítima, envolvendo atendimento médico psiquiátrico, orientação e apoio jurídico necessário a cada caso específico, apoio institucional de segurança junto a Coordenadoria Militar do Tribunal, para garantir integridade física e psicológica da vítima, e desenvolver e fortalecer articulações com instituições que integram a rede de atendimento às mulheres (Delegacia, Ministério Público, entre outras redes de apoio).

3) TJ/PE – Protocolo de Intenções de Cooperação Técnica – Projeto “O silêncio não protege” – Realização de trabalho preventivo e informativo através de materiais disponibilizados para distribuição pela ANOREG/PE aos cartórios associados.

4) TJ/PI – Programa Girassol- Resolução TJPI nº366/2023 (Institui a Política de Enfrentamento à Violência Doméstica e Familiar Contra Magistradas e Servidoras do Tribunal de Justiça do Estado do Piauí.

5) TJ/RS – Projeto Bem-me-quero-bem – Projeto no âmbito da CEVID ( Coordenadoria Estadual das Mulheres em situação de Violência Doméstica e Familiar), desenvolvido pela CGJ em conjunto com a DIGEP, propicia a existência de um canal de escuta como forma de combate e prevenção à violência doméstica com perspectiva de gênero, sendo ainda um canal para encaminhamento para a rede de proteção.

6) TJ/TO – PAHS – Programa de Proteção, Acolhimento Humanizado e Solidário às Mulheres do Poder Judiciário do Tocantins, instituído pela Resolução/TJTO nº 18/2023 – Vinculado à Coordenadoria Estadual da Mulher em Situação de Violência Doméstica e Familiar (CEMSVID) em conjunto com o Núcleo de Inteligência e Segurança (NIS).

7) TJ/RJ – ROMPENDO O SILÊNCIO – Projeto integrativo e informativo envolvendo a Corregedoria Geral da Justiça – CGJ em parceria com o Comitê de Promoção da Igualdade de Gênero e de Prevenção e Enfrentamento dos Assédios Moral e Sexual e da Discriminação do Tribunal de Justiça do Estado do Rio de Janeiro – COGEN.

Percebeu-se, nesse panorama, que a inclusão da verificação de protocolos voltados ao enfrentamento da violência contra a mulher no cotidiano das inspeções pode se mostrar instrumento de êxito para o enfrentamento do problema de maneira estrutural. Em última análise, também representa a garantia do acesso à justiça real, de vez que a independência do magistrado, garantida por políticas que visam o exercício da função livre de medo ou pressões, é essencial à efetividade da prestação jurisdicional.

4.1.3              Realização de “ações voltadas à observância da política de prevenção e enfrentamento do assédio moral, do assédio sexual e da discriminação no poder judiciário

Com a criação de canais integrados de denúncia, fluxo e acompanhamento para os processos administrativos disciplinares envolvendo a matéria, informando a Corregedoria Nacional de Justiça, de acordo com a Resolução 351/2020”, por sua vez, compõe a Diretriz Estratégica 14/2024, mantendo aderência com o macrodesafio de Aperfeiçoamento da Gestão de Pessoas e do Fortalecimento da Relação Institucional do Judiciário com a Sociedade.

Essa iniciativa se volta tanto ao assédio praticado em face de magistradas e servidoras, quanto ao assédio porventura praticado por membros do Poder Judiciário.

4.2  Prevenção e Enfrentamento da Violência Praticada por Membros do Judiciário

4.2.1              “Política permanente de enfrentamento a todas as formas de violência contra a mulher, no âmbito das atribuições da corregedoria nacional de justiça”- provimento 147/2023

Ainda no ano de 2023, a Corregedoria Nacional editou o Provimento n. 147, que dispõe sobre a política permanente de enfrentamento a todas as formas de violência contra a mulher, no âmbito das atribuições da Corregedoria Nacional de Justiça. Envolve a adoção de protocolo específico para o atendimento a vítimas e recebimento de denúncias de violência contra a mulher envolvendo magistrados, servidores do Poder Judiciário, notários e registradores e a criação de canal simplificado na Corregedoria Nacional de Justiça para denúncias de vítimas de violência contra a mulher

É uma junção, na verdade, de protocolos voltados ao atendimento da mulher, à facilitação da comunicação interinstitucional e entre órgãos e comitês responsáveis pelo enfrentamento da violência contra a mulher, garantindo que o atendimento ocorra de maneira célere e eficaz.

Procedimentos voltados à garantia do sigilo da vítima, e, ainda, ao seu acolhimento (como, por exemplo, a oitiva por uma juíza auxiliar da Corregedoria) garantem essa eficácia, não se exigindo provas pré-constituídas ou elementos que venham a inviabilizar sua denúncia, como já ocorre nos processos judiciais voltados à mesma matéria.

Qualquer pessoa vítima de violência contra a mulher praticada por magistrado, servidor do Poder Judiciário (quando a agressão também violar deveres e proibições funcionais- arts. 116 e 117 da Lei n. 8.112/1990), ou por prestador de serviços notariais e de registro (cartórios), quando a violência estiver relacionada ao exercício do serviço prestado, pode registrar tais denúncias no canal de representação citado, por meio do preenchimento de um formulário simples disponível na página eletrônica da Corregedoria Nacional de Justiça (<https://www.cnj.jus.br/corregedoriacnj/representacao-administrativa-violencia-contra-a-mulher/>).

É importante salientar que a violência contra a mulher de que trata o canal abrange não só a violência física, sexual, patrimonial e psicológica, o que também alcança episódios de assédio sexual e moral praticados no ambiente de trabalho do Poder Judiciário ou dos cartórios. Também se insere na competência da Corregedoria Nacional de Justiça apurar eventuais omissões de magistrados em audiência, quando vítimas ou testemunhas forem, de alguma forma, violadas em sua dignidade, integridade psicológica ou física, por quem quer que esteja presente no ato. Trata-se da violência institucional (Lei n. 14.245/2021 e da Lei n. 14.321/2022), e que também é objeto de verificação por meio do canal.

Já nos primeiros 2 meses de implementação do canal, foram registradas 13 denúncias, ampliadas para cerca de 70 denúncias até o final do primeiro semestre de 2024, e 90 denúncias até o primeiro trimestre de 2025.

A leitura dos formulários simplificados, juntado à oitiva das vítimas, quando necessária, permitiu um olhar sobre procedimentos já em curso envolvendo a questão, e ao fato de que os casos de denúncia de possível violência institucional abrangem quase 80% dos casos. A partir de tal verificação o canal vem passando por reformulações, na tentativa de criar mecanismos que resolvam a questão sob um enfoque estrutural e coletivo, inclusive em cooperação e diálogo com a Ouvidoria Nacional de Justiça. Sabe-se que a aplicação de medidas disciplinares é necessária em alguns casos. Porém, é necessário se compreender as causas do problema, a partir da análise de suas especificidades, com medidas que protejam os dados das vítimas e menores porventura envolvidos. Por exemplo, a partir da análise das denúncias é possível se verificar se as questões estão concentradas em regiões determinadas, possibilitando medidas mais amplas e estruturais nos Tribunais envolvidos, inclusive durante as inspeções realizadas, bem como mapear a observância de recomendações e resoluções do CNJ, como é o caso do Protocolo de Julgamento sob a Perspectiva de Gênero, um dos grandes fatores que impulsionam as denúncias sob a alegação de sua inobservância.

Nesse ponto, a análise sobre a aplicação do Protocolo de Julgamento com perspectiva de gênero[27] pelos Tribunais brasileiros traz a lume diversos problemas de grave espectro relacionados à violência contra a mulher que merecem urgente atenção pelo Poder Judiciário, e que vão além dos conceitos clássicos e já incorporados no sistema legal vigente da violência patrimonial, sexual, física, moral e psicológica identificados especificamente com a violência doméstica.

Ao recorrer ao Judiciário para a resolução de tais questões, seja no âmbito de competências cíveis ou criminais, as vítimas tem o direito de ver aplicado o Protocolo de Julgamento com perspectiva de gênero citado, como forma de garantia de seus direitos fundamentais. Sem tal medida, não há pacificação real do conflito.

Assim, é preciso atentar para uma importante questão a ser reconhecida e enfrentada dentro do Poder Judiciário, que é a violência institucional.

De acordo com a Lei nº 14.321/2022 (que incluiu o art. 15-A à Lei 13.869/19), a violência institucional ocorre quando o agente público submete uma vítima de infração penal ou a testemunha de crimes violentos a "procedimentos desnecessários, repetitivos ou invasivos, que a leve a reviver, sem estrita necessidade, a situação de violência ou outras situações potencialmente geradoras de sofrimento ou estigmatização”, cabendo a aplicação da dobra da pena prevista em caso de revitimização. Contudo, parece que a abordagem da questão transborda casos ocorridos em âmbito criminal, e, por outro lado, merece olhar estrutural dissociado, como já externado, do simples viés punitivo disciplinar.

A par da previsão legal indicada, a violência institucional pode ser identificada de maneira estrutural, não individualizada ou restrita, sob o novo olhar do papel do Judiciário.

Da mesma forma, as situações de violência ou assédio processual de gênero, tal como o conceito trazido pelo art. 5º da Lei Maria da Penha (“configura violência doméstica e familiar contra a mulher qualquer ação ou omissão baseada no gênero que lhe cause morte, lesão, sofrimento físico, sexual ou psicológico e dano moral ou patrimonial”) devem ser combatidas sob a visão de que não pode o Poder Judiciário ser precursor de práticas, por ação ou omissão, que estimulem ou permitam tais práticas. Afinal, a inação do Poder Público significaria conformar-se com um verdadeiro “estado de coisas inconstitucional”, nos termos já reconhecidos na Arguição de Descumprimento de Direito Fundamental n. 347 MC-DF (Rel. Min. Marco Aurélio, 09.09.2015)[28].  Se inserem em tais práticas, ainda, o manejo de violência vicária, ou o uso de interposta pessoa (normalmente os filhos menores) na intenção de prejudicar, coagir, ou gerar violência psicológica e moral na mulher[29].

No âmbito das pesquisas realizadas para elaboração de minutas na atividade de auxílio à Corregedoria Nacional de Justiça, observou-se que o momento é de atenção mundial ao tema. Como exemplo, foi especificado que[30], em maio de 2024, o Comitê da ONU que monitora o cumprimento da Convenção para a Eliminação de Todas as Formas de Discriminação contra as Mulheres (CEDAW) pontuou a necessidade de imprimir esforços na prevenção e punição de violência de gênero, não só na esfera privada, mas indubitavelmente também na esfera pública. Diversas Cortes em âmbito internacional reconhecem, nesse aspecto, a responsabilidade do Estado. Tal responsabilidade se converte em um segundo agressor, quando não demonstra o cuidado necessário no atendimento das denúncias de violência de gênero[31].

Sob a perspectiva do papel do Judiciário como partícipe e construtor de políticas públicas voltadas à pacificação social, tal como já decidido pelo Conselho Nacional de Justiça, não é admissível que o Estado-juiz, por meio de seus integrantes, estimule, compactue ou se apresente omisso diante de violações institucionais que revitimizam e demonstram ao jurisdicionado cenário oposto ao esperado no tocante ao exame de casos em que a vulnerabilidade é ínsita ao conflito posto. Não se pode aceitar que violações a direitos fundamentais ocorram no âmbito de um Poder que prima pela garantia desses mesmos direitos[32].

A visão estrutural do problema clama por uma abordagem humanizada, integrada e inclusiva por parte do Poder Judiciário, inclusive interna corporis.

Mais do que nunca, é preciso investir na informação sobre o tema e a capacitação, voltadas ao reconhecimento e a identificação da obrigatoriedade da observância das políticas de enfrentamento à violência contra a mulher – inclusive no tocante à Resolução 492/2023 – como inerentes aos próprios deveres da magistratura.

Dentro do espectro da informação e capacitação, é preciso conhecer as nuances da violência contra a mulher, tema muitas vezes de difícil identificação, como já demonstrado, e espraiar o letramento de gênero, que inclui, ainda, a importante visão sobre as interseccionalidades e características sobrepostas que incrementam o grau de vulnerabilidade em muitos casos. Questões raciais, étnicas e condições sociais específicas demandam também tratamento específico e adequado na busca da inclusão e integridade do sistema, tal como se observou no acompanhamento das políticas implementadas pela Corregedoria Nacional de Justiça, em especial o canal de representação de que trata o Provimento 147/2023.

Por fim, o diálogo institucional e intersocial é fundamental na busca de soluções conjuntas e eficazes voltadas à citada integridade do sistema. A celebração de convênios e instrumentos de cooperação judiciária, por exemplo, possibilitam a identificação de vulnerabilidades e elementos que podem potencializar a violência contra a mulher, além de trazer soluções capazes de neutralizá-la, e que não seriam executáveis isoladamente.

As ferramentas, enfim, estão postas a partir da nova visão do Direito e do papel do Judiciário, que clama por uma gestão humanizada e democrática da Justiça, compreendendo que o problema possui múltiplas facetas, e deve ser enfrentado com a identificação de todas as suas nuances.

5  CONCLUSÃO

De características multifacetadas e com elementos naturalizados e velados, a violência contra a mulher deve ser encarada como problema estrutural, que demanda um novo olhar sobre as instituições e organizações sociais. Não se desconhece que, em algumas sociedades e ao longo do tempo, as mulheres alcançaram conquistas e exercem importante papel. Contudo, o quadro geral concernente à violência contra a mulher ainda demanda muitos avanços e medidas voltadas ao seu enfrentamento.

Nesse contexto, sobressai o papel do Poder Judiciário, e sua responsabilidade social em não reproduzir internamente os conflitos e assincronidades estruturais existente na sociedade. Como partícipe e construtor de políticas públicas, deve tratar o enfrentamento da violência contra a mulher como corolário do acesso à justiça real, e premissa inerente à própria efetividade da jurisdição.

No que toca aos projetos voltados ao enfrentamento da violência contra a mulher no âmbito do Conselho Nacional de Justiça, sob o recorte da competência da Corregedoria, sobressaem as seguintes contribuições:

. aplicação do Protocolo de Julgamento com perspectiva de gênero em processos administrativos (Resolução 492/2023);

. inclusão de diretrizes estratégicas voltadas às Corregedorias na temática da violência contra a mulher;

.identificação dos processos administrativos disciplinares envolvendo a temática da violência contra a mulher;

. implementação de medidas voltadas ao diálogo com setores e órgãos envolvidos na temática da violência contra a mulher;

. inclusão da verificação de protocolos voltados ao enfrentamento da violência contra a mulher no cotidiano das inspeções;

. criação do canal de representação voltado a denúncias de violência contra a mulher praticadas por integrantes do Poder Judiciário;

. aplicação de medidas voltadas ao combate de violência de gênero praticada por integrantes do Poder Judiciário (violência institucional);

Ao reconhecer tal premissa, a observância do Protocolo de Julgamento com perspectiva de gênero, bem como a implementação de medidas estruturais como a capacitação, o letramento de gênero, a normatização clara sobre os contornos da violência institucional, o diálogo institucional e o enfrentamento de qualquer forma de violência dentro e fora do processo, sobressaem como urgência e necessidade no caminho de um sistema de Justiça integrado e inclusivo.

6  REFERÊNCIAS

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______. Provimento CN 147/2023. Dispõe sobre a política permanente de enfrentamento a todas as formas de violência contra a mulher, no âmbito das atribuições da Corregedoria Nacional de Justiça; adota protocolo específico para o atendimento a vítimas e recebimento de denúncias de violência contra a mulher envolvendo magistrados, servidores do Poder Judiciário, notários e registradores; cria canal simplificado de acesso a vítimas de violência contra a mulher na Corregedoria Nacional de Justiça e dá outras providências. Brasília: CNJ (2023).Disponível em <https://atos.cnj.jus.br/atos/detalhar/5198>. Acesso em: 13 maio 2024.

______. Recomendação CNJ 102/2021. Recomenda aos órgãos do Poder Judiciário a adoção do protocolo integrado de prevenção e medidas de segurança voltado ao enfrentamento à violência doméstica praticada em face de magistradas e servidoras. Brasília: CNJ (2021). Disponível em <https://atos.cnj.jus.br/atos/detalhar/4068>. Acesso em: 13 maio 2024.

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SANTOS, B. de S. Pela mão de Alice: o social e o político na pós-modernidade. São Paulo: Cortez, 1995.

Notas de Rodapé

[1]     Pós-doutora em Direito Público e doutora em Direito Processual pela UERJ; mestre em Direito das Relações Sociais pela UDF e em Direitos Sociais pela UCLM- ES. Filiada à Universidade do Rio de Janeiro (Rio de Janeiro-RJ, CEP 20550-900). Email: roberta.sivolella@cnj.jus.br. ORCID: https://orcid.org/0000-0002-9866-9225.Declaro que não foi utilizado IA generativa para a confecção de texto, apenas ferramenta de IA para revisão/correção ortográfica e gramatical.

[2]     Segundo o FBSP, o feminicídio cresceu em 2023 1,6% em relação ao número de casos registrados em 2022 (FBSP, 2024).

[3]     Idem.

[4]     Tais situações de violência explícita ou velada de gênero espelham “contradições, antinomias, incoerências, injustiças que repercutem com intensidade variável nos mais diversos setores da vida social” (SANTOS, 1995, p. 283).

[5]     NASCIMENTO GOMES, R. Teorias da dominação masculina: uma análise crítica da violência de gênero para uma construção emancipatória. Libertas: Revista de Pesquisa em Direito, v. 2, n. 1, 31 dez. 2016.Disponível em: https://periodicos.ufop.br/libertas/article/view/292. Acesso em: 10 abr. 2024.

[6]     Faz-se, aqui, uma analogia ao conceito de banalização da conduta social prejudicial arendtiana, ou da ausência de “mentalidade alargada” mencionada por Kant .Cf. SCHIO, Sônia Maria (2011). Hannah Arendt: o mal banal e o julgar. Veritas – Revista de Filosofia da Pucrs 56 (1):127-135. Disponível em <https://revistaseletronicas.pucrs.br/ojs/index.php/veritas/article/download/9297/6407/>. Acesso em: 02 maio 2025.

[7]     BALESTERO, Gabriela Soares; GOMES, Renata Nascimento. Violência de gênero: uma análise crítica da dominação masculina. Revista CEJ, Brasília, Ano X IX, n . 66, p . 44-49, m a i o / a g o . 20, p. Disponível em: <https://www.corteidh.or.cr/tablas/r34812.pdf>. Acesso em: 22 abr. 2025.

[8]     O binômio “reconhecimento e distribuição”, necessário à inclusão social, indica que a reparação da injustiça certamente requer uma política de reconhecimento. FRASER, Nancy. Reconhecimento sem ética? In: Lua Nova, São Paulo, 70: 101-138, 2007.Disponível em <https://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_nlinks&pid=S1519-6089201800030056300011&lng=en>. Acesso em: 14 abr. 2024.

[9]     Ainda nos dizeres de Balestero, “ Não se deve levar em consideração apenas as diferenças biológicas para estabelecer parâmetros de proteção específica, pois os papéis desempenhados pelos gêneros advêm de uma construção histórica e social que determinou a cada um dos sexos os seus limites de atuação em todas as áreas”.  Necessário ressaltar que as causas da violência contra a mulher não se restrigem apenas a construções históricas e sociais, tendo origens multifacetárias, tais como as suas formas de exteriorização.  Idem.

[10]    Segundo Faleiros, esse conceito estaria presente na “relação de poder na qual estão presentes e se confrontam atores/forças com pesos/poderes desiguais, de conhecimento, de força, autoridade, experiência, maturidade, estratégias e recursos”. FALEIROS, V. P; FALEIROS, E. T. S Formação de educadores (as): subsídios para atuar no enfrentamento à violência contra crianças e adolescentes. Brasília, DF: MEC/SECAD; Florianópolis: UFSC/SEaD, 2006.

[11]    MUCHAIL, Salma Tannus. Foucault, Simplesmente. São Paulo: Edições Loyola, 2004.

[12]    Sobre o conceito da dominação masculina de Bordieu e a evolução da noção do poder do patriarcado por autoras como Joan Scott, Tereza de Lauretis, Judith Butler e Adriana Piscitelli, vide ARAUJO, Maria de Fátima. Gênero e violência contra a mulher: o perigoso jogo de poder e dominação. Psicol. Am. Lat., México,  n. 14, out. 2008. Disponível em <http://pepsic.bvsalud.org/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S1870-350X2008000300012&lng=pt&nrm=iso>. acessos em: 28 maio 2024.

[13]    Não se desconhece a existência das teorias relacionais que compõem a temática explorada. Contudo, para o enfoque proposto segundo a análise realizada, o recorte explorado com mais profundidade será o de Bordieu, sob visão das multifacetas que envolvem a violência contra a mulher nos dias de hoje. Sobre a temática das teorias relacionais e da demonação masculina, vide Devreux, Anne-Marie. (2005). A teoria das relações sociais de sexo: um quadro de análise sobre a dominação masculina. Sociedade E Estado, 20(3), 561–584. https://doi.org/10.1590/S0102-69922005000300004. Acesso em 14 out 2024.

[14]    Segundo GIDDENS, Toda a relação de poder é ínsita às interações- mas somente coexiste com o conflito quando os interesses são divergentes. GIDDENS, A. Novas regras do método sociológico: uma crítica positiva das sociologias compreensivas. Rio de Janeiro: Zahar, 1978.

Registra-se, aqui, importante reflexão de GIFFINS (2006) , Acerca de visão dia´letica e relacional de tais relações de poder:

“Sob a perspectiva crítica, dialética e relacional do mundo problemático e ideologizado, podemos entender melhor por que, antes dos grupos de reflexão do feminismo, a opressão 'das mulheres' não foi percebida. No entanto, como sujeitos do conhecimento acadêmico legitimado, institucionalizado, (...) nós estamos situadas contraditoriamente: como mulheres no cotidiano e também como participantes das práticas conceituais que nos objetificam como mulheres. Como profissionais, isso pode favorecer nossa percepção do hiato entre as formas abstratas dominantes e nossa própria experiência.

No entanto, como nossa situação é socialmente privilegiada, não podemos ser vistas como simplesmente oprimidas. Isso indica que nossa sensação da identidade feminina, baseada na nossa percepção das comunalidades entre as mulheres, também precisa ser sujeita à análise crítica”. (Giffin KM. Produção do conhecimento em um mundo "problemático": contribuições de um feminismo dialético e relacional. Rev Estud Fem [Internet]. 2006Sep;14(3):635–53. Available from: <https://doi.org/0.1590/S0104-026X2006000300004)>.

[15]    DIDIER Jr., Fredie; Hermes, ZANETTI Jr.; e OLIVEIRA, Rafael. Elementos para uma teoria do processo estrutural aplicada ao processo civil brasileiro. Revista do Ministério Público do Estado do Rio de Janeiro, nº 75, jan./mar. 2020. , p. 101-136. Disponível em <https://www.mprj.mp.br/documents/20184/1606558/Fredie_Didier_jr_%26_Hermes_Zaneti_Jr_%26_Rafael_Alexandria_de_Oliveira.pdf>. Acesso em: 18 mar. 2025.

[16]    Há, assim, uma dupla acepção da questão estrutural utilizada no presente estudo para a abordagem proposta, seja como característica da violência contra a mulher (problema estrutural), seja como medidas, sob o enfoque as ações do Poder Judicário para sua prevenção e enfrentamento (medidas estruturais, ligadas ao conceito de processo estrutural e seu escopo.

[17]    Idem.

[18]    CAPPELLETTI, Mauro e GARTH, Bryant. Acesso a Justiça. Tradução e Revisão Ellen Gracie Northfleet. Porto Alegre, Sérgio Antonio Fabris Editor, 1988

[19]    CALLEJÓN, Francisco Balaguer. Redes Sociais, Companhias Tecnológicas e Democracia. Direitos Fundamentais & Justiça | Belo Horizonte, ano 14, n. 42, p. 25-48, jan./jun. 2020. P. 25-48.

[20]    Nos dizeres de Flávio Dino de Castro e Silva, mesmo os limites à atuação do Judiciário com base na “reserva do possível” devem possuir olhar mais amplo, contemplando o fato de que, no Brasil, o princípio não deve ser visto da mesma maneira que nos países centrais, na medida em que possuem distribuição de renda menos assimétrica, políticas públicas menos universalizadas e controles sociais (não jurisdicionais) mais efetivos. CASTRO E SILVA, Flávio Dino; A função realizadora do Poder Judiciário e as Políticas Públicas no Brasil. R. CEJ, Brasília, n 28, p. 40-53, jan/mar 2005.

[21]    Disponível em: <https://www.cnj.jus.br/programas-e-acoes/agenda-2030/>.

[22]    Disponível em: <http://www.onumulheres.org.br/wp-content/uploads/2018/06/Marco-Normativo-Democracia-Paritaria_FINAL.pdf>. p. 36 e 38.

[23]    Ao idealizar o Índice de Acesso à Justiça, dois tipos de capitais foram pensados: o Capital Humano e o Capital Institucional. O primeiro foi subdividido em duas vertentes – Cidadania e População – e o segundo diz respeito ao Judiciário. Disponível em: <https://www.cnj.jus.br/wp-content/uploads/2021/02/Relatorio_Indice-de-Acesso-a-Justica_LIODS_22-2-2021.pdf>.

[24]    Relatório Justiça em Números, CNJ, 2023.

[25]    Trata-se de evento insituído por meio do Provimento n. 154/2023, e regulamentado pela Portaria n. 50/2023, cujos pilares são Eficiência, Transparência, Inovação, Celeridade e Aprimoramento, com o objetivo de premiar iniciativas inovadoras e incentivar o cumprimento das Metas Nacionais e das Diretrizes Estratégicas das Corregedorias. Disponível em <https://www.cnj.jus.br/corregedoriacnj/premio-corregedoria-etica/>.

[26]    Como exemplos de tais nuances singularizadas, por exemplo, a própria relação entre a violência doméstica e a participação feminina no mercado se reveste de simultaneidade e complexidade. Se, sob a ótica da racionalidade econômica, a inserção da mulher no mercado de trabalho gera maior “poder de barganha” e independência,  fazendo com que o nível de violência de equilíbrio diminua,  sob uma abordagem sociológica o mesmo empoderamento também traz potencial efeito de aumento da violência,  caso normas e cultura de gênero sejam “ameaçadas” (por exemplo, quando a mulher passa a auferir maiores ganhos que o companheiro), já que  “a execução do projeto de dominação-exploração da categoria social homens exige que sua capacidade de mando seja auxiliada pela violência”. SAFFIOTI, H. I.B. Contribuições feministas para o estudo da violência de gênero. Cadernos Pagu, v. 16, p. 115-136, 2001, apud Cerqueira, Daniel et al.Cf. Cerqueira, Daniel; Moura, Rodrigo Leandro de; Izumino, Wânia Pasinato. Participação no mercado de trabalho e violência doméstica contra as mulheres no Brasil. Rio de Janeiro: IPEA, 2019. Disponível em <https://www.ipea.gov.br/atlasviolencia/artigo/84/participacao-no-mercado-de-trabalho-e-violencia-domestica-contra-as-mulheres-no-brasil>. Sobre a mesma complexidade e fator de simultaneidade entre participação feminina e a violência doméstica, Farmer, A., & Tiefenthaler, J. (2004). The Employment Effects Of Domestic Violence. Research in Labor Economics Accounting for Worker Well-Being, 301-334. Disponível em <https://ideas.repec.org/h/eme/rleczz/s0147-9121(04)23009-6.html>; Rios-Avila, F., & Canavire-Bacarreza, G. J. (2017). The effect of intimate partner violence on labor market decisions. International Journal of Social Economics,44(1), 75-92; Bertrand, M., Kamenica, E., & Pan, J. (2015). Gender Identity and Relative Income within Households. The Quarterly Journal of Economics, 130(2), 571-614. Disponível em <https://www.nber.org/system/files/working_papers/w19023/w19023.pdf>.

[27]    CONSELHO NACIONAL DE JUSTIÇA. Resolução CNJ 492/2023. Estabelece, para adoção de Perspectiva de Gênero nos julgamentos em todo o Poder Judiciário, as diretrizes do protocolo aprovado pelo Grupo de Trabalho constituído pela Portaria CNJ n. 27/2021, institui obrigatoriedade de capacitação de magistrados e magistradas, relacionada a direitos humanos, gênero, raça e etnia, em perspectiva interseccional, e cria o Comitê de Acompanhamento e Capacitação sobre Julgamento com Perspectiva de Gênero no Poder Judiciário e o Comitê de Incentivo à Participação Institucional Feminina no Poder Judiciário. Brasília: CNJ (2023). Disponível em <https://atos.cnj.jus.br/atos/detalhar/4986>. Acesso em: 13 jun. 2024.

[28]    Disponível em: <https://www.cnj.jus.br/wp-content/uploads/2019/09/769f84bb4f9230f283050b7673aeb063.pdf>. Acesso em: 20 maio 2024.

[29]    O termo é reconhecido pela CEDAW e recentemente foi objeto de inovações legislativas no sistema de vários países, com destaque à reforma legislativa ocorrida no México. <https://infosen.senado.gob.mx/sgsp/gaceta/65/2/2023-03-07-1/assets/documentos/Dic_Violencia_por_Interposita_persona_060323.pdf>.

[30]    Tal como indicado no bojo da RD 0003915-47.2024.2.00.0000. rel. Ministro Luis Felipe Salomão. DJe 18/07/24. Disponível em < https://www.conjur.com.br/wp-content/uploads/2024/07/Decisao-1.pdf>.

[31]    Nesse sentido, também foi citado na RD 0003915-47.2024.2.00.0000 o julgado da Corte Constitucional da Colômbia: “T-735/17 Estado puede convertirse en segundo agresor de una mujer cuando no es diligente en atender denuncias de violencia de género”. Disponível em: <https://www.corteconstitucional.gov.co/noticia.php?t-735/17-estado-puede-convertirse-en-segundo-agresor-de-una-mujer-cuando-no-es-diligente-en-atender-denuncias-de-violencia-de-genero-8638>. Acesso em: 08 de jul. 2024.

[32]    As reflexões foram feitas no bojo da RD 0003915-47.2024.2.00.0000. rel. Ministro Luis Felipe Salomão. DJe 18/07/24. Disponível em <https://www.conjur.com.br/wp-content/uploads/2024/07/Decisao-1.pdf>.